Você sabia que se nós, mulheres com útero e que menstruam, pudéssemos reunir todos os dias em que estamos menstruadas passaríamos cerca de 6 anos e meio vivendo a menstruação? Seriam 6 anos e meio sangrando todos os dias. Seis anos e meio de nossas vidas. Assim, pergunto: dá para, simplesmente, abrir mão de 6 anos e meio? Dá para amaldiçoar 6 anos e meio das nossas vidas? Não dá… Isso significa que temos que agradecer e gostar e endeusar esses dias? Também não, afinal de contas cada uma sabe como a menstruação é para si e romantizar e padronizar essa vivência também é uma forma de opressão. Cada uma de nós tem uma história e vivências as mais diversas, e toda forma de padronização exclui humanidades. Então, o que podemos fazer para lidar melhor com nossos períodos? Duas coisas, ao mínimo:
1) Compreendê-los verdadeiramente e ao seu significado, bem como as construções que fizemos sobre nossa menstruação ao longo de nossa história
2) Aprender a lidar com eles. Não apenas com os dias de sangramento, mas com o ciclo de maneira geral.
Sobre compreender verdadeiramente o ciclo: aqui, passamos pela forma como fomos ensinadas, pela família e pela cultura, a enxergar nossos ciclos. Como fomos educadas sobre nossa saúde sexual? O que foi dito sobre a menstruação para nós? O que a sociedade ao redor nos disse sobre isso enquanto crescíamos? Muito da opinião e dos sentimentos que temos sobre nossa menstruação vem dessa construção coletiva. Muitas meninas, ainda hoje, escondem os dias em que estão menstruadas ou veem nisso um motivo para se envergonhar. Isso é fruto da educação que receberam e recebem, tanto familiar quanto cultural. Compreender verdadeiramente o significado da menstruação passa por EDUCAÇÃO SEXUAL. Fundamental, portanto, estamos sempre falando sobre isso. E por ser um processo educativo, não pode ser restrito às meninas. É interesse de todos. Todo mundo convive ou já conviveu com uma mulher que menstrua, é importante que todos e todas saibamos do que verdadeiramente se trata, física e emocionalmente.
Sobre aprender a lidar com nossos ciclos: eu insisto com todas as mulheres ao meu entorno, de amigas a mulheres que passam por orientação e mentoria comigo, que MAPEIEM SEUS CICLOS. O que significa mapear os ciclos? Significa saber em que fase do ciclo se está e aprender que reações e sentimentos temos em cada fase, em cada dia. Todos os dias. Acorda, faz a higiene matinal e verifica o ciclo. Isso pode ser feito de diferentes maneiras: agendas menstruais, anotações pessoais, aplicativos, o que tiver mais a ver com seus hábitos. E por que isso é importante, necessário e recomendável? Porque as alterações cíclicas hormonais não promovem apenas mudanças físicas – como sensibilidade mamária, inchaço, sensação de cansaço, sensibilidade abdominal, etc. Promovem também alterações emocionais. Então, é absolutamente normal que, em certos dias, acordemos mais introspectivas, ou melancólicas, ou mais sensíveis, ou mais criativas, ou com certa irritação ou qualquer outra característica emocional também promovida pelas alterações hormonais. E quando não estamos cientes da fase do ciclo em que estamos, podemos fazer uma interpretação equivocada desse estado emocional, culpabilizando a nós mesmas por algo que tem base fisiológica. Nós, mulheres, por pressão de uma sociedade machista e patriarcal, já vivemos com o chicote nas mãos dando no próprio lombo, com a sensação de não sermos boas o suficiente. Mapear o próprio ciclo nos ajuda a dar os devidos pesos e justificativas aos sentimentos que possamos vivenciar. Por exemplo: num dia em que você acorda mais tristonha, estar ciente de que aquele sentimento pode estar associado ao período do ciclo, te faz compreender a origem e a não se sentir “depressiva”. E compreender tira um peso muito grande sobre nós, ainda mais numa sociedade que nos pressiona para estar sempre solícitas e produtivas. Nos ajuda a compreender que não somos “desequilibradas”, ou “inconstantes”, ou “loucas”, como tantas e violentas vezes essa sociedade misógina nos chama. Somos cíclicas, não somos máquinas a serem constantemente exploradas em nosso trabalho invisível e mal remunerado. Mapear o ciclo nos faz compreender a nós mesmas e nossas reações cotidianas, tira peso das costas, nos ajuda a otimizar a vida. Da mesma maneira, sabendo que em determinada semana temos mais probabilidade fisiológica de estarmos bem dispostas, em função da fase do ciclo em que estamos, podemos concentrar nessa semana atividades que podem exigir mais de nós, seja física ou mentalmente. E isso aumenta nossa autoestima e ajuda a organizar melhor nossas vidas.
É possível generalizar e dizer que somos, portanto, totalmente previsíveis? Obviamente que não, afinal de contas, o corpo da mulher não é uma máquina. Como diria Eduardo Galeano:
“A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa”.
Mas ter consciência do que está acontecendo com a gente em função dos nossos ciclos também é autoconhecimento, autocuidado e apropriação de si. Evita sofrimento, autodepreciação, ajuda a otimizar a vida e nos fortalece para reivindicar respeito aos nossos processos e à nossa vida.
Toda mulher que menstrua consegue mapear seu ciclo para essas finalidades? Não. Mulheres que fazem uso de contraceptivos hormonais não têm um ciclo menstrual verdadeiro, assim não é possível mapeá-lo e fazer extrapolações nesse sentido. Mas as demais podem conseguir, sim. Isso significa que é preciso abandonar o anticoncepcional hormonal? Não. Embora saibamos, com base em dados científicos bastante contundentes, que o uso de contraceptivos hormonais pode trazer uma série de consequências danosas para o corpo de uma jovem e de uma mulher, é irresponsável defender, apenas, a abolição deste método contraceptivo. Quando trazemos um olhar de classe para a questão, reconhecemos que para muitas mulheres, esse é um dos únicos métodos contraceptivos disponíveis. Num país que criminaliza o aborto e violenta meninas, relegando-as ao risco de morte, não dá simplesmente pra gente condenar um método contraceptivo. É preciso ampliar o olhar, lutar por políticas de saúde que tornem acessível a essas mulheres outras formas de planejamento reprodutivo, como o DIU. Aí sim podemos lutar contra a contracepção hormonal sem o risco de relegar mulheres ao abandono.
Mapeiem seus ciclos, mulheres. Prestem atenção em si. Anotem. Estudem-se. Estejam conscientes. Quanto mais conscientes de nossos corpos, mais ele nos pertencerá, menos sujeitas à apropriação externa patriarcal estaremos.
E se você é uma mulher que não tem um útero, mapeie-se também. Veja como está reagindo à vida e às situações. Anote. Perceba-se. Afinal de contas, ciclos acontecem de diferentes formas e esse a que me refiro acima é apenas o hormonal. Há muitos outros ciclos acontecendo em nossos corpos. Aproprie-se do seu. Ele é seu e só a você pertence.
Conversem sobre isso com as meninas também. Quanto antes, melhor.
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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.