Por Nanda Café

 

MATERNIDADE NO LIMITE

São 5h30 da manhã. Eu acordei mais cedo do que o costume para escrever esse texto, e isso me preocupa. Não porque vou passar o dia inteiro sonolenta e consequentemente mal-humorada ou porque renderei menos do que o costume no trabalho. São os neurotransmissores.

Ao longo do dia, nosso cérebro tem variações na produção e recaptação dessas substâncias, que estão interligadas em uma linda dança bioquímica para fazer com que funcionemos como seres com telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor que somos. O sono tem papel importante na regulação e fabricação desses danadinhos.

Essas variações – assim como as variações hormonais – são perfeitamente normais. O que não é normal é como eu reajo a elas.

DEFINIÇÃO

Em 2015, fui diagnosticada com Transtorno de Personalidade Limítrofe, ou Borderline . A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) – ou aquele número que colocam no atestado médico e nas receitas de medicamentos – tem uma definição geral para Transtorno de Personalidade com Instabilidade Emocional (TPB), guarda-chuva sob o qual o TPB se enquadra:

“Caracterizado por tendência nítida a agir de modo imprevisível sem consideração pelas consequências; humor imprevisível e caprichoso; tendência a acessos de cólera e uma incapacidade de controlar os comportamentos impulsivos; tendência a adotar um comportamento briguento e a entrar em conflito com os outros, particularmente quando os atos impulsivos são contrariados ou censurados”.

Para resumir: é foda ser eu, meu filho.

DIAGNÓSTICO

Eu não sei muito bem quando começaram os sintomas, ou melhor, quando o TPB começou a se manifestar. Isso porque ainda estou trabalhando para entender onde termina o transtorno e começa a minha personalidade. Em algumas sessões de terapia, flertamos com o gatilho da gravidez. Eu descobri que seria mãe no meio da graduação e foram quase 5 meses para conseguir encarar minha família, colegas e amigos.

Em outras ocasiões, penso que esse transtorno sempre esteve por aqui de alguma maneira. Consigo lembrar claramente de episódios de dissociação ainda na adolescência, por exemplo. Mas foi em 2015 que os sintomas se agravaram.

No ano anterior, eu decidi sair de um emprego em meio a uma crise econômica que se anunciava no país. Um belo dia, entrei na sala do meu chefe e anunciei que estava de saída. Eu já ganhava pouco, passei a ganhar nada. Pouco tempo depois, meu namorado na época terminou comigo. Em um mês eu estava de mala, cuia e uma criança de 6 anos em outra cidade. Sem emprego, sem dinheiro, deixando dívidas, pertences, amigos e família para trás.

“Você é muito corajosa”, disseram.

Tirei meu filho de uma escola na qual ele havia estudado desde sempre, na metade do seu primeiro ano do ensino fundamental, e trouxe comigo sem nenhum planejamento. O que é coragem e o que é incapacidade de controlar os comportamentos impulsivos? É nesse limite que eu vivo, constantemente.

Pouco tempo depois, sozinha em uma cidade desumana, eu surtei. É engraçado como usamos essa palavra para definir qualquer padrão que desvie da norma. “Fulano surtou quando viu o presente de aniversário”. No caso, eu surtei mesmo. Comecei a beber com frequência, me automutilar e contemplar suicídio. Eu havia me auto-diagnosticado com depressão. Até escrevi sobre como expliquei isso para o meu filho, quando as coisas não estavam nem perto de ficar tão ruins quanto ficariam.

A confusão entre os diagnósticos é muito comum (especialmente se você, assim como eu, não for psicólogo ou psiquiatra), porque pessoas borderline oscilam entre extrmos de humor e têm episódios que se assemelham bastante com crises depressivas. E, por mais que eu tivesse bastante dificuldade de me empolgar, cumprir ou concluir a maior parte das coisas com as quais eu me comprometia, eu ainda tinha energia e vontade para me comprometer com elas.

“Quer dar uma palestra?”

“Quero!”

“Quer jogar RPG?”

“Oba!”

“Quer um freela?”

“Com certeza!”

E ficava realmente empolgada com as possibilidades. E até conseguia comparecer ou começar a maior parte delas. Mas aí, algo – literalmente qualquer coisa – acontecia e eu passava dias sem conseguir sair da cama. Perdi oportunidades, perdi trabalhos, perdi dinheiro, perdi amigos. E estive bem próxima de perder a mim mesma.

