Sempre que uma celebridade – sem avançar na discussão sobre quem é uma ou o quê, de fato, transforma uma pessoa em uma – dá algum depoimento, escreve algum texto ou posta alguma foto, é natural que as pessoas se interessem. E por que? Mais do que um fetiche por pessoas famosas, aquilo que é dito em público por pessoas conhecidas acaba sendo interpretado como uma representação coletiva. Nós podemos ser uns babacas e falar um monte de babaquices em nossas vidas privadas, inclusive porque para ser babaca parece não haver limites. Mas quando estamos no ambiente que é comum a todos, as babaquices que falamos podem atingir algumas pessoas, ferir outras, eliciar gatilhos emocionais em mais algumas, podem configurar crime, podem oprimir grupos, podem trazer uma série de consequências que vão para além do indivíduo e atingem o coletivo. Isso sem falar no fato de que muitas delas disseminam desinformação, que é aquela informação errada que não serve pra nada além de causar. Assim, o que as personalidades falam e defendem deixam de dizer respeito somente a elas e passam a representar uma voz coletiva. A grande mídia se encarrega de fazer isso muito bem, inclusive de dar voz a alguns grupos e silenciar outros. Falei sobre isso outro dia, no Encontro da Maternagem Consciente, sobre ausências que são produzidas e presenças que são construídas. 

Essa semana muita gente debateu a tal carta do Gregório Duvivier publicada em um grande tabloide – que eu, particularmente, achei de um mau gosto tremendo, pra não falar no romantismo construído para fins promocionais, e que disparou inúmeros gatilhos emocionais tristes em mim (e acredito que em muitas outras moças), de fins de relacionamentos onde o tal do "eu te amo" foi muitas vezes dito pra encobrir grandes violências. O debate sobre a carta promocional de venda desse rapaz perdeu quase toda a força depois que apareceu, misteriosamente, uma foto, digamos… intensa… no perfil oficial do modelo Paulo Zulu – porque nem só de más notícias vive a brasileira média (credo!), né mores? E hoje nos deparamos com um alvoroço sobre um depoimento da Bela Gil em que ela diz ter ingerido sua placenta após o parto.

Então vamos falar da Bela Gil, porque do Paulo Zulu prefiro não comentar pra evitar a fadiga (mentira, vou comentar sim, ao final).

Eu gosto da Bela Gil. Acho o trabalho dela muito bacana, ela tem um objetivo muito louvável em querer ajudar as pessoas a mudar o olhar sobre a alimentação e a forma de viver. Já a convidei para uma empreitada certa vez, à qual ela respondeu muito docemente. É uma pessoa aparentemente bacana e gentil. E, mais que isso, acho Bela muito corajosa. Ela pauta questões polêmicas e faz isso sem pretensões de abraçar uma "ideologia" x ou y. Se há críticas mais aprofundadas sobre ela, realmente desconheço – inclusive porque não leio sobre celebridades. Bela protagonizou aquele furdunço sobre escovar o dente com cúrcuma – que gerou um texto aqui na plataforma Cientista Que Virou Mãe. Depois parece que sugeriu um churrasco de melancia (por mim ok também, não vou comer mesmo). Outro dia falou algo sobre nós, fêmeas, termos nascido para parir. E hoje declarou ter comido a placenta depois do nascimento de seu novo bebê.

Povo ficou doido com essa última.

