O roteiro é um blockbuster hollywoodiano clichezão:

“Estude, encontre um príncipe, arrume um emprego, case, alcance um bom salário, compre uma casa,  tenha filhos”.

Mas na real, o negócio tá mais prum filme de terror de baixo custo,  te assusta e muita coisa vai incomodar até o “fim” aparecer.

Eu não estava pintando uma parede nua e cai num pinto, não, eu transei mesmo. Transei como já tinha feito outras vezes que quis e, como nas outras, eu transei pra gozar, não pra engravidar. Mas a gente sabe que eu não tô aqui porque sou boa em sudoku, não é mesmo? Eu tô aqui porque engravidei sem querer e, então, resolvi ser mãe… “Sozinha”.

Mas primeiro as primeiras coisas. E nessa história a gente começa no…

–  “Meu erro, mea culpa”

Claro que eu já fui apresentada para, pelo menos, umas 242 realidades alternativas que me permitiriam não ter engravidado do jeito que engravidei.

“Se você não tivesse transado”

“Se você tivesse se guardado”

“Se você tivesse se precavido” (sério?)

“Se você tivesse feito chá de canela”

“Tivesse dado cinco cambalhotas na lua cheia”

“Se tivesse feito pilates”

“Se você não fosse uma vadia idiota” 

E outros correlatos, nem vamos gastar o português… O negócio REAL, ou seja, o negócio que cabe numa matéria de realidade e não numa de subjetivismo, é que a dita pílula não funcionou, o antibiótico da sinusite cortou o efeito e um tempo depois eu tava surtando porque a menstruação não descia, e a certeza ia se coçando e não se cria. Eu ia embarcar em mais uma comédia à russa, com a maternidade como roteiro. Pãn.

Depois de muito relutar, fiz um exame de farmácia, convencida por uma amiga da faculdade. Euzinha, naquela época, já me bancava fora da casa dos meus pais há pelo menos quatro anos, era bolsista integral em uma das melhores faculdades do país na minha área, lia uns 50 livros por ano, fazia ponte entre Zé Celso e Chomsky pela semiótica, e ainda assim, mil vezes morri de vergonha e culpa quando tive que pedir para o atendente da farmácia ao lado da faculdade um teste de gravidez.

Dali até o banheirinho do prédio dos laboratórios no campus, fui suspensa em mim mesma. Na mente, a tática era fugir do ‘já era’ e me agarrar no ‘talvez’, pelo menos até os dois tracinhos. Aqueles dois fucking minúsculos tracinhos vermelhos me trouxeram uma gravidade completamente nova e, nela, tudo instantaneamente já pesava pelo menos 3 vezes mais. Absolutamente TUDO doeu.

A gente se descobre grávida não de uma relação, não de fulano, a gente se descobre grávida pra dentro, lá no âmago. Dentro de um eu até então indivisível, algo se divide e, sem pressa, cresce. A gente se enxerga como corpo que permite, que alimenta, mas também como corpo que suporta e que contém… Toda mulher sabe que a gravidez não é uma experiência universal, estar grávida talvez seja, mas ser uma mulher grávida é único. É como ir até bem no meio do oceano e de repente se tornar a versão pop up de uma ilha. Só que o oceano, ao invés de água, é um monte de gente querendo passar a mão na sua barriga e adivinhar a DPP (data provável do parto). 

Talvez você tenha autoestima suficiente para passar por tudo isso sem se abalar e nem se desculpar por estar solteira, mas isso não quer dizer em absoluto que te desculpam. Aliás, ‘ninguém desculpa quem erra’ e é aí que as violências contra a mãe realmente começam, na percepção (e invenção) do nosso erro de largada. É aí que a gente conhece a moral no seu estado íntimo, pra não dizer cínico.

E o que é a moral Brasil?

A moral é “Relativa às regras de conduta e aos costumes estabelecidos e admitidos em determinada sociedade” (Michaelis, 2017), o que, trocando em miúdos, ao meu entender é: um conjunto de regras que as pessoas aprendem e escolhem usar em suas vidas para separar outras pessoas em grupos de maior ou menor importância.

A política social mais comum contra as mães é o silenciamento e a coação com argumentos que buscam distorcer nossa autopercepção e abalar nossa autoestima. É um jogo sujo de assédio e violência psicológica contra quem vive, em corpo e mente, uma revolução constante. Eu, sinceramente, não acredito que seja fácil para qualquer mulher passar pela gravidez e puerpério, mesmo casadas; mas tenho certeza de que com as mães que estão nessa sozinhas a crueldade é gourmetizada. A gente tá marcada. Ser a mulher errada é papel que vem bem antes do da “mãe guerreira”, e a gente ocupa enquanto não pode provar que pode, e quase sempre mesmo depois que prova. Ser essa mulher é sentir a noite apertar na ansiedade e impotência, é não ter compartilhamento, é viver no coitadismo ou às custas de sermões homéricos, é ter de chorar pra dentro. Porque no dito pelo não dito fica ardendo as entrelinhas:

“Ser mãe é obrigatoriamente lindo quando ter se tornado mãe foi sua culpa”. 

