Em todos os meus cursos, eu sempre converso com as pessoas sobre como é fundamental compreender as bases sociais da agressividade e da violência. E como é preciso olhar para a própria história quando queremos ajudar a transformar a sociedade em uma coletividade menos violenta e mais solidária e empática, a partir de nós mesmos e da relação com nossos filhos.

Nesse sentido, é importante compreender que, sim, nosso passado influencia em muito no fato de termos traços de violência e agressividade em nossas vidas. Especialmente quando dirigimos isso à educação de nossos filhos.

Ao que me refiro quando falo sobre “nosso passado” e a relação dele com nossa forma de educar? Refiro-me a algo muito importante chamado modelagem parental. Modelagem parental fala sobre o fato de que aprendemos a agir como mães, pais e cuidadores também por termos visto como nossas mães, pais e cuidadores agiram com a gente. Nós gritamos com os filhos, muitas vezes, porque gritaram conosco. Batemos porque bateram em nós. Aceitamos qualquer uma das formas de violência contra a criança – grito, tapa, beliscão, palmada, surras, ofensas morais e psicológicas – porque fizeram isso com a gente ou, no mínimo, vivemos num contexto em que isso não só era aceitável como era incentivado e bem visto.

Isso serve então como um “álibi” para que continuemos a fazer assim? Não. Serve para dar um contexto. Mas não para justificar.

E por que não serve para justificar a violência que muitas pessoas continuam a dirigir a seus próprios filhos? Porque todos, sem exceção, podemos mudar. Somos dotados da capacidade de mudar nossa prática quando a consideramos prejudicial, quando sabemos que ela gera dano a nós mesmos e/ou aos outros.

Tanto é assim que muitos de nós não repetimos coisas graves que aconteceram com a gente. Ou, embora tenhamos sido agredidos, decidimos não passar a agressão e a violência para a frente com nossos filhos. E fizemos isso porque, tendo sofrido com a violência destinada a nós, não queremos causar o mesmo sofrimento às nossas crianças. Então decidimos interromper em nós o ciclo da violência… Decidimos que a violência – qualquer que seja ela – não terá lugar em nossa forma de educar. É fácil decidir isso? Jamais. Tanto porque não sabemos como fazer, já que muitas vezes não aprendemos isso na nossa própria infância, quanto porque muita gente incentiva a agressão à criança, achando que essa é a única forma de educar. O último capítulo do nosso livro “Educar sem violência”, por exemplo, é inteirinho feito de depoimentos de gente que, embora tendo sido vítima da violência dos pais, decidiu fazer diferente com os filhos.

Em um texto bastante antigo – e infelizmente ainda muito atual –, eu explico porquê a palmada, embora interrompa momentaneamente um determinado comportamento, não serve para educar. De maneira resumida, eu explico neste texto que quando a criança para de fazer algo por ter levado uma palmada, ou receber um xingamento, ela não deixa de fazer porque aprendeu e, sim, porque desenvolveu medo de quem grita com ela ou a agride. Sabe o que isso significa? Que na primeira oportunidade que o autor da violência e fonte do medo não estiver por perto, ela irá fazer. Ou seja, se esse era o seu argumento para manter a agressão contra seus filhos como forma de “educar”, estou te explicando o porquê de você não estar, de fato, educando…

Muitas e muitos de nós, quando decidimos aprender outras estratégias de educação que foquem no positivo, no construtivo e não na violência, sentimos muita dor. É uma dor funda relembrar que, embora nos esforcemos tanto para cuidar das nossas crianças com amor, respeito e gentileza, não foi assim que fizeram com a gente… E aquela criança ferida que fomos, muitas vezes, permanece lá atrás se sentindo desamparada. Também já escrevi sobre isso, sobre o dia que fui buscar a menina triste que um dia eu fui. Mas o que quero dizer neste texto é o seguinte: essa visita ao passado, para olhar com olhos de ver a forma como fomos tratados, é fundamental. Ela lança uma luz sobre por quê o ciclo da violência muitas vezes se mantém. Afinal, se aquelas pessoas que tanto amamos nos agrediram, como ir na corrente contrária sem que pareça que estamos ofendendo essas pessoas? E, também, como se desvencilhar do passado?

Eu quero dizer duas coisas muito importantes. Primeiro, quando decidimos educar sem violência, buscando aprender ferramentas e diferentes olhares, não desonramos nossa família. Pelo contrário. Nós honramos tudo o que de bom nos foi passado. E vamos além, e melhoramos tudo isso. Porque essas pessoas, muitas vezes, também levaram vidas difíceis e também não tiveram modelos positivos, além de terem vivido em uma época histórica completamente diferente, onde não havia o acesso à informação que temos hoje – e, muitas vezes, também foram muito violentadas. Então, quando decidimos encerrar esse ciclo violento, também honramos quem veio antes de nós, dizendo: “Eu entendo o contexto, mas irei além”. O que, também, é uma forma de curar não apenas a nós mesmas, mas a tanta gente que veio antes… E, segundo, e não menos importante, é lembrar que essa visita ao passado, em busca de compreender nosso contexto histórico pessoal e familiar, não deve ser uma prisão. Não devemos ir lá no passado e lá permanecer. Não. Quem assim faz, remoendo as dores e mazelas no lugar de utilizá-las como motor de propulsão para sua própria mudança, fica preso lá. Sofre de novo. Escolhe perpetuar a dor. A visita ao passado precisa ser rápida e assertiva e não funcionar como uma areia movediça. Porque quando não superamos, corremos o risco de não conseguir nos desvencilhar daquela violência e repeti-la… Que é também o que, em grandessíssima escala, está acontecendo com a sociedade brasileira. Que, por não fazer a revisitação necessária ao passado e permanecer estancada lá atrás, reproduz toda a mazela do que já viveu, perpetuando a dor, a violência e o ódio.

Olhar a própria história – e a história coletiva – é fundamental para entender quem somos. Mas essa deve ser uma visita breve, crítica e visando a transformação. Do contrário, corremos o risco de nos transformamos nos algozes que tanto criticamos.

Olhar. Ressignificar. Transformar. Quebrar o ciclo.

Essa também é uma das bases de uma educação sem violência, ou melhor, de uma vida sem violência.

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.