“Era uma vez um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza onde o direito que as mulheres deveriam ter de decidir sobre o próprio corpo não era reconhecido. Mas, mais que isso. Muito mais importante que isso. Onde o sofrimento humano era considerado algo menor, passível de ser ignorado.
Nesse país, abençoado por Deus, muitas mulheres grávidas descobriam que seus bebês possuíam terríveis malformações, que não permitiriam que eles sobrevivessem além de, no máximo, poucos dias fora da barriga de suas mães. Eu sei, filha, isso é muito triste… É mesmo muito triste que um bebezinho não tenha condições de sobreviver. Se um filho tem um problema de saúde, uma malformação, mas há esperança, uma mãe luta, luta bravamente para que ele viva dignamente. A mamãe lutaria, se fosse com você. Mas se não há esperança de vida, então há ainda mais sofrimento.
Nesse país, muitos bebezinhos não sobrevivem por diferentes motivos, por doenças que deveriam ter sido erradicadas há muito tempo, por mau atendimento, por violência cometida por seus próprios pais, por má alimentação, por fatores relacionados à pobreza. Mas não é dessas mortes que o pessoal está falando, filha. Essas mortes são comuns e – você vai saber um dia – o pessoal não liga muito pras mortes comuns… O pessoal está falando sobre um tipo de morte específica de bebês: chama-se anencefalia. Bebês nessas condições não conseguem sobreviver, ainda que se faça qualquer coisa. Nesse país do qual estamos falando, isso acontece com tanta frequência que ele é considerado o quarto país em termos de sua ocorrência. Então são muitas mães que descobrem que estão gerando filhos que irão morrer…
Não só nesse país, abençoado por Deus, mas em todos os demais, as mães que descobrem que estão grávidas de bebês que irão morrer sofrem muito. Muito. Além do que a gente pode imaginar. Sofrem pelo fato de que precisam lidar com a morte inevitável de seus filhos. É tanto sofrimento que muitas delas decidem interromper a gestação, uma gestação que inevitavelmente terminaria em morte. Escolhem assim para evitar sofrer ainda mais. Quando essas mães moram em países como Canadá, Alemanha, Áustria, Bélgica, Itália, Irlanda, Polônia, Portugal, Reino Unido e muitos outros, elas já podiam receber ajuda médica para interromper a gravidez (a gravidez, não o sofrimento; esse é infindável…), com segurança e sem se tornar uma criminosa. Mas se essas mães moram na grande maioria dos países latino-americanos ou nos países muçulmanos, elas não podem fazer isso. Não que elas não façam. Fazem. Mas fazem clandestinamente, ilegalmente, muitas vezes com pessoas que nem médicos são, ou ainda com médicos, mas por baixo dos panos.
Nesse país do qual estamos falando, filha, era crime fazer isso. Sim, era crime interromper a gestação de um bebê que, de qualquer forma, morreria logo após nascer. Era crime impedir que essas mães sofressem ainda mais. Elas eram obrigadas a viver essa gestação até o fim, obrigadas por outras pessoas, por leis. Ruim, né? Eu sei que é difícil entender como uma pessoa pode obrigar um ser humano a sofrer assim. Mas obrigavam. Em nome de tudo o que você pode imaginar. Principalmente de Deus – aquele mesmo que diziam abençoar o país…
Muitas vezes esse assunto tentou ser discutido. E, em todas, a discussão não avançava e tudo continuava como antes: condenadas a aumentar seu sofrimento ou a recorrer à clandestinidade se não se sentissem preparadas para viver aquilo.
Foi então que, nos dias 11 e 12 de abril de 2012, 8 ministros do Supremo Tribunal Federal (você vai aprender que esse pessoal decide coisas muito importantes sobre a vida das pessoas), de nomes Marco Aurélio Mello, Ayres Britto, Luiz Fux, Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Carmen Lucia e Celso de Mello, disseram: “Chega! Chega de descumprir o direito fundamental que uma mulher tem de ter dignidade. Chega de obrigar uma mulher a sofrer além do sofrimento imenso de ver um filho morto!”. Não foi exatamente essa frase que eles disseram, filha, foram frases muito mais compridas, mas o significado foi mais ou menos esse. Um dos dez ministros disse: “Não! Não pode mudar a lei! Se mudar a lei, o que será da lei? A lei tá lá, não dá pra ser mudada! Ainda que os tempos mudem, ainda que um ser humano sofra, não dá pra mudar a lei!” e outro disse: “Não! Eu acho que interromper a gestação desse bebê que não vai viver é egoísmo!”. É, eu sei… Também acho estranho que um ser humano decida o que o outro ser humano deve fazer e ainda considere este último, que deverá obedecê-lo, como um egoísta…
E foi assim, filha, com 8 votos a favor e 2 contra, que as mulheres daquele país, até então abençoado por Deus, passaram a poder decidir não sofrer além do suportável, além do inevitável, e adquiriram o direito de receberem atendimento médico para isso. Elas não mais se tornariam criminosas.
Não, não se preocupe. Aquelas que não concordam em interromper a gravidez de um bebê sem condição de vida não serão obrigadas, jamais, a interrompê-la, imagine! Não é porque se obrigava uma mulher a seguir com uma gestação que terminaria em morte que devemos obrigar quem quer continuar com a gestação a interrompê-la. Isso não é ético. Isso não é correto. Ético, correto, é deixar que as pessoas decidam se podem, se conseguem, se suportam passar por esse sofrimento, de acordo com suas características individuais, suas crenças e sua filosofia. Aprenda isso, minha filha: um ser humano tem direito de decidir sobre sua vida sem ser obrigado, coagido, ameaçado ou intimidado.