GATILHO 

Decidi procurar ajuda depois de um episódio específico. Depois de muito insistir que eu preparasse algo para ele comer, meu filho precisou se virar. Não era a primeira vez e nem seria um problema em condições normais de temperatura e pressão. Mas não era o caso. Ele pegou pães e espalhou creme de avelã. Na bancada, no chão, nele mesmo. Migalhas de pão aderiram a todas as superfícies, quase um João e Maria desconstruído, deixando uma trilha até a bruxa malvada que, em breve, seria eu.

Eu gritei. Briguei bastante com ele. Quis bater – mas não bati. O menino, encolhido, não conseguia compreender o que havia feito de errado. Não tinha sido eu quem disse para que ele comesse o que quisesse?

Naquele momento, aqueles olhinhos arregalados foram o gatilho: o que eu estava fazendo com aquela criança? Eu não sabia…

Não me entendam mal – nenhuma mãe sabe. A maternidade é um eterno jogo de tentativa e erro. Mas eu só estava errando. E não era justo com ele. No mesmo dia, agendei uma consulta com psiquiatra e já saí de lá com a receita para a medicação para depressão. Feliz por ter acertado no autodiagnóstico, comecei a tomar os remédios prescritos.

Nada aconteceu.

A sugestão do diagnóstico de TPB viria mais tarde, na terapia, e veio como um alívio porque a medicação não estava funcionando. Ler sobre o transtorno me ajudou, mas me fez desistir do tratamento. Na verdade, consegui um emprego em período integral, comecei a namorar de novo, investi em novas atividades e tudo parecia estar caminhando bem. Não se trata louco que está melhorando, não é?

MONTANHA RUSSA

Uma das maiores dificuldades do tratamento para o TPB é a manutenção dele. Como as variações de humor são intensas e imprevisíveis, o paciente com esse transtorno tem dificuldade de se manter em terapia, de dar continuidade à medicação, de seguir a linearidade necessária para qualquer tratamento psicoterapêutico e psiquiátrico. Eu falo isso porque sei.

Do diagnóstico inicial até hoje, já foram:

– 4 psiquiatras (um dormiu durante a consulta)

– 3 psicólogos (uma me indicou ler um livro sobre anjos)

– 2 medicamentos (não completei a adaptação)

– 1 grupo de terapia cognitivo-comportamental

Nenhum funcionou. Ou todos funcionaram. Não tenho como saber, porque nunca continuei pelo tempo necessário.

Eu sei na prática a dificuldade que é manter uma rede de apoio com esse diagnóstico. Os amigos que não se afastaram de mim por vontade própria, eu dei um jeito de afastar ou me afastar deles. Esse transtorno é cruel, porque ao mesmo tempo em que você deseja e precisa de contato humano, seu comportamento impede que isso se concretize de maneira constante. Mesmo cercada de pessoas incríveis que aparentam querer a minha companhia, a sensação é de que eu estou incomodando, que meus comentários são inconvenientes, de que ninguém precisa ser submetido à minha presença desagradável. Meu círculo de amigos é pequeno e tem uma tendência a se estreitar ainda mais, então, eu não tenho aldeia. E se para um indivíduo já é difícil conviver com o transtorno, imagina quando ele tem um outro serzinho dependente de si? O “bagúio é loko”!

FAQ (Perguntas mais frequentes)

Eu grito muito com minha criança. Sou borderline?

Não, miga: você é mãe. Gritar faz parte. Não deve ser a regra, mas não é, necessariamente, uma exceção. Existem inúmeros textos na plataforma Cientista Que Virou Mãe falando sobre técnicas de reforço positivo e de criação não-violenta, mas nem sempre as técnicas funcionam, nem sempre conseguimos aplicar o tempo todo. Apesar da romantização da maternidade nos querer fazer pensar o contrário, nossa paciência tem limite, sim. Mas, se essa for a única maneira com a qual você consegue lidar com a cria, talvez seja interessante procurar apoio.

Tem dias que eu não consigo sair da cama e dou macarrão instantâneo para minha criança. Sou borderline?

Leia acima. O cansaço também faz parte da maternidade. Durante a gravidez e o puerpério, nenhum dos nossos hormônios funciona exatamente da maneira à qual estamos acostumadas, mas a natureza é incrível e, de alguma maneira, a falta de sono é compensada pelo excesso de ocitocina ou algo do tipo. A ocitocina passa – o sono, não. Mas se isso é recorrente e tem prejudicado outras áreas da sua vida, talvez seja interessante procurar apoio. Um alerta: não busque um diagnóstico para o que é do ser humano. É normal se sentir mal, se sentir bem, querer socar pessoas inconvenientes e abraçar pessoas queridas. Tá tudo bem sentir.