Mas vejam… Por que essa rejeição toda? Por que esse alvoroço pelo último depoimento e não pelo penúltimo? Qual o problema com a ingestão de placenta? É você quem vai ingerir? Não, se não te obrigarem – e até onde sei, certos hospitais e profissionais da obstetrícia estão obrigando mulheres a cirurgias, não a comerem a placenta. Então por que essa agonia? Você não vai ser obrigado a servir a placenta à milanesa no almoço de domingo. Nem vai trocar seu cafezinho da tarde por tintura de placenta. Também não irá a um churrasco onde te servirão uma. Então qual o motivo dessa angústia? Um dos motivos é: estranhamento por uma prática que, sim, as mulheres vêm fazendo em diferentes comunidades e há muitos séculos. Como vivemos em uma sociedade totalmente medicalizada, cientificista, cartesiana, tecnocrática, onde a ciência se apropriou de dogmas antes ditados pela Igreja, para nos sentirmos seguros buscamos explicações científicas. Se não as temos, então rechaçamos algo. Ou julgamos esse "algo" como primitivo, involuído, bárbaro. Sem considerar que, neste mundo mundo vasto mundo, existem e coexistem diversas cosmovisões, diversos modos de conceber a vida, a saúde e a existência. O fato de nós, sociedade ocidental autoproclamada civilizada, endeusarmos a ciência e a tecnologia, faz com que rejeitemos, ridicularizemos e condenemos ao ostracismo práticas por nós consideradas bizarras, mas que na verdade são mais antigas que nós mesmos. E isso porque nosso atrasado-porém-moderno e fragmentado modo de compreender a vida nos fez rejeitar conhecimentos ancestrais, julgando os nossos como melhores. A apropriação do conhecimento e dos modos de viver pela ciência, pela medicina, pela tecnologia fez isso com a gente: nos tornou meritocratas científicos julgadores de práticas diferentes. Mas não podemos nos esquecer de que foi essa mesma concepção científica, médica, tecnológica compartimentalizada do mundo que trouxe todas as iatrogêneses que conhecemos hoje, quando aquilo que foi feito para curar, melhorar, aperfeiçoar tem gerado doenças, mortes e declínios. Quer dizer então que se tivermos um ou dois grandes estudos científicos mostrando que a ingestão de placenta traz, de fato, benefícios à saúde da puérpera tá tudo bem? Mas quem faz a ciência? Quem financia a ciência? A quem interessa a ciência? São todas questões que precisam ser lembradas quando buscamos explicações científicas para tudo e para nada. Há alguns grupos de pesquisa no Reino Unido que estão investigando possíveis benefícios da ingestão – in natura ou encapsulada – da placenta. O FDA norte-americano já está incentivando estudos clínicos controlados sobre, também. Então agora tudo bem? Isso me lembra muito o furdunço sobre o parto domiciliar. Se hoje ainda há balacobaco toda vez que uma grande celebridade decide parir em casa, imagine o que era isso há 10, 15 anos? Mas então muitas celebridades começam a aderir, a mídia começa a girar em torno do assunto – sim, com aquele tom debochador ou alarmista, baseado no discurso do risco – e mais informação começa a surgir. 

E isso é muito bom.

Claro que para a Bela Gil não deve ser nada bom – e inclusive, péssimo – ser ofendida e xingada apenas porque escolheu fazer algo sobre sua própria vida e falar sobre. Inclusive é bom lembrar que mulheres tiveram suas vidas devastadas por conta disso, não sei se vocês se lembram… Mas para a coletividade, falar sobre tabus pode ser bom, pois se discute mais a respeito e muitas dúvidas podem ser dirimidas.

Eu, particularmente, achei espetacular ela ter contado isso. Acho que vai levar muitas pessoas a irem em busca de mais informações. Mas não foi esse mesmo sentimento que nutri com relação ao seu depoimento anterior, quando ela afirmou que "nós, fêmeas, nascemos para parir". E tudo bem que ela tenha dito isso também, como eu disse lá em cima no início do texto, ninguém acerta sempre. E nesse ela errou feio. Acho muito mais sério que uma celebridade como ela tenha dito isso sobre o parir que o que disse sobre comer placenta. Por que? Porque comer placenta é uma decisão individual, dela, que não diz respeito a nós. Mas afirmar que nós, fêmeas, nascemos para parir, não está correto. Pelo contrário. É bastante prejudicial.

Por que?

