Praticar uma educação não violenta, excluindo de nossa prática de cuidado a opressão, a agressão, a intimidação e mais uma série de comportamentos que não educam e apenas condicionam a criança, não nos torna mães ou pais que não se zangam. Apenas nos coloca sempre em alerta para nossos próprios comportamentos e para as necessidades emocionais das crianças, mas não nos transforma em mestras zen (embora eu quisesse…). Ou seja: sim, ficamos bravas. Às vezes, muito.
Isso significa que quando passamos por alguma situação com nossos filhos que nos deixa bastante aborrecidas, esse aborrecimento pode ser bastante genuíno. E, sim, sabemos que passamos inúmeras vezes por essas situações. Afinal de contas, precisar repetir alguma coisa infindáveis vezes, solicitar sempre que arrumem os brinquedos, que deixem de fazer algo que não é bacana ou qualquer outra solicitação é praxe na educação dos filhos. Se você está aborrecida porque precisa repetir inúmeras vezes alguma coisa, te entendo. Porém, te digo: faz parte. Repetir e repetir e repetir faz parte do aprendizado humano – de adultos inclusive, imagine das crianças (falamos sobre isso à exaustão em nosso livro Educar sem violência – Criando filhos sem palmadas). Um dia não precisaremos mais repetir algo porque elas já terão absorvido e processado a informação. O chato é que a gente não percebe esse dia, afinal damos mais atenção ao que precisamos fazer do que ao que já não precisamos mais.
Então, sim, ficamos bravas. E educar sem violência não significa esconder que se está zangada por alguma coisa que as crianças fizeram; significa, isso sim, reconhecer-se como zangada, identificar o motivo, comunicar isso às crianças e ter maturidade e autocontrole para conversar a respeito a fim de chegarmos a uma solução comum, e não sair gritando, xingando, distribuindo tapas.
Um dia desses, minha filha (8 anos), deixou algumas coisas jogadas na minha mesa de trabalho, sujando tudo. Eu a chamei e pedi que guardasse. Ela começou a guardar. Mas a atenção das crianças é algo que vai de um lado a outro infinitas vezes e basta um barulho diferente para tirá-las do foco momentâneo e levá-las a outro – e isso também é natural e saudável. Passei outra vez e a relembrei: precisa arrumar isso aqui. Voltou a arrumar. Enfim, pedi muitas e muitas vezes para que ela arrumasse. Tivemos que dar uma saída, voltamos bastante tarde e quando vi, estava lá a coisa toda, do mesmo jeito que estava antes e, pior, já havia manchado a mesa.
Fiquei muito zangada. Com motivo, afinal de contas a distração ou pouca importância dada ao que precisava ser arrumado se transformou em dano. Chamei-a e tivemos uma discussão. Ter discussões também faz parte da educação sem violência, não pense que não… A diferença é que durante o processo não vai haver ameaças, gritos, xingamentos, ofensas, relação distorcida de causa-consequência, chantagens emocionais ou algum outro comportamento que implique em humilhação ou opressão. Discutimos sobre responsabilidades, sobre necessidade de se repetir inúmeras vezes, sobre o dano à mesa. Minha filha sempre foi criada de uma maneira positiva e não violenta e isso contribuiu enormemente para que hoje ela se sinta segura para expor seus pontos de vista, dialogar, discutir e apresentar fatos que são relevantes a ela. O que significa que: ela argumenta. Ela argumenta muito. Ela consegue articular sua fala, seu pensamento, seus motivos e apontar (inclusive) as minhas incoerências quando ela percebe que estão acontecendo. Pois é… Essa é uma consequência da disciplina positiva e da educação não violenta: a gente cria crianças que se tornam grandes argumentadoras. Adoro saber que estou contribuindo para que ela se torne uma jovem e depois uma mulher capaz de mostrar seus pontos de vista com sensatez, senso de justiça e segurança. A educação infantil quando praticada de maneira violenta e opressiva traz como uma de suas consequências, entre tantas, a insegurança, o medo, a sensação de não ser bom o suficiente em apontar suas percepções. No passado (e infelizmente ainda hoje, para muitas pessoas…), éramos forçadas ao silêncio, caladas. “Não retruca”. “Não me responde” e mais uma série de proibições à expressão do nosso ponto de vista, que só gerava raiva, agressividade, sensação de injustiça e incapacidade de treinarmos nossa habilidade argumentativa. E aí nos tornamos adultos que não conseguem argumentar e nos defendermos com nossas próprias ideias, e a mais simples possibilidade de termos que apresentar nossos pontos de vista nos causa palpitação e nos tira o sono. Ou, outras tantas vezes, não conseguimos mostrar nossos pontos de vista com calma, sai tudo com rispidez e agressividade. Eu fui uma criança assim. E até há alguns anos, quando precisava argumentar, sentia uma constrição na garganta, uma vontade imensa de chorar e saía tudo atrapalhado. Isso é fruto, também, de não ter tido espaço para argumentar de maneira tranquila. Hoje, com muitos anos de terapia e compreendendo que é preciso desprogramar o nosso cérebro e treinar uma nova forma, sei apresentar meus pontos de vista de maneira segura. Mas foi um caminho longo e preciso estar continuamente vigilante.
