NÃO REVISADO.

 

Acordei num desses dias em que tudo parece ruim. O espelho não ajuda, brilham os defeitos, as dificuldades da vida ocupam o pensamento com a grandeza dos ataques de guerra. Até a voz soa estranha, fraca, esganiçada. A vontade é a de se esconder sob o cobertor e esperar que a noite venha, e com ela, outro dia.

Da cozinha, porém, vem a lembrança do bolo de frutas. O cheiro do leite e do mel. Levanto.

Ao lado da mesa me espera um jornal, e diante dos meus manjares, o abro. Começo.

Na primeira página, uma noticia confunde. A justiça do Rio quer impedir um obstetra de São Paulo de atender partos domiciliares. Não parece fazer sentido. Justiça do Rio, médico de São Paulo? Parece que o crime desse médico foi dar uma entrevista a um programa de enorme audiência no qual teve a audácia de se posicionar a favor do parto domiciliar. O que incomoda tanto em mulheres parindo em casa? Me pergunto, estarrecida.

Uma mordida de bolo. Um gole de leite. Viro a página. Há ali, bem no meio, uma foto chocante. Uma mulher desacordada, com as calças à altura das canelas. Sobre ela, o corpo de sua filha, uma menininha que parece não ter mais que 3 anos. Estão no mato. Não entendo.  A manchete diz que a mãe foi estuprada na presença da filha, que também foi machucada. Ambas estão em coma. E essa foto? Por que essa foto?

Preciso de um pouco mais de força para mastigar o próximo pedaço, e como num susto, um nome de mulher salta do alto da página seguinte. Cláudia. Cláudia Silva Ferreira.  38 anos. Assassinada com dois tiros, cujo corpo preto foi arrastado pendurado do lado de fora do porta malas de uma viatura da polícia militar. Cláudia deixou 4 filhos.

Estou enjoada. Decido passar um café. Na cozinha a tv ligada mostra um repórter sério, uma carinha de nojo e muita investigação. Jandira saiu de casa para um aborto clandestino e nunca mais voltou. Seu corpo foi encontrado carbonizado, mas ninguém quer saber quem matou Jandira. A pergunta que não cala é “quem é essa mulher irresponsável que sai de casa para tirar a vida de seu próprio bebê?”.

Será que o café desce? Tem que descer. Respiro fundo. Engulo seco. Levanto a cabeça. Preciso de energia para encarar o mundo e procurar emprego num país onde as mulheres trabalham o dobro de horas, mas ganham cerca de 64% do salário dos homens. Enquanto penso no que fazer para sustentar meus filhos, o telefone apita e recebo uma notificação chocante.  No Rio Grande do Sul, durante a madrugada, a polícia entrou na casa de uma mulher e a levou contra sua vontade para uma cirurgia cesárea. Adelir Guimarães Lovari, é esse o nome da mulher adulta e consciente, que passou por uma cirurgia que não queria, na base da ameaça de que sua desobediência acarretaria na prisão de seu marido. Lembro de Ana Carolina e de sua filha, mortas. Assassinadas, vítimas de violência obstétrica.

Tenho lágrimas nos olhos. Uma faísca de alguma coisa vem crescendo em meu peito. Em meu estômago. Uma tremedeira estranha alcança a ponta dos meus dedos e minha pele eriçada parece poder eletrocutar alguma coisa.

Ouço um barulho estranho vindo pela janela. Panelas? Estão batendo panelas? Ouço gritos de piranha, vadia, puta, dirigidos à presidenta do Brasil enquanto ela tenta fazer um discurso. Volto para a televisão para entender o que está acontecendo, e lá um deputado diz ao vivo a uma deputada que não a estupra porque ela não merece, porque ela é feia e não merece ser estuprada. De Brasília vêm as notícias do fim do Ministério das mulheres, da igualdade racial e dos direitos humanos e de séquito de ministros do governo interino. Todos homens. Todos brancos.

Do café o último gole quando toca a campainha num ritmo acelerado. Abro a porta e lá estão elas. Mulheres, amigas. Todas choram, bradam. Demoro a entender o que querem me dizer. Quando finalmente conseguimos conversar, é a minha vez de cair no choro. Estou sem ar, sem chão, mas com a memória presente em meu próprio corpo, em todos os nossos corpos, abusados, violentados, oprimidos, estuprados. Estuprados como o dela, menina, 16 anos e 33 homens. Isadora não aguentou ver a história repetida e tirou sua própria vida. É algo que passa em minha mente, confesso. Para quê continuar? Como seguir adiante frente a tudo isso? Mas meu olhar passa de relance pela xícara recém esvaziada. Da borra de café no fundo dela o destino chama. Estamos de mãos dadas, nos secamos os prantos. Dandara passa na frente e pela porta saímos. A rua chama, a vagina sangra, o peito vaza. Estamos juntas. Somos muitas. Não nos calarão.

 

***

 

Em 2010, engravidei do meu primeiro filho. Achava que parir era algo corriqueiro. Não merecia grandes atenções além de talvez lembrar de respirar. Ao optar por um enxoval sustentável, conheci as fraldas de pano e através das mulheres que faziam parte de um grupo virtual nesse sentido, descobri as diferenças entre parto normal e parto natural. A humanização do parto era incipiente nessa época, e caí de paraquedas numa lista de e-mail, a Parto Nosso. Parecia que eu era quem tinha acabado de nascer. O que era aquilo tudo do que aquelas mulheres estavam falando??? Corte na vagina, ficar sem comer, sem beber água, sozinha? Alguém subir na minha barriga pra empurrar o bebê? Cordão enrolado não é motivo de cesárea? Percebi que precisava estudar, ler, conversar, me informar.