– “E o pai?”

Assim que engravidei e decidi ser mãe, entrei na fila do INSS da minha dignidade humana… E tudo por que?

Se a gente antes de ser mãe entra numa relação e não dá certo, ou num relacionamento que termina daquele jeito bosta, ou se é coisa de uma noite e só, acabou! Partiu zonas de convergência, desabafamos ou não desabafamos, tá na nossa mão ( “seu corpo suas regras, miga” ). MAS se você engravida: esquece. Pra chegar a qualquer lugar é nome, sobrenome e história. TODA HISTÓRIA. Não importa se você quer ou não, sua vida e autonomia tão em jogo, negócio aqui é conectar pinto e buceta e, como você é a parte óbvia, o divertido é saber daquele sujeito que faz sombra, e não só para a medicina. A gravidez nas vias públicas vira edição de luxo da Coquetel pra entreter as viagens de ônibus das gerações mais ‘old school’ , seu corpo tá grávido e por isso é patrimônio público de quem se julga mais entendido no assunto, você já não é mais da sua jurisdição biológica ou histórica e seu “pecado” é dívida social cobrada em parcelas de eterna argumentação.

Nenhuma mãe passa de fase sem que o “pai” vire uma carteirinha obrigatória pra se apresentar nessa história. Na verdade, se você não tá com ele, é melhor torcer pro cara calhar de ser um mau caráter completo e assumido, porque se ele for “só” meio mau caráter, ou meio bundão, ou “só” machista, “você não tem motivo pra não estar com ele”, “você não tem o direito de escolher não estar com ele”, “você não tem o direito de privar a criança da convivência dele” . E outros estapafúrdios de gênero.

Por essas e outras que o nosso simples prosseguir acaba sendo anárquico. Todo dia é sobreviver. À medicina que quer dominar, aos comentários pavê-pacumê da família, às relações de trabalho que balançam ou minguam, ao convite de exercer diariamente a vergonha, o medo e a culpa. A gente não quer ficar sozinha, mas, verdadeiramente, quanta gente realmente se solidariza sem nada deduzir da nossa condição? A solidão nessa conta é só o convite no verso, quando a convivência social engrossa nesse caldo não digerível. Nessas, a gente corre pra se preservar, pra afiar os dentes, pra simplesmente não passarem por cima.

– Sozinha.

A partir de certo momento, a gente persegue aquilo que realmente é, e até que me provem o contrário, eu só sou mãe. Como eu não sabia, nem convivia com muitas e nem tinha muitos canais de identificação, tive que correr atrás, pesquisei na internet e por lugares onde pudesse conversar pra pelo menos ter ideia do básico, seja lá o que fosse o básico! E tudo que eu achava era resultado em baby-center e blog de mulheres personificando a mãe-que-eu-não-era. Ali eu não chegava, ali eu não existia. Só fui descobrir depois de iniciada pelos círculos de gestantes e mulheres que a informação estava lá, mas só era alcançável através dos filtros da maternidade não alienada, que pra qualquer novata sem privilégio e instrução como eu era tão inacessível quanto discutir física quântica com uma cotia.

Não sei você, mas eu só tenho — isso quando tenho — algum poder sobre daqui a pouco, logo mais e quem sabe sobre o amanhã. Sobre ontem eu já não posso fazer nada, juro. Eu até poderia ter gastado um tempo da minha gravidez discutindo o que eu “poderia ter feito para não acontecer”, mas no meio de toda a “filosofação” o negócio era que eu tava grávida e queria ser mãe. Mas pra entrar pela porta da frente nesse mundinho materno me faltou um item essencial: um macho pra me garantir o passaporte da alegria pra família nuclear. Eu e outras que não tínhamos, pulamos o muro. E deu ruim.

A gravidez te dá (teoricamente) 40 semanas pra se preparar, o mundo não. Se ela não é programada e não foi legitimada pelo laço sagrado do casamento ou, no mínimo, não tem uma relação estável pra servir de cheque caução –  porque SIM, homem ainda é seguridade social para a mulher – você vai ter que acertar em dobro e na metade do tempo, porque você tá sozinha, e por isso eles precisam de garantias de que você tá pronta, mesmo que você esteja vulnerável e que o que quisesse (e precisasse) fosse digestão, recolhimento e acolhimento. Não, negócio aqui é pra ontem, e o slogan é:

“Você deu porque quis”.