Fui diagnosticada como borderline. Não tenho filhos e penso que gostaria de ter um dia. Será que eu deveria?

Eu tenho um número absurdo de conhecidas e amigas diagnosticadas como borderline ou outros transtornos de personalidade. A maior parte delas é muito nova e ainda não está na idade ou fase da vida definida pela sociedade contemporânea como aceitável para procriar. Mas elas me perguntam, ou afirmam, que não querem ter filhos sabendo do diagnóstico e do processo perene que é o tratamento. E eu concordo. Eu mesma oscilo muito entre a vontade de ter outro filho e o medo de repetir tudo isso com outra criança que não pediu para nascer. Em meio à minha pior crise, meu filho foi literalmente a única coisa entre meu corpo e uma janela aberta no sexto andar. Eu estou viva por causa dele. E esse é um fardo que nenhuma criança merece, precisa ou pode carregar. A Wikipedia tem uma seção inteirinha dedicada aos relatos de filhos de mães com TPB. É devastador me reconhecer em vários aspectos dos familiares e do tratamento com as crianças, mas também é um alerta e um guia comportamental.

No entanto, meu diagnóstico não me define.

Eu falei ali em cima que não sei onde termina a Fernanda e começa o borderline, e talvez eu nunca saiba. Talvez não exista esse limite. Mas eu não conheço uma maternidade diferente da minha.

Em alguns domingos, eu acordo cedo e faço panquecas enquanto danço com meu filho ao som de suas músicas favoritas. Em outros, ele joga videogame até o estômago doer de fome. Em alguns dias, ele quer jogar videogame para descansar de uma semana corrida. Mas eu estou achando que a vida é curta e eu não estou aproveitando a infância do meu filho, então quero ir ao teatro, à oficina de bonecos, ao parque e ao cinema.

Ele está perfeitamente ciente de que nos dias de “painel de controle cinza”, não há muito o que ele possa fazer, ou exigir. Também sabe que precisa ser claro quando o meu ritmo estiver acelerado demais. E que a culpa não é dele: é o cérebro da mamãe que não funciona direito. Nem sempre está tudo bem, mas tudo está. E, às vezes, estar tem que bastar.

D.R. COM FILHO: TRABALHAMOS

Sou o mais transparente possível com ele. Preciso ser. Porque coisas assim acontecem: outro dia, o pai dele pediu para trocarmos os finais de semana previamente combinados. Só que no domingo haveria uma festa de aniversário de um sobrinho da namorada do pai e caberia a mim levá-lo.

Pode não parecer, mas eu sou tímida. Em ambientes nos quais eu conheço as pessoas, ou tenho uma pessoa como âncora, eu sou extrovertida e interativa, até divertida. Mas me joga em um ambiente desconhecido e eu não respondo por mim. Na primeira reunião de pais da escola, eu tremi do começo ao fim. Da dinâmica de grupo do processo seletivo para o meu emprego atual, eu não tenho memórias concretas. A ideia de ir a uma festa daquelas que você joga a criança no buffet e só pega de novo na hora de ir embora e interagir com seres humanos desconhecidos nesse espaço de tempo é basicamente a minha descrição de inferno pessoal. Eu me sinto fisicamente incapacitada de me submeter a isso, e expliquei para ele. Ele ficou chateado. Bravo. Não entendeu.

E nem tem que entender: ele tem 8 anos. Os labirintos da mente humana são demasiadamente complexos para a frustração de perder o aniversário do amiguinho. Mas foi ele quem explicou para o pai que eu não conseguiria levá-lo e eles acabaram dando um jeito. Nesse dia, deu tudo certo. Poderia não ter dado. Eu poderia ter explicado que não daria e decidido ir, em cima da hora. Tudo poderia ter acontecido, ou nada. E é assim o tempo todo.

E A CONCLUSÃO?

A personalidade limítrofe caminha numa eterna corda bamba. É difícil manter o equilíbrio. Ter um filho nessa caminhada deixa tudo ainda mais bambo e assustador. Eu caio bastante, para um lado ou para o outro. E ele cai comigo, porque não tem escolha.

Um dia, o caminho dele será mais firme e espero que até lá, eu já tenha dominado o meu. Por enquanto, levantamos juntos e seguimos a jornada.