Todo mundo sabe que a sociedade ainda caminha a passos lentos no reconhecimento dos direitos das mulheres. Todo mundo sabe que existe uma séria iniquidade no acesso da mulher ao mercado de trabalho, marcado por desigualdades salariais, por serem vistas como indivíduos com menor capacidade intelectual, por serem preteridas. Todo mundo sabe que o mercado de trabalho vê a mulher como um “investimento arriscado”, em função de sua capacidade biológica de gerar filhos. Sem qualquer tipo de exagero, mulheres no mercado de trabalho são encaradas como “bombas relógios”, prestes a explodir (engravidar) a qualquer momento. Todo mundo sabe que é assim que as mulheres, todas elas, são vistas: como receptáculos em potencial, meros corpos com finalidade utilitária.
Quando estas mulheres se tornam mães, a situação fica ainda mais desigual, ainda mais séria. Exige-se que aquela profissional se dedique de maneira idêntica à sua situação anterior, antes da chegada dos filhos, ignorando a real e urgente necessidade de adaptações. O mercado passa a vê-la como profissionalmente menos disponível. E realmente somos. E parece bastante simples entender o motivo, não? Sim, ainda somos os principais cuidadores dos filhos que não são só nossos. Ainda somos nós as principais responsáveis por levá-los ao colégio, por preparar o lanche, por cuidar de suas roupas, cortar suas unhas, procurar possíveis piolhos que vêm da interação com outras crianças, velar a febre noturna, selecionar um bom pediatra, cuidar da qualidade da alimentação e manter uma rotina de sono minimamente razoável. Agendar o dentista, cortar o cabelo, cuidar do probleminha dermatológico, zelar pela boa qualidade das companhias, providenciar um quarto confortável, aconchegante e limpo, com roupa de cama e banho idem. Ainda somos as principais responsáveis por zelar por sua saúde emocional e entender de psicologia infantil a fim de poupá-los de traumas, experiências desagradáveis e coisas afins. Ainda somos as principais estrategistas no quesito “preparar as crianças para as mudanças de vida”. Sim, todo mundo sabe que ainda somos as principais responsáveis por tudo isso. Pais realmente participativos, que não veem as crianças como simples ornamentos a acompanhá-los em seus próprios compromissos, como se acessórios fossem, ainda são muito raros, representam uma diminutíssima parcela, e ainda é muito incipiente o movimento de homens pais em busca de verdadeira participação e disponibilidade – física, material, emocional, afetiva.
Mulheres mães ainda são impedidas de participar de eventos acadêmicos. Mulheres mães ainda são impedidas de amamentar em lugares públicos. Mulheres mães ainda sofrem discriminação em lugares como cinemas, restaurantes, cafés e outros lugares ditos “do mundo adulto”, onde adultos se julgam no direito de não encontrar crianças. Mulheres mães ainda são apontadas por um braço do próprio movimento feminista, que as julga como subalternas ou inferiorizadas pela condição da maternidade.
Todo mundo sabe disso. Se não sabe, deveria saber, e olhar para de fato ver.
Que a sociedade, de mentalidade ainda muito tacanha, machista e preconceituosa, trate, de maneira geral, as mães dessa maneira predatória, pode até ser historicamente compreensível – eu não acho que seja, mas tem gente que acha. Agora, que o Estado promova, defenda e legitime práticas que excluem as mães do justo e equitativo acesso ao mercado, ou as prejudique, ou tente mantê-las em situação de defasagem, exclusão e desigualdade, aí é inaceitável. Inaceitável. Indignante. Revoltante. E passível de denúncia por promoção da violência. Contra a mulher. Contra as mães.
E isso está acontecendo. No Estado de São Paulo. Comandado pelo governador Geraldo Alckmin.
No final do mês de janeiro deste ano, o governador Geraldo Alckmin moveu uma ação chamada de Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal contra a lei que regulamenta a licença maternidade das funcionárias públicas no período de estágio probatório. Vou explicar melhor. Todo funcionário público empossado precisa passar por um período de estágio probatório de 3 anos. No caso da mulher funcionária pública que engravida, e que tem direito à licença maternidade garantida por lei com duração de 6 meses, Alckmin quer que essa licença NÃO seja incluída no período de estágio probatório. Ou seja: a mulher mãe precisaria passar por um estágio probatório de 3 anos e 6 meses.
Você consegue enxergar o problema, ou os muitos problemas disso?
1) Ter que repor os 6 meses de licença maternidade garantida por lei atrasa a carreira da mulher que se torna mãe.