Crianças criadas de maneira não violenta têm tudo para não serem assim, para encararem com naturalidade a capacidade de se expressar e se comunicar.
E então nossa discussão foi se aprofundando. Quando vi, estávamos já há alguns bons minutos discutindo. Eu apontava algo. Ela argumentava. Eu falava mais uma coisa, ela rebatia. E a bagunça e a sujeira lá. Eu fui ficando irritadíssima, ela também. E então me afastei. Saber a hora de sair de cena é uma das grandes chaves. Desci, respirei, pensei e voltei:
– Filha, quero fazer um pacto contigo. – Ela estava muito irritada. – A gente vai combinar que sempre que estivermos em uma discussão, vamos estabelecer um momento de parar.
Para minha deliciosa surpresa, ela disse:
– Sim, mãe, temos que fazer isso. Porque parece que nunca vai acabar, sempre tem mais alguma coisa.
– Então filha, vamos sempre estar atentas a isso. Vamos parar a discussão quando percebemos que não está tomando um bom caminho, tanto pra mim quanto pra você.
– Combinado, mãe. Senão o troço parece uma bola de neve…
Foi outro dia mesmo que expliquei pra ela o significado da expressão “parece uma bola de neve”… Vê-la fazendo esse tipo de analogia me fez muito, muito feliz. É reconhecer os danos da discussão para além de um limite, quando ela deixa de ser construtiva e exercício de humanidade para se tornar destrutiva e tóxica.
– E mais uma coisa que eu gostaria de ver com você se seria possível, filha. Quando tivermos uma discussão, depois que ela se encerrar não iremos deixar de conversar uma com a outra, ou nos tratarmos com rispidez. Pode ser que precisemos de um tempinho logo após para nos acalmarmos. Mas na sequência já procuraremos estar bem uma com a outra novamente. Pode ser?
– Pode, mãe, eu também quero isso.
Então nos abraçamos, respiramos e seguimos a vida. Desci pra continuar o jantar. E quando subi, o que me aborrecia não estava mais lá, ela havia arrumado.
Saber a hora de parar na discussão com as crianças é um grande aprendizado. Para nós e para elas. Na verdade, saber a hora de parar na discussão com qualquer pessoa é uma arte. Mas para as crianças, ainda mais. Porque ensinamos que é possível interromper as emoções antes que percamos o controle, que há um limite a partir do qual a coisa se torna tóxica e deixa de trazer aprendizado. Mas tão importante quanto é conseguirmos retomar um bom clima depois da discussão. Isso não significa que logo após temos que estar felizes e sorridentes, como se nada tivesse acontecido. Não. Somos humanas, temos nossas dores. Mas significa que não ficaremos buscando motivos para tornar o mal estar infindável.
A educação sem violência nos ajuda a também curar o que vivemos no passado. Mas, ainda mais importante, nos ajuda a criar uma geração que vai saber lidar melhor com diálogos, discussões e debates. Que vai lidar melhor com diferenças de opinião. Que vai conseguir identificar melhor a partir de qual momento é melhor se retirar de uma discussão a fim de respeitar a si mesma e o outro. Hoje o que a gente vê é uma multidão de pessoas que mal sabem argumentar, que usam argumentos totalmente descabidos para incentivar a violência e qualquer outra coisa, que usam de ironia, sarcasmo – e às vezes nem sabem usar… Isso também é reflexo da educação violenta e cerceadora que tiveram. Podemos mudar isso, já, com nossos filhos. Conforme eles vão crescendo e se tornando adolescentes, a capacidade argumentativa vem com tudo. É também por isso que é preciso treinar desde sempre, ainda quando são pequenos.
Educar sem violência muda muita coisa: a nós mesmas, a vida de nossos filhos, a sociedade como um todo e o futuro que estamos construindo. Dá muito trabalho, afinal de contas é bem mais fácil gritar, bater, não conseguir controlar as próprias emoções. Mas estamos buscando o caminho mais fácil ou o caminho mais bonito? Eu já fiz a minha escolha.
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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.