Lembro-me da primeira vez que recebi um olhar torto por jogar a real sobre a maternidade. Não aquela maternidade fofa, onde o bebê é lindo e cada gritinho estridente é música para os nossos ouvidos. Mas a maternidade crua, do dia a dia, que esgota. Estava em uma loja de produtos infantis, grávida do meu segundo filho. A atendente também estava grávida. Conversávamos nós duas e uma terceira moça, que tinha um filho pequeno. A atendente falava que estava ansiosa para ter o seu bebê. A outra moça dizia que era uma delícia, a melhor coisa da vida de uma mulher. Eu, que vim com defeito de fábrica – sem filtro –, logo soltei:
“É uma delícia mesmo. Mas tem hora que dá vontade de se matar”.
Pela expressão na cara das duas, eu provavelmente pareci uma assassina psicopata louca que deveria ser internada agora, já. Sabe o silêncio constrangedor? Apareceu. E aí eu me senti muito envergonhada. Que tipo de mãe fala isso, certo? Eu deveria ser realmente uma pessoa péssima… Quem, em sã consciência, tem vontade de se matar tendo um bebê fofo, risonho e cheiroso?
Então percebi que o problema não são as crianças. Nunca é. Por mais cansada e no limite da sanidade que você esteja, se você parar para olhar seus filhos verdadeiramente, o tamanho do amor que brota é indiscutível. É muito amor!
Então qual é o problema?
Desde pequenas, somos condicionadas a agir de um modo que se construiu como “a natureza feminina correta e aceitável”. Dóceis, amáveis, que perdoam, que abraçam, obedientes. “Não fale alto”, “Sente-se direito”, “Espere sua vez quietinha”.
Quando crescemos, aprendemos que o mundo é assim mesmo, desigual e desumano, principalmente para nós, mulheres. O que não tem remédio, remediado está, então cabe a nós sermos fortes e aguentarmos – pelo bem da família, pelo bem dos filhos, pelo bem do status quo. Engraçada essa contradição, não é? Somos ensinadas a sermos dóceis, agentes passivas do mundo. Mas quando atingimos idade suficiente para entender que alguma coisa aí nessa equação não funciona, somos reverenciadas pela nossa força feminina que tudo aguenta. Afinal, o peso é grande mesmo. Ao invés de questionarmos a opressão, tratamos com resiliência a nossa condição. A mulher é chutada e aplaudida por levantar-se inúmeras vezes. De onde vem esse chute e como impedi-lo? Oras, isso é impossível. O importante é seguir em frente.
Toda essa construção da natureza feminina é um passo para a socialização da mulher para a maternidade. Somos maternais, temos um instinto materno, gostamos de cuidar, nosso cérebro é voltado para atividades que envolvam comunicação e afeto – todos esses discursos tornam a maternidade compulsória: o meio e o fim da mulher. Não existe mulher: existe alguém que está aqui para ser mãe. Claro, eu acredito que há sim mulheres que desejam ser mães, que abraçam a maternidade de peito aberto, que enxergam na maternidade uma meta de vida. Mas é impossível negar que, ao longo da nossa infância e juventude, vamos aprendendo o nosso dito “lugar no mundo”. Casar. Ter filhos. Morrer.
E aí viramos mães. Em um mundo onde caminhamos em desigualdade desde antes de nascer (vide as meninas que são abortadas na Índia pelo fato de serem… meninas). Onde só servimos para procriar.
As fantasias de namoro? Uma família lindíssima, talvez um cachorro. Será que ele será um bom pai? E agora o bebê nasceu, o que faço com o trabalho? Não, não posso querer trabalhar, seria muito egoísmo da minha parte. Nossa, talvez eu não deva reclamar tanto das noites em claro sozinha, poderia ser bem pior. Eu poderia não ter um marido e meu filho. Droga, já faz meses que o bebê nasceu, mas ainda não voltei ao meu peso… Daqui a pouco vão achar que eu não me cuido. Será que meu marido está reparando nisso? Será que eu deveria dar mais atenção a ele? Mas eu me sinto tão cansada, às vezes só quero dormir… Mas bem, quem falou que seria fácil, não é?
Quem nunca passou por situações como essas? Quem não conhece alguma mulher mãe que tenha passado por isso? Não é de se espantar que, para muitas mulheres, a maternidade se torne solitária, sobrecarregada e enlouquecedora…
Não é que eu não goste dos meus filhos. Eu não gosto de que, por ter filhos, eu precise ter meu acesso à educação comprometido por conta de instituições que não pensam em um espaço que acolha mulheres e crianças.
Amo meus filhos. Mas não gosto de ser barrada em entrevistas de emprego na hora em que respondo se tenho ou pretendo ter crianças.
Adoro meus filhos. Mas detesto esse olhar crítico que recebo quando estou em um restaurante, ou em uma loja, ou mesmo em uma exposição de arte, afinal eu deveria estar em casa, porque criança pequena “atrapalha”.
Eu adoro ver meus pequenos dormirem. Mas realmente odeio a carga de trabalho que eu e meu companheiro precisamos ter para vivermos minimamente bem.
Adoro nosso tempo em família. Mas detesto a péssima mobilidade urbana que não pensa nas crianças, sendo impossível sair de carrinho em muitas e muitas cidades, ou mesmo pegar um ônibus com segurança e, com isso, impede mulheres e crianças de ocuparem os espaços públicos.
A historinha (verídica!) que contei ali em cima é o resumo de ser mãe na sociedade atual: somos condicionadas à maternidade. Temos nossa individualidade negada. E quando atingimos um grau de esgotamento onde queremos simplesmente fugir (correndo peladas e gritando pela rua), somos lidas como monstros comedores de criancinhas.
Dizem que é fácil perceber quando uma mulher tem um ataque de loucura (que nada mais é do que se rebelar contra a sobrecarga que ela carrega). Mas ninguém percebe todo o caminho até ali. Na maternidade, multiplique essa frase por mil.
Então, sim. Amo meus filhos. Mas odeio ser mãe em um mundo que não suporta mulheres que querem alguma coisa além da maternidade e de fazer bolinhos de chuva à tarde. E, menos ainda, não suporta mulheres que ousam falar que isso não é o suficiente.
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