2) Mulheres que não se tornam mães durante o estágio probatório serão efetivadas MAIS RAPidAMENTE (6 meses antes) que as que se tornam mães.
3) Essa é uma ação claramente contrária aos interesses das mulheres mães.
4) É uma ação claramente contrária à proteção da maternidade conferida por nossa Constituição Federal
5) Essa ação PENALIZA mulheres pelo fato de terem ficado grávidas.
6) Essa ação é claramente DISCRIMINATÓRIA e, assim, VIOLA os direitos humanos das mulheres que se tornam mães.
7) Essa ação fere tratados internacionais assinados também pelo Brasil que garantem que nenhum tipo de discriminação seja aplicada contra as mulheres. Fere e descumpre especialmente a CEDAW – Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, uma lei internacional que se baseia no compromisso dos Estados signatários de promover e assegurar a igualdade entre homens e mulheres e de eliminar todos os tipos de discriminação contra a mulher.
8) Essa ação tenta DESESTIMULAR as mulheres servidoras públicas a terem filhos. E, assim, age no sentido de controlar a vida pessoal dessas mulheres.
9) Essa ação legitima a quebra da isonomia entre servidores e servidoras públicas, desfavorecendo as mulheres.
Um adendo de extrema importância: embora Geraldo Alckmin esteja entrando agora com a Ação Direta de Inconstitucionalidade, para regulamentar uma violação aos direitos das mães e negar-lhes a inclusão da licença maternidade no estágio probatório, ele não está querendo fazer isso NO FUTURO. Ele já está fazendo AGORA. Isso já está em prática. E agora, choque-se: embora a licença maternidade não esteja sendo contada no prazo do estágio probatório, a licença paternidade está! Que nome se pode dar a isso?
O movimento em defesa dos direitos das mulheres, especialmente o movimento que agrega mulheres MÃES, há bastante tempo deixou de ser visto como um aglomerado de mulheres sem voz ativa para ser visto e respeitado como um movimento organizado, articulado, ativo, atuante e que vem promovendo inúmeras mudanças positivas para a realidade das mulheres que se tornam mães. A luta pela humanização do parto e contra a violência obstétrica é um exemplo. O movimento de mulheres mães brasileiras, a despeito de toda a força no sentido de torná-las seres fragilizados, não vai se calar diante de uma ação claramente discriminatória como essa. Já não se calou.
A Artemis – associação sem fins lucrativos que atua como aceleradora social com vistas à igualdade de gênero, à promoção da autonomia feminina e à erradicação de todas as formas de violência contra a mulher – criada e gerida por mães em
defesa também dos direitos de mães, entrou na tarde desta sexta-feira, dia 06 de fevereiro, como AMICUS CURIAE na ação promovida pelo governador paulista Geraldo Alckmin. Entrar como AMICUS CURIAE significa entrar como um “Amigo da Corte” em uma ação em que ele não é parte afetada, mas que ainda assim possui interesse na resolução da questão. É como se fosse um “Amigo do Juiz”, agindo no sentido de mostrar a ele um lado importante que está sendo desconsiderado. AMICUS CURIAE é, ainda, uma figura nova no Brasil, sendo muito pouco utilizado. Mas representa o pleno exercício da defesa de direitos que podem estar sendo negados.
A Artemis acaba de fazer uma DENÚNCIA sobre essa ação predatória que o governo paulista está tentando promover contra mulheres mães. A denúncia foi também encaminhada para a Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, para a deputada Jô Moraes, deputado Ivan Valente, deputada Luiza Erundina, deputada Ideli Salvatti, para a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, para a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e para a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República.
Cada uma dessas instituições e representações políticas recebeu a denúncia acompanhada da carta abaixo. A denúncia encaminhada pela Artemis, na íntegra, segue abaixo para conhecimento.
O movimento de mulheres mães encontra-se, atualmente, organizado, atuante, ativo, alerta, pronto para defender a nós mesmas, aos nossos interesses e aos interesses de nossos filhos. Tentativas de anulação ou subjugação de nossos direitos não passarão.
Não somos um grupo frágil. Ainda que se queira, de diferentes maneiras, pintar-nos com a tinta da fragilidade. Estamos atentas e estamos em luta. Junto com nossos filhos.
CARTA DE ENCAMINHAMENTO DA DENÚNCIA
CONTATOS DA ASSOCIAÇÃO ARTEMIS:
Raquel Marques, presidência: raquel@artemis.org.br
Ana Keunecke, diretora jurídica: analucia@artemis.org.br
Valeria Sousa, legal advocacy, valeria@artemis.org.br