Quando comecei minha trajetória atual, de pesquisadora em saúde coletiva, tendo escolhido como tema um assunto delicado, triste e – infelizmente – tão comum (a violência obstétrica), muito rapidamente percebi que da tristeza, da frustração, da indignação de tantas mulheres que foram vítimas dessa violência descarada reforçada pelo sistema médico atual brotaria um tipo de determinação poucas vezes visto na história da opressão feminina brasileira.
Isso não é tão difícil de explicar assim: à medida que se problematiza o vivido como promotor de profundas mudanças, é impossível passar ileso por ele. Da frustração, nasce a vontade de mudar. Da indignação, a vontade de lutar. Da união, nasce a força de grupo. Do sentimento de grupo, nascem as mudanças.
A luta pela humanização do parto e contra a violência obstétrica, aquela que humilha, xinga, desdenha, ofende, oprime, machuca e fere mulheres, é mesmo uma luta. Lutar: esforçar-se por vencer um obstáculo, por atingir um fim, combater. Combater: opor-se a, contestar. Sim, é uma luta.
O texto que abriu minha dissertação de mestrado, concluída há 10 anos, quando eu nunca poderia imaginar as mudanças que aconteceriam em minha vida, falava algo sobre isso.

Sonhar mais um sonho impossível
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender

Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão

É minha lei, é minha questão
Virar este mundo, cravar este chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz

E amanha se este chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar e morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor brotar
Do impossível chão

É a letra de Sonho Impossível, de Chico Buarque. Letra que as pessoas deveriam ter como oração. Quando todos se sentirem capazes de vencer seus inimigos invencíveis, quando se sentirem fortes para sonhar o impossível e fazer dele o real, quando tiverem coragem de lutar quando o fácil é ceder e a regra é vender, teremos pessoas prontas para enfrentar essa opressão do humano.
O que vem abaixo é isso: o sonho impossível deixando de ser e se tornando real. É a luta a despeito do fácil e da regra, é a flor brotando do impossível chão.
São mulheres em luta, determinadas, levando às instâncias superiores algo que tantos ainda nem reconhecem como sendo de fato um problema. Tirando da sombra algo que levou sombra a tantas outras mulheres.
Eu soube dessa audiência pública há exatos dois meses, quando me chegou um e-mail muito gentil solicitando autorização de uso da imagem que foi criada para simbolizar a pesquisa que desenvolvo, a fim de estampar camisetas que seriam oferecidas às militantes presentes em uma audiência pública que ocorreria em Minas Gerais sobre a questão da violência obstétrica.
A audiência aconteceu nesta semana que passou.
Um marco como esse precisa ser contado por quem esteve lá, por quem idealizou isso, por essas incríveis mulheres que me emocionaram esses dias ao ver as fotos.
Então eu tenho a verdadeira honra de publicar aqui um texto enviado por elas, onde elas nos contam como foi viver essa conquista.

Por Lis Brasil, com informações da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e a colaboração de Kenia Fernandes, enviado a mim por Ana Paula Garcia.

O parto é da mulher!

