Nossa geração de mães, pais, cuidadores e educadores foi educada sob a égide da opressão, hierarquia, medo e violência: “Aqui quem manda sou eu”, “Quando eu falo, você cala a boca”, “Enquanto eu pagar as contas, você vai fazer o que eu quiser”, “Eu mando e você obedece” e expressões afins. Isso fazia sentido em uma época em que pouco ou nenhum debate chegava às famílias sobre o que, de fato, representava esse comportamento, sobre como constituía uma forma de violência, controle e opressão e como produzia consequências nocivas, não apenas para a criança, mas para toda a sociedade.

Obediência: “define a ação de quem obedece, de quem é dócil ou submisso. Uma pessoa que segue, cumpre ou cede às vontades ou ordens de alguém. Um sujeito obediente é também considerado passivo ou submisso perante outra pessoa, que é dominante, seja através do respeito e admiração ou pelo medo, temor ou receio das possíveis consequências ao desobedecer o dominador”. Essa é uma definição formal do conceito de “obediência”, tão desejada quando o assunto é educação infantil. Felizmente, estamos caminhando para que seja cada vez menos, e conseguindo que assim seja. Mas ainda há muita gente que deseja que a obediência seja uma característica das crianças – em casa, na escola e em espaços públicos – e com dúvidas sobre o porquê de ser ruim. Mas, sim, é muito ruim. E a seguir trago cinco pontos para refletirmos sobre.

Obediência não traz segurança, pelo contrário.

Muitos cuidadores ficam confusos sobre isso porque acreditam que a obediência leva à segurança das crianças, afinal, se elas obedecem aos nossos comandos, deixam de fazer o que é errado. Mas esse é só o primeiro engano, porque nem sempre o que as orientamos a fazer é o certo. Aliás, seria necessário um debate muito profundo aqui sobre o que é certo e errado em um mundo ditado por valores de consumo, mas não é o caso agora. Acreditar que tudo o que um adulto manda fazer é certo, é ingênuo. Um adulto carrega consigo dores e questões íntimas que alteram nossa visão de certo e errado, de forma que transferimos isso às crianças, que passam a ser obrigadas a repetir esses comportamentos. Quando ensinamos que uma criança deve obedecer, ela passa a estar em perigo. Porque quando um adulto estiver sozinho com ela e a mandar fazer algo, ela fará, afinal não foi isso que aprendeu? E, ao contrário de trazer segurança, a coloca em ainda maior risco.

A obediência é construída sobre o medo

“Obedecer” anda de braços dados com algo muito assustador: o medo. Claro, porque o conceito de obediência está atrelado à existência de uma diferença de poder entre quem manda e quem obedece. O primeiro pode fazer isso, mandar, o segundo não pode e a ele só resta obedecer. E, sim, essa relação é, com frequência, construída sobre o medo. Porque se uma criança obedece a um adulto é porque ela tem medo das consequências que pode sofrer caso não o obedeça. E, na grande maioria dos casos, essas consequências estão associadas a violências ou abusos de diferentes tipos: tapas, ameaças, punições, privações, abandonos, xingamentos. Então aqui é importante que a gente reflita: a relação que desejamos construir com nossos filhos é uma relação baseada no medo? Ou é uma relação baseada na total confiança, no entendimento e no vínculo positivo? Eu fico com a última opção.

O estímulo à obediência leva à mentira

E esse tópico anda juntinho com o anterior. Se a criança obedece porque tem medo do que podem fazer com ela caso não obedeça, ela, ao invés de deixar de fazer aquilo, pode apenas mentir. Ou pode esperar que seu cuidador não esteja por perto para, então, fazer – o que também é mentir. Ou seja: quando desejamos apenas que a criança obedeça, no lugar de compreender verdadeiramente os reais motivos das nossas orientações, nós a estamos estimulando, inconscientemente, a mentir. E sim, elas vão mentir, porque sentem medo.

Criança obediente não é sinônimo de “criança educada”

E a gente tem que refletir e muito sobre essa tal expressão “criança educada”, porque ela esconde mil armadilhas, especialmente em um mundo que acha que criança deve ser quieta, silenciosa, quase inexistente. Mas definitivamente, uma criança que obedece a tudo não é, por si só, uma criança bem orientada. Pelo contrário. É muito mais provável que seja uma criança absolutamente controlada, silenciada, apagada, com medo e que não tem oportunidades para descobrir a si e ao mundo. E não há qualquer chance de que uma criança estimulada a ser desta forma consiga se desenvolver como um adolescente e, depois, um jovem e um adulto pleno, confiante, seguro de si e que consegue facilmente se relacionar bem com as pessoas. Controle não é educação. Silenciamento não é educação. Fazer o que pais e professores desejam no lugar de ser estimulado a refletir por si não é educação. É apenas a gratificação e a satisfação dos desejos dos adultos.

O que precisa estar no lugar da obediência?

O entendimento. A confiança que uma criança vai construindo em seus pais, em suas mães, em seus educadores. A total coerência entre o que ela ouve que precisa fazer e o que ela vê sendo feito por aqueles que dizem o que ela precisa fazer. Um ambiente de tranquilidade e respeito para que ela possa crescer segura de que as orientações que recebe fazem sentido, se sustentam e, de fato, a protegem. E nada disso é feito sob ameaça, constrangimento, punição ou coação. Isso é construído diariamente, nas conversas, nos exemplos, nas orientações, em um ambiente em que o “Faça isso porque estou mandando” seja substituído pelo “É importante que você faça isso para não se machucar, ou para não machucar os outros, ou porque está me magoando, ou porque eu realmente estou tentando cuidar bem de você”.

Ah, Ligia, mas isso não é fácil”. Não, não é. Mas criar e educar filhos não está nem de longe no rol das tarefas em que facilidade seja algo a ser buscado. A facilidade na educação das crianças esconde perigos, dores e futuros transtornos de saúde mental. Lidar com seres humanos não é algo dos domínios da facilidade. Mas o tipo de relação que se deseja construir com as crianças, o tipo de vivências de adolescência que se deseja oferecer e viver, o adulto que queremos contribuir para que se forme, isso precisa estar acima da facilidade. Não é fácil substituir o MANDAR, o estímulo ao OBEDECER, pela confiança, pelo exemplo e pelo respeito, especialmente para nós, uma geração que foi criada assim. Mas com certeza é o único caminho para uma infância, uma adolescência, uma idade adulta e uma coletividade mais saudável, melhor resolvida e que não saia por aí machucando os outros e desejando, por sua vez, mandar cada vez mais e ser cada vez mais obedecida. Obediência não é respeito.

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Parte do meu trabalho é orientar e apoiar mulheres nas diversas questões de suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que te explicamos como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças.

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