Moradora do interior do Estado do Rio, às 34 semanas de gestação, troquei o obstetra de sempre por outro, indicado por outras mulheres. Vendemos algumas coisas, juntamos cifras de 4 números e pagamos o meu parto natural. Ah! Que beleza! Nem foi tão difícil assim. Parir é lindo!! Vamos todas!!! Entrei numa fase inebriante e cega, onde quem não tinha passado pela mesma experiência do que eu era relegada a um lugar menor, estranho, distante.
 

Uma amiga engravida lá perto de mim. E eu digo, cheia das minhas razões: “você tem que parir. Parir é ótimo!”, e conto, conto, conto e reconto a minha história. Ela, mulher negra, periférica, sem acesso à internet, sem acesso aos 4 dígitos, vai parir no SUS. Mas não no SUS que funciona. Vai praquele da história de terror. Nas primeiras contrações, ela vai para a maternidade, examinam, e ela volta pra casa. Ainda não é hora. À noite, novamente ao hospital. Ninguém entra. Ela vai sozinha, examinada, assustada. Ouve do médico que a filha está em sofrimento e que se ela não operar em cinco minutos, a menina morre. Quem preparar uma cirurgia em cinco minutos? Quanto tempo essa mulher passa  achando que a filha estava morta na barriga? Sozinha na sala de cirurgia, a bebê é retirada, chora, e vai pra longe. A mulher fica, sozinha, sem notícias, com frio, muito frio, muito vômito. Mas não há ninguém no quarto. Ninguém pra dizer como está a filha, ninguém para ajudar a levantar a ir ao banheiro.

Ela queria menos do que eu? Eu mereci mais do que ela?

Eu amava a humanização do nascimento. Mas depois dessa história, eu virei ativista pela humanização do nascimento.

Em 2012 o CREMERJ entrou com a ação contra o obstetra Jorge Kuhn, de São Paulo, que atendia partos domiciliares. Algumas mulheres aqui do Rio de Janeiro começaram a se perguntar o que poderia ser feito, e em cerca de 10 dias, um grande ato na zona sul do Rio chamava atenção para o cenário do nascimento no Brasil. Foi a Marcha do Parto em Casa. Fizemos barulho, ganhamos força, estávamos em rede.

A partir daí o caminho já estava aberto. A expressão “Violência obstétrica” foi ganhando contornos, ganhando a mídia, se fazendo entender. Mulheres se organizaram por todo o país em atos. Eu, sem perceber, também me organizava.

Cada caso de violência contra a mulher do qual eu tomava conhecimento, um pedaço de mim ressoava. Fui entendendo sobre o machismo, o feminismo, as lutas de classe, a desigualdade racial. Aprender a reconhecer meus privilégios tem sido o passo mais difícil, e mais importante. Pari dois meninos, um deles em casa, num parto autoassistido não planejado (ele nasceu muito rápido, e acabei parindo sem a presença da equipe). Educar crianças nascidas com um pênis mexe diariamente com minhas maiores dores, meus maiores medos. Medo de que eles reproduzam comportamentos que diminuam outras pessoas, as mulheres. Medo que façam com minhas semelhantes o que fizeram comigo, a vida toda. Mas querer que eles não sejam assim me move, a cada segundo. E a partir da escolha de fazer diferente, o que antes eu engolia, não engulo mais. É diante dos olhos dos meus filhos que eu me construo, e na frente deles, piadas misóginas passaram a ser respondidas, comportamentos preconceituosos deixaram de passar em branco. Diante dos olhos deles que meu corpo nu ganha ares de verdade, com pêlos, tamanhos, tudo meu, tudo o que eu preciso que eles reconheçam como o que é meu e que tem amor.

Para ser a mãe que eu quero ser, precisei deixar de ser esposa. Não que eu desacredite no casamento, mas quando descobri que tinha voz, foi difícil continuar me relacionando com alguém que não estava disposto a me ouvir. Precisei levantar a cabeça e dizer não. Dizer  “aqui você não entra mais”, dizer “agora é minha vez”, dizer “eu também mereço isso”. Ser mãe solo é difícil, o tempo todo. Aprendi sobre a guarda compartilhada e me reconectei comigo. A gente tem que lidar com a culpa, com o arrependimento, com a raiva e com o imediatismo das necessidades de crianças.

Acontece que essas dores não ressoam só em mim, ressoam nas mulheres maravilhosas que me cercam, nas amigas que a militância trouxe, e juntas nós vamos aprendendo, vamos abrindo os olhos, umas das outras, com empatia, com respeito, com cuidado e com presença.

Cada mulher que bate em minha porta, real ou virtual, traz consigo a carga de sua história. E eu aprendo. Aprendo que somos irmãs, que nas nossas diferenças, devemos ser quem queremos ser. As escolhas que fazemos, seja na nossa maternidade, na nossa carreira, na nossa sexualidade, não nos diminuem nunca, em nada. Empoderamento é algo que acontece na gente, dentro da gente, uma força que endurece nossa coluna e levanta nossos olhos. É pessoal e intransferível. Mas não é, não deve ser, uma mudança solitária. Para nós, que crescemos ouvindo sobre nossa histeria, nossa fraqueza, nossa loucura, olhar para os lados e saber que não estamos sozinhas, que não somos malucas, é a mola propulsora desse processo. Como diz a ciranda: “companheira, me ajuda. Eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor”. E se você não conhece essa cantoria, abre a porta e vai pra rua. Vem pro ato. Vem pra marcha. Ocuparemos. Resistiremos. Cresceremos. Nasceremos. Vamos!

 

*Agradeço a Carla, que me presenteou com a ideia desta crônica enquanto comíamos nosso bolo de frutas. Agradeço a todas as mulheres que andam de braços dados comigo nessa jornada.

 

Leave a Reply