Mulheres vão à luta em busca do direito elementar de parir com dignidade 

Muitas de nós sentiram o dia 1º de agosto como um marco histórico. A realização da audiência pública VIOLÊNCIA NO PARTO, há muito sonhada por tantas famílias vítimas do sistema obstétrico atual, representou a libertação de um grito engasgado na garganta.  Usuárias, médicos, obstetrizes, doulas, ativistas, políticos e estudantes estiveram unos numa mesma corrente: a luta em prol do parto digno, respeitoso e humanizado, numa tentativa de mudança de paradigma e de resgate do parto como um evento familiar e da mulher. Diversas práticas que devem ser rigorosamente combatidas foram apontadas durante essa discussão: a separação mãe-bebê, a má assistência neonatal, a formação acadêmica ultrapassada de médicos obstetras e enfermeiros, a não utilização de partograma como instrumento norteador para a necessidade de intervenções durante o trabalho de parto, o não cumprimento da Lei do Acompanhante (já foi comprovado que a solidão dificulta a liberação natural de ocitocina), episiotomia, restrição de alimentos e liquidos, uso rotineiro de acitocina sitética (sorinho), Manobra de Kristeller (subir na barriga e empurra o bebê), dentre outras atrocidades que vêm sendo corriqueiramente cometidas a despeito de sérias evidências científicas. Durante a audiência pública, ficou clara a necessidade de políticas públicas que promovam a mudança do modelo atual de assistência ao parto.
Em depoimentos profundamente tocantes, muitas mulheres expuseram suas dores e as violências pelas quais passaram, mostrando como o momento do nascimento ficou marcado para sempre em suas memória
s. Míriam Rêgo
Leão, Enfermeira Obstetra e Professora do Curso de Enfermagem da Puc Minas fez um aparte para conduzir-nos à seguinte reflexão: “Será que, diante desses depoimentos, os profissionais que os causaram esse sofrimento têm alguma idéia do quanto isso ficou marcado nessas mulheres?”. Ela relembrou ainda que o primeiro parto que assistiu foi de cócoras, e que o profissional em formação tem que ter como prioridade o bem estar da mãe e da criança. “Não queremos sair apenas vivos do parto, mas com memórias de prazer e satisfação de um momento que lembraremos para sempre”.Uma das estrelas desta audiência pública foi a Dra. Sonia Lansky, à frente desta luta há 15 anos na capital mineira, município signatário da Redução de Mortalidade Materna e Neonatal, por meio do Movimento BH pelo Parto Normal, Comissão Perinatal e do Comitê de Prevenção de Óbitos Materno, Fetal e Infantil, todos implementados pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS).  Sonia Lansk apresentou dados estatísticos das 8 maternidades do SUS em funcionamento em Belo Horizonte, e cobrou a adequação das maternidades às portarias do Ministério da Saúde e da ANVISA, com a instalação de suites de parto adequadamente equipadas. Para ela, a ambiencia começa a tirar o imaginário de parto normal sinonimo de violencia, o que é fundamental para reverter a incidência de cesareas, que já chega ao índice absurdo de 83% na rede privada. “78,6% das mortes durante o parto no Brasil têm como causa direta a qualidade da assistência. Cesárea no primeiro filho determina muitas vezes a vida futura reprodutiva da mulher, com riscos nas futuras gestações. Violência no parto, incluindo cesareas sem indição, são violências contra a criança. Muitas mortes fetais acontecem por má assistencia ao parto e por intervenções desnecessárias. Os dados demonstram que o excesso de intervenções médicas durante o trabalho de parto levam a óbitos maternos e neonatais”, lamentou a médica, com os olhos marejados e desculpando-se pela emoção.
O médico Joao Batista Marinho de Castro e Lima, representante do Ministério da Saúde e diretor-clínico do Hospital Sofia Feldman,  pontuou que  as boas práticas médicas consolidadas cientificamente têm sido negadas para as mulheres, e que aquelas consideradas desconfortáveis, são realizadas rotineiramente. São modelos de assistência  arraigados, como a episiotomia de rotina, que para ele representa uma mutilação genital praticada em quase 100% das maternidades de Belo Horizonte. O contraponto aos depoimentos apresentados foi feito pelo presidente da Associação dos Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais, Marcelo Lopes Cançado. Apesar de deixar claro que ele e a entidade que representa são favoráveis ao parto seguro, Cançado afirmou nunca ter presenciado qualquer tipo de humilhação ou xingamento dos profissionais de saúde às gestantes durante o trabalho de parto em sua experiência de mais de dez anos na área. “Acredito que esses devem ser casos pontuais”, afirmou. Já João Batista Gomes Soares, presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, afirmou ser do tempo em que o parto normal era valorizado, mas que houve um desvio e que a principal razão para essa mudança foi a própria parturiente. Ele responsabilizou a mulher, que passou a desejar a cesarea para evitar os sofrimentos do parto, sem no entanto admitir que este sofrimento advém do modelo obstétrico desumano praticado no parto vaginal, que deixa de ser normal e passa a ter uma série de intervenções desnecessárias. Dentre algumas “pérolas” que provocaram risadas espontâneas no público presente, destacamos aqui declarações irresponsáveis ditas pelo médico, como a afirmação de que parir na água é arriscado ou que a melhor posição para o parto é a posição deitada, pois facilita o trabalho do médico!Quebrando o silêncioSegundo a advogada, doula e ativista Elisabeth Ângela Primo, cabe ao Ministério Público, na figura do promotor de Justiça Nélio Costa Dutra Júnior, coordenador da 19ª Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde, que esteve presente à Audiência Pública, a fiscalização de quaisquer irregularidades no que diz respeito ao cumprimento das normas vigentes. “Devemos quebrar o silêncio e estar cientes da importância de fazer com que as denúncias de desrespeito aos preceitos legais cheguem aos órgãos competentes, como ANVISA, Secretarias Municipal e Estadual de Saúde de Minas Gerais e o próprio Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais”, alerta. Segundo a advogada, há diversas formas de sanção cabíveis, como ações civis de indenização por dano moral e o enquadramento dos profissionais de saúde na Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), já que são prestadores de serviços de saúde. Para ela, os planos de saúde também deveriam ser culpabilizados. “A episiotomia sem autorização é crime contra a integridade física, Lesão Corporal art. 129 CP”, esclarece Elisabeth.
