Eu também já fui "a vadia" da vida de algum homem. 

Eu também já fui "a feminista louca" que luta pelos direitos das mulheres, pela lei Maria da Penha e que já precisou acioná-la.

Também vou lutar até o fim pelos direitos da minha filha, que vive em guarda compartilhada.

Também já fui chamada de mentirosa.

Também já foi dito a mim, por "homens de boa fé", que o sistema na verdade era "feminista", uma vez que "estava privilegiando os direitos das mulheres nos últimos tempos, em detrimendo dos dos homens". Já foi dito para mim que uma lei contra o feminicídio não se justificava, pois já tínhamos uma para assassinatos.

Também já fui a vadia que inspira outras mulheres a fazer coisas.

Também já fui atacada por supostamente ser uma mãe ruim.

Também já fui a vadia que as pessoas não sabem do que é capaz de fazer.

Também já fui todas essas coisas que estão escritas numa carta deixada pelo pai que assassinou seu filho e a mãe dele, mais outras dez pessoas, em Campinas, nesse episódio terrível que abriu o ano de 2017 e que tem a conivência da sociedade brasileira. E tem a conivência coletiva porque tudo isso que foi dito sobre Isamara, que foi assassinada por ter uma disputa judicial sobre seu filho com o pai dele, já foi dito sobre toda mulher um dia na vida. Porque essa carta não reflete o pensamento de um doente psicopata que é a exceção entre as pessoas. Foi escrita por um homem comum, desses com quem a gente esbarra todos os dias, que são considerados bons pais porque compram porquinhos da índia para suas crianças ou um cara legal porque tem muitos amigos em um bar. Foi escrita por um homem que é visto e considerado por outros com quem convivem, e também por outras mulheres, como um cara do bem, um cara bacana. Porque a misoginia não se abriga no psicopata. Ela se abriga em cada uma das pessoas comuns e absolutamente normais que convivem conosco todos os dias e que não se fartam de apoiar o discurso machista e misógino, seja falando sério, seja em tom de piadinha, que, sim, inspira milhares de homens todos os dias, e que esse assassino agora apenas representa momentaneamente – posto que logo mais, muito rapidamente, teremos outro.

Trecho presente em matéria da mídia tradicional.

 

Ele acabou de matar. E as pessoas continuam a achar "estranho" e a justificar. Porque ele estava sofrendo. Porque era uma boa pessoa.Porque tinha amigos num bar. Porque era "uma pessoa de bem", dessas que acha que o pessoal dos direitos humanos está aí para defender bandido, não para garantir, por exemplo, que menos mulheres sejam vítimas. Porque havia alguma coisa "de errada". 

Não há nada de estranho com esse homem, ele é o cara bacanão normalzão sobre quem todas falamos todos os dias, nas estatísticas de violência contra a mulher e nas rodas de caras bacanões normalzões que se comprazem em diminuir, ofender, agredir mulheres.

Há alguma coisa errada sim, bastante errada: perpetuar esse discurso de vitimização do assassino e de culpabilização da mãe. É errado essa mídia irresponsável e cúmplice divulgar uma carta onde um assassino se justifica. É errado achar que tudo bem dar voz ao assassino. Não está tudo bem.

A má notícia é que essa foi só a primeira notícia de assassinato do ano, que matou uma mulher e seu filho junto – além de tantas outras pessoas – e por motivo de perda de poder de um homem sobre a mulher.

E não há nenhuma boa notícia.

Enquanto houver, numa rodinha de homens, numa família, num grupo de whatsapp, em qualquer lugar presencial ou virtual, um cara, um tio, um pai, um avô, um qualquer que seja esse homem, de qualquer idade, cor, credo e quantidade de dinheiro no banco chamando mulheres de vadias, difamando a mãe de seus filhos por não ter cedido ao que um pai exigia, justificando o machismo, o sexismo e a misoginia, vai haver mortes como essa. Vai continuar a ter mulher morta. Vai continuar a ter assassinatos brutais. O que significa que ainda vamos noticiar isso por muito tempo… O que significa que esses caras e a sociedade que os apoia vão continuar matando. 

A pergunta que eu tenho pra fazer é: quando é que você, gente que se diz "esclarecida", vai começar a ouvir as mulheres e suas denúncias diárias? Porque quando ela estiverem mortas será tarde demais.

Mulheres: continuem a falar. Registrem. Publiquem. Filmem. Não se calem jamais. 

Recomendo a leitura do texto de Carol Patrocínio, "Violência nunca é sobre amor: dissecando a carta do assassino de Campinas". Nele você encontrará a carta deste cara comum. Devidamente explicada, como deveria ser.

 

 

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