E foi assim, Clara, que no dia 12 de abril de 2012, deixou de ser crime, no Brasil – um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza -, a antecipação do parto de fetos anencéfalos. Foi assim que muitas mulheres brasileiras deixaram de peregrinar por fóruns e instâncias durante 9 meses para ter permissão de interromper seus sofrimentos. Foi assim que muitas mulheres, mulheres que estavam sofrendo, deixaram de se submeter a clínicas clandestinas e a riscos à sua saúde.
Sim, filha, eu também sinto que não há alegria nisso tudo. Há tristeza, há dor, há gente sofrendo, há morte. Mas agora, há respeito. Antes não havia…
Um dia você vai entender como é importante para um ser humano poder decidir por si. Como foi importante para nossa história o reconhecimento de que nenhum ser humano é superior a outro a ponto de poderem decidir por ele. Um dia você vai entender que as maiores tragédias da espécie humana foram geradas justamente quando uns tentaram ter total domínio sobre os outros, baseado num juízo de valor de que eram superiores sobre os inferiores.
Um dia, como mulher, você vai entender como é importante que respeitem nosso direito de decidir por nós mesmas o que queremos fazer com nosso corpo e com nossos sentimentos.
Se o país ainda é abençoado por Deus?
Bom, andam dizendo que não. Alguns estão dizendo que isso é coisa do diabo, os mesmos que fizeram vigília de dois dias pedindo ao Deus deles que a lei não fosse aprovada. Imagine, filha! Dois dias de vigília! Enquanto centenas de mulheres faziam vigília de muitos meses, peregrinando entre fóruns, pedindo o direito de serem respeitadas como seres humanos… Outros se reuniram na frente do tribunal e fizeram até exorcismo. É, eu também tenho medo deles.
Nesses dois dias, muito se falou também sobre uma menininha com quase a sua idade, chamada Amada Vitória de Cristo. Os pais dela foram até o tribunal pedir aos ministros que não votassem a favor. Ela nasceu bastante doente, filha. Mas ela não tem anencefalia, ela tem outra coisa, também bastante grave, chamada acrania, mas que não obrigatoriamente leva à morte. Mas, ainda assim, os pais dela foram lá no tribunal fazer o pedido deles. Eles disseram: “Queremos levar aos ministros informações que os ajudem a tomar a melhor decisão neste assunto. A ciência não tem a última palavra. A última palavra é de Deus. É ele que decide as coisas. A nós coube dar todo o nosso amor à nossa filha“. O amor deles pela filha é admirável, claro e transparente. Mas parece um pouco estranho que acreditem que a decisão deles seja a melhor para todos. Parece um pouco de arrogância achar que aquilo que uns consideram melhor para si, o seja para todos. Se no fim, eles realmente acreditam que a última palavra é a de Deus, então parece que Deus também concorda com o respeito ao sofrimento de quem não consegue passar por ainda mais sofrimento.
Depois que se encerrou a votação e a decisão foi tomada, muitos começaram a tentar encontrar responsáveis pela descriminalização, e aí virou um show de horror. Culparam os cientistas, o PT, os ateus, chamaram os que defendiam a descriminalização de assassinos, de desalmados, de almas vendidas. Buscaram explicações no imaginável e no inimaginável, criaram algumas dignas de roteiro do Tim Burtom. Tudo em função, apenas, de não conseguir se colocar no lugar de uma mulher, uma mãe, que descobre que o filho é anencéfalo, irá morrer e não suporta viver uma gestação sabendo como vai acabar…
Mas é assim mesmo.
É natural.
Para as grandes rupturas com padrões arcaicos sempre surgiram reações extremadas, violentas. Mesmo as que ajudaram a tirar a humanidade de sua cegueira relativa ou de sua insensibilidade.
É, minha filha, mas o trabalho está só começando. Não adianta nada permitir, se não se dá condições adequadas a isso. Agora, é preciso capacitar e preparar as equipes de saúde para receber adequadamente, com respeito e dignidade, essas mulheres, para que as opiniões ou crenças individuais não representem ainda mais reforço à violência obstétrica. Para que elas não continuem a ser desrespeitadas, em um ciclo sem fim.
Então, filha, essa história não termina com FIM no fim. Termina com COMEÇO.
E foi assim que as coisas começaram a ficar diferentes.
Agora, não somos mais um dos poucos países no mundo a não reconhecer o direito das mulheres de terem sua dignidade respeitada num momento de tanta dor.
Espero que você cresça num mundo que nos respeite cada dia mais.
É isso que grande parte de nós queremos deixar a vocês.
Com amor,
Sua mãe”
Clara, minha filha! O Brasil está mudando. Hoje é um dia importante e eu quero te contar isso.
“O ser humano vivencia a si mesmo, seus pensamentos, como algo separado do resto
do universo – numa espécie de ilusão de ótica de sua consciência.
E essa ilusão é uma espécie de prisão que nos restringe a nossos desejos pessoais,
conceitos e ao afeto por pessoas mais próximas.
Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa prisão, ampliando o nosso círculo
de compaixão, para que ele abranja todos os seres vivos e toda a natureza em sua beleza.
Ninguém conseguirá alcançar completamente esse objetivo,
mas lutar pela sua realização já é por si só parte de nossa liberação
e o alicerce de nossa segurança interior”
Albert Einstein