Bem fácil de explicar: porque nós, mulheres, nascemos para tudo o que quisermos fazer. Não nascemos para uma determinada finalidade utilitária, biológica. Nascemos para explorarmos todas as nossas potencialidades e, na verdade, o que muitas de nós têm feito é sobreviver. Muitas mulheres sequer podem parir. Muitas mulheres sequer querem parir. Sem angústias, sei fazer exatamente a ponderação que é necessária nesta afirmação: sei que ela está dizendo que parir é um ato natural, claro que sei. E que, sendo natural, não deveria ser tratado como doença, como risco, como perigo iminente de morte. Maravilha. Mas não podemos negar os prejuízos de uma afirmação em função de seus benefícios. Nós, mulheres, não nascemos para parir. E acreditar nisso é, também, a base para muita coisa reacionária que tem emplacado nos últimos anos aqui nesse Brasil que vive tempos cinza e tensos de negação dos direitos reprodutivos das mulheres. Nós, mulheres, não nascemos para uma determinada finalidade social ou biológica. Você já ouviu isso sobre homens? Que os homens nasceram para ser pais ou trazer filhos ao mundo? Não ouviu. Mas com certeza já ouviu que a mulher nasceu para parir, amamentar, cuidar dos filhos, da casa, para ser bela, recatada e do lar. Que toda mulher possa fazer cada coisa dessas, se assim quiser, sem que isso lhe seja imposto. Que possamos parir quando assim quisermos – e parece que não estamos podendo, com 52% de cesarianas. Que possamos amamentar quando assim quisermos – e parece que não estamos podendo, com licença maternidade de míseros 3 meses e profissionais que nos empurram a fórmula da grande indústria sem nenhum esforço para nos apoiar na amamentação. Que possamos cuidar dos filhos se assim quisermos – aí já começamos a entrar no terreno da utopia, ignorando mulheres que não podem abandonar a geração de renda se não quiserem morrer de fome. E assim por diante. Que possamos fazer aquilo que bem quisermos. Parir é uma dessas coisas? Com certeza. Mas não nascemos para um fim.

Foi terrível a Bela ter dito isso de que nascemos para parir? Sem drama, não foi terrível, foi só equivocado. Ela teve a intenção de excluir mulheres ou parecer arrogante? Não estou dentro da cabeça dela, mas acredito piamente que não, que foi apenas um incentivo para que as mulheres que querem parir acreditem em sua força – não somente a força biológica que é preciso ter pra fazer um bebê nascer, mas especialmente a força contra um sistema que vê mulheres como receptáculos para um produto (um bebê). Então vamos execrá-la? Não faço esse tipo. Prefiro sugerir que ela procure uma boa assessoria para os fins de debate sobre a maternidade, que pretende fazer. E que faça um debate de qualidade, inclusivo e problematizador. Celebridades precisam se conscientizar de seu papel social. Formadores de opinião não podem servir só pra vender cerveja ou chinelo. Mas especialmente para ajudar a coletividade a pensar além do que querem que nós pensemos.

Por fim, vamos falar do Paulo Zulu. As miga ficaram loka. Ele foi muito elogiado. Por homens, inclusive. Um homem lindo. Mais de 50 anos. Com uma forma física invejável. Pois é. Não vou me alongar muito na questão (desculpe o uso dessa palavra nesse momento, mas foi mais forte do que eu). Vou apenas propor uma reflexão: 

O QUE ACONTECERIA SE FOSSE COM UMA MULHER? 

Com um nu frontal vazado em sua página? Ela seria tão elogiada assim? E como estaria sua vida? Como ela estaria vivendo agora, dois dias depois? Será que palavras doces seriam dirigidas a ela? Porque será que temos hoje uma modalidade categorizada como crime que se baseia na pornografia de vingança? Os efeitos de uma foto de nudez vazada são os mesmos para homens e mulheres? 

Era só isso que eu tinha pra falar sobre esse episódio mesmo.

Finalizo dizendo que eu sou daquelas que não se importa com o que as celebridades fazem ou deixam de fazer de suas vidas. Mas vejo como muito importante o debate sobre as ausências e presenças que elas produzem quando falam ou deixam de falar de algo.

Ah sim, não falei do Gregório Duvivier e sua "carta de amor".

E nem vou falar porque não sou obrigada.  Pra mim, o que ele fez entra naquele tópico lá de cima, sobre as babaquices que não têm limites.

 

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