Infelizmente, nenhuma das maternidades particulares, responsáveis pela crescente e irresponsável “mercantilização” do parto, enviou sequer representante. Deixaram óbvio o que já intuíamos: não se interessam pela discussão e não buscam colaborar. A mudança depende da mobilização da sociedade. Cabe a nós usuárias pressionar, por meios jurídicos, para que se faça cumprir o que já está preconizado há alguns anos na Portaria do Ministério da Saúde 1.067/2005, Lei Federal 11.108/2005 e RDC 36/2008 da ANVISA, mas até hoje não saiu do papel.
Mulheres de todas as regiões do país, dentre elas Minas Gerais, estão se unindo, presencial ou virtualmente, com o objetivo de mudar a triste realidade de assistência ao parto nas instituições de saúde em nossa sociedade. Com a realização desta audiência pública e a entrega do relatório VIOLÊNCIA NO PARTO EM MINAS GERAIS – Denúncia à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, Minas sai à frente, seguindo sua vocação para a insurreição vinda do povo contra os abusos do poder estabelecido. Violência é tudo o que tira o protagonismo da mulher. No momento do parto, buscamos resgatar o poder da mulher. Na noite da insurreição que libertaria Minas Gerais do jugo português, segundo Tiradentes pretendia, os líderes da inconfidência sairiam às ruas de Vila Rica dando vivas à república, com o que ganhariam a imediata adesão da população. No próximo domingo, 5 de agosto, milhares de pessoas sairão às ruas de todo o país mais uma vez, no movimento intitulado Marcha pela Humanização do Parto.  O SUS que dá certo!Belo Horizonte tem se tornado um modelo nacional de boas práticas, através do aclamado trabalho desenvolvido pela Maternidade Sofia Feldman (SUS). Esta instituição vem se tornando a “menina dos olhos” de nossa presidenta Dilma Roussef, que em junho deste ano, junto ao ministro da Saúde,
Alexandre Padilha, esteve visitando a Unidade de Cuidados Intermediários Neonatal (UCI) da instituição e o Centro de Parto Normal Helena Greco, custeado pela Rede Cegonha. A unidade apresenta as ambiências, recomendadas pela portaria RDC 36, da ANVISA, e modelo de assistência preconizado pelo programa. Na ocasião, o ministro afirmou que se não existisse o Sofia, provavelmente não existiria a Rede Cegonha. O Hospital foi o grande inspirador para criação do programa, em 2011, um exemplo de como cuidar das mães e crianças brasileiras com dignidade e respeito.
 Na última quarta-feira o auditório da Assembleia Legislativa estava lotado. Repleto de mulheres e crianças que foram lutar por seus direitos e denunciar momentos em que estes direitos lhes foram negados. O evento encheu os olhos de todos os presentes e daqueles que acompanharam a transmissão pela TV e nos deu força e coragem para prosseguir na luta. Esperamos dar continuidade a esta frente de trabalho, que busca o reestabelecimento de direitos tão elementares para as mulheres, direitos esses em consonância com preceitos já estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde há décadas, mas que vêm sendo rigorosamente desrespeitados. Buscamos o apoio do Poder Público para que possamos promover estas mudanças de maneira coletiva. Esperamos o envolvimento da sociedade e principalmente das Casas Legislativas de todo o país para com a causa da Humanização do Parto e Nascimento. Muitas e muitas mulheres não conseguem sequer perceber que têm seus direitos roubados no momento mais sublime de suas vidas. Afinal, dar a elas a oportunidade de saber e, a partir da informação, construir uma nova realidade, é uma nobre função do Poder Legislativo!
Para fechar com chave de ouro, deixo vocês com o depoimento de Fernanda Coelho, mais uma vítima de violência obstétrica: “Achei que bastava querer um parto natural. Com 37 semanas sofri  violência, porque violência é tudo que tira o protagonismo da mulher.
 Os profissionais que prestam assistência ao parto deveriam acolher e não incentivar a medicalizaçao. Meu filho foi separado no berço aquecido. Nasceu 23h30 e só teve comigo às 7 horas da manha. Fizeram lavagem gastrica em meu bebê sem indicação, um procedimento extremamente invasivo. Mulheres, peguem o seu prontuário, é um direito nosso! O parto é da mulher! Quando meu filho nasceu senti que ele não era meu e sim da instituiçao. Que não deixem morrer a causa”!

 

A vocês, mulheres que fazem toda a diferença, o meu agradecimento sincero e emocionado. 
Vocês fazem parte daquele grupo de mulheres que reforçam meu orgulho por ser uma.
A foto que abre esse post foi especialmente tirada pela Ana Paula para o blog Cientista Que Virou Mãe.
E ver essa camiseta ao lado da placa COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS é algo para o qual eu ainda não tenho palavras.
Vou encerrar essa postagem, vou publicá-la, vou desligar meu computador e vou pensar muito sobre isso.
Domingo próximo, 05 de agosto, estaremos nas ruas novamente.
Agora, em MARCHA PELA HUMANIZAÇÃO DO PARTO.


Meu agradecimento especial à Ana Paula Garcia.

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