Por essas e outras, minha gravidez foi basicamente ansiedade e correr atrás. Pude aproveitar muito pouco dela em si, toda energia que eu tinha foi dada para a resolução de questões com as quais eu instantaneamente tive de me deparar (sozinha) e, claro, com as quais o mundo inteiro instantaneamente se fez acreditar que eu no mínimo devia estar pronta:

“Você que se enfiou nessa,  agora sai”…

“DEPOIS DE NOVE MESES A GENTE VÊ O RESULTADO” — WASHINGTON, CUMPADI

A maternidade, como qualquer outro conceito, é como um pote de sorvete: a gente vive com a consciência do que era e é, mas no final das contas usa pra colocar o que vive e quer. Por isso, se você quer se encontrar com o significado universal da maternidade, apenas dê espaço para cada mãe que você conhecer. Entenda que a cultura é viva, a generalização é míope e que a maternidade em cada uma de nós é mutante, pode cair como pedra e pena na carne viva, e só alcança sua justiça quando é totalizada em soma, uma a uma, e acredite quando digo, qualquer tentativa de endurecimento dessa experiência é no mínimo impostora.

Nossa vida é viva, e por viver e se relacionar com as coisas através dos eixos de tempo e espaços sedimentados, ela é em seu viver complexa, exponencial, condicionada e ainda assim espontânea, interna e externa. Sem enrolar muito na na demagogia, é uma experiência pra gente admitir com humildade que é aquele tal de inapreensível. MAS mesmo assim não duvide, mesmo a gente aqui servindo uma ilusão de tempo, não entendendo direito esse grão de nada do universo que apelidamos carinhosamente de Terra, e nem sequer podendo orientar com precisão a evolução da fermentação de um pão de padaria, mesmo assim, a grande maioria da população confronta e determina a fixação da forma, refuta a mutabilidade das ideias, violenta com a constância, um verdadeiro sonho de sedimentação, que só se realiza na cafetinagem da cultura “pelo bem comum”, que nem é tão comum, e nem tão bom assim

Esse argumento podia ser pra falar de muita coisa, mas o objetivo aqui é remexer a terra santa, libertar a condenada freudiana, balançar com a geologia da já nem tão tradicional família brasileira, encontrar e abraçar a Mãe Julgada.

Eu tenho um desentendimento muito forte com a sociedade no que diz respeito à maternidade, mas o maior deles, por experiência, é com o atachamento umbilical insolúvel que se dá entre uma mulher e o homem a quem julgam seu pertencimento. Por que né, se relacionar com mais de um homem na sua vida tudo bem, “a gente não é primitivo”, mas pra fazer um filho tem que arrumar alguém que seja pai, “tem que ter uma figura masculina junta”… Ah tá.

A gente no mínimo se quebra pra crescer, vive com o medo de violência que pode vir todo dia, não discutimos nossa sexualidade, e no dia a dia — por desconexão com nossa pulsação interna e a natureza da nossa dignidade humana — esboçamos uma esquizosexualidade fajuta, inacessível em todos os seus termos para quem dá e quem toma, e nisso apenas vive e perpetua traumas e abusos institucionalizados no nosso gênero.

Como que a gente iria conseguir alcançar essas relações de intimidade que esboçam sonhos, sem conhecimento sobre fisiologia e sexualidade, tampando o sol com a peneira furada de uma moral que em verdade mais se versa que se concretiza, enquanto em contrapartida a mídia, o marketing e os nossos pares de geração nos hiperssexualizam e predam. C-O-M-O-?

É atentado contra nossa dignidade humana enquanto mulher nos constranger pelo exercício que é constitucionalmente autônomo da nossa sexualidade, segundo o tratado internacional da CEDAW, que vale tanto ou mais que qualquer lei da nossa própria constituição diz: é VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS constranger uma mulher na esfera pública ou privada em todo assunto no que diga respeito a sua sexualidade e/ou suas escolhas reprodutivas.

Artigo 1 – Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher,  independente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

Disso tudo, deixo duas coisas que são certas: ninguém faz filho com o dedo e também nenhum filho é assegurado apenas pela relação “romântica” entre os pais, os filhos só são verdadeiramente assegurados pelo bem estar que recebem em suas relações que são próprias.

A nossa vida, enquanto mulheres e mães, seria muito mais fácil se as pessoas simplesmente admitissem e respeitassem nossa autonomia, se nós não tivéssemos que constantemente legitimar nossa individualidade para sermos reconhecidas como pessoas de capital humano plural.

Quando o convite feito for contra a nossa solidão.

Mas até lá amiga, o negócio é a gente seguir juntas.

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