Minha filha vai fazer dois anos. E eu estou aqui numa viagem no tempo… Lembro do seu cheirinho logo que nasceu, da forma como me olhava tentando entender as coisas do mundo, enquanto mamava. Sinto o cheiro que tinha a casa em seus primeiros dias, revivo os meus sentimentos, lembro-me da vontade imensa de fazer um bom trabalho sem saber por onde começar.
As dúvidas chegando, a vontade de aprender tomando conta, a busca por informações. 
Os barulhinhos que ela fazia, a primeira risadinha, as caretas experimentando os alimentos, a expressão sentindo a textura da grama, a surpresa com o gosto da água, ela pequena no sling, ela crescendo no sling e hoje ela grande no sling.


 O primeiro engatinhar, o banho de óleo de cozinha, a primeira vez que cortei sua franja, todas as noites em que a embalei até que dormisse. As belezas do crescimento, os incômodos do crescimento, os seis dentinhos que nasceram juntos, a primeira febre, o primeiro tombo, ela brincando na piscina. A primeira vez que molhou os pezinhos no mar, que sentiu a areia entre os dedos, que viu um cachorro e se apaixonou, para se reapaixonar quando conheceu os gatos.

A minha fúria na primeira vez que um pediatra desavisado sugeriu o desmame e a minha gargalhada irônica quando, dois anos depois, a jovem pediatra teimou em não acreditar que baixo as febres dela com banhos mornos e que só usei antitérmico raras vezes. 
Os nomes aparecendo, as primeiras palavras, os liaus, os auaus, os cocós, os pipius, fântis, rafas, eixes, papo, ato, elho, os nomes das cores e a contagem até 4, pulando para 8 e 9.
O reconhecimento de si nas fotos como “nenê” e a mudança do reconhecimento de “nenê” para “é a Clara”.
A identificação das coisas grandes e pequenas como “Papai e bebê” ou “Mamãe e nenem”.
O choro cúmplice do choro dos amigos, os abraços de saudade, os “tchau, mamãe!” antes de ir para a aula (a mãe, não a filha), os “Écas!” quando ganha um beijo molhado ou vê uma comida que não conhece.
As dancinhas, as comemorações, os gritos de GOOOL, as corridas atrás da bola, a primeira vez no balanço, o amor pela lua e pelas estrelas (“Ói mãe, Úa e Stêla”) e o gosto voraz por suco de beterraba.
Aquela menininha que nasceu três dias depois do meu aniversário aprendeu, não sei como, a vir até mim sorrindo e soltando beijos enquanto traz nas mãos algo que sabe que não pode mexer.
Já alcança a pia do banheiro e come pasta de dente quando estamos distraídos.
Chama nossos amigos queridos por seus nomes e diz: “Tchau, migos”, quando se vão.
Aprendeu a comer sozinha segurando a colher como quem segura uma baqueta e diz que quer comer esse e esse, mas não aquele.
São dois anos dormindo juntinho e amamentando…
Menina sorridente, simpática, empática e centrada. 
Essa menina divertida e musical me ajudou a assumir quem de fato sou, me inspirou a mudar de rumos quando os rumos já não faziam mais brilhar os olhos, me fez buscar sonhos antigos, trouxe minha mãe de volta e me levou de volta a ela. Essa menina que me tornou mãe também me ajuda a ser filha…
Essa menina, por me ensinar a respeitá-la, também me ensinou a respeitar-me. E porque meu corpo também foi a sua casa, aprendi que ele vale muito mais do que tentam nos convencer de que vale.
Essa menina poderia ter nascido no mesmo dia que eu, se eu tivesse aceitado sugestões feitas por gente sem comprometimento ético. E quando é que eu poderia imaginar que, da minha recusa espontânea e desinformada pelo agendamento do seu nascimento, brotaria a guerrilheira ideológica que me tornei?
Por respeitar o seu tempo, aprendi a respeitar o meu.
Por respeitar sua vida, aprendi a respeitar a minha.
Por querer que ela viva num mundo que a respeite, aprendi que também sou soldado da revolução que é a luta contra o desrespeito.
Por não querê-la subjugada, aprendi a não me deixar subjugar.
Porque quero que ela seja feliz, aprendi a buscar a minha felicidade.
Minha filha vai fazer dois anos.
E, novamente, estou preparando uma festa para ela. Preparando os detalhes com minhas mãos e criatividade, exatamente como foi desde que me soube grávida: o enfeite do quarto celebrando seu nascimento, o livro de memórias de sua gravidez, os presentinhos do nascimento e toda a decoração de sua festinha de 1 ano. Para a de 2 aninhos, não seria diferente. Então estou aqui envolta pelos preparativos de uma festa cheia de detalhes, de gatinhos, de ideias tidas na madrugada, com coisinhas feitas e pensadas nos mínimos detalhes, com amigas envolvidas ainda que de longe.
Sinto-me feliz e satisfeita ao vê-la participando desses preparativos, brincando com o material, arrastando fitas e papéis.

Mas ao contrário do ano passado, essa não será uma festa somente para ela. Será uma festa para nós duas.
Pra comemorar que, nesses dois anos, crescemos muito e crescemos juntas. 
O que eu sinto agora?
Sentimento de vitória. De trabalho bem feito até esta etapa.
Vendo essa menina crescendo da maneira como está, tornando-se quem ela é, abrindo sorrisos e braços para amigos, acolhendo desconhecidos, sorrindo sempre para a vida, dançando ao som de tudo, distribuindo afeto e empatia, não tenho a menor dúvida de que estou, junto com o pai dela, fazendo um bom trabalho.
E se isso não for motivo pra comemorar, então nada mais será.
Clara: essa menina que me mostrou que ser mãe é, mesmo, uma revolução.
“Pão e um gole de leite são vitórias
Um quarto quente: uma batalha vencida!
Para te fazer crescer
Devo combater dia e noite” 
(Bertolt Brecht)

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