O QUE AS DROGAS ESTÃO CAUSANDO NAS MULHERES?

Historicamente, o uso de drogas psicoativas lícitas, na forma de medicamentos como antidepressivos, calmantes e inibidores de apetite sempre foi estimulado em nós, mulheres, visto que o consumo dessas substâncias nos levam a um sentimento de satisfação com o nosso corpo e com a nossa realidade, acalmando-nos, mantendo-nos magras e produtivas, tanto nas funções domésticas como no mercado de trabalho – o que nos mantém dentro dos padrões aceitos e impostos socialmente, sem muita reclamação.

No entanto, o uso prolongado dessas substâncias pode causar dependência e levar a maioria das mulheres a viverem anos lidando com a dificuldade de interromper o uso desses medicamentos, que também produzem diversos efeitos adversos (geralmente afetando a libido!). Viramos, assim, reféns e, mais uma vez, nos sentimos fragilizadas por acreditarmos que não somos capazes de enfrentar as nossas batalhas diárias sem apoio dessas drogas. Esse pode ser um gancho pra uma outra discussão, que não é o objetivo principal aqui. Mas é importante termos em mente que o que consideramos “drogas” são, na verdade, substâncias psicoativas em diversos formatos e ofertas, desde os medicamentos até as drogas de uso recreativo (como álcool, tabaco, maconha, crack-cocaína, LSD e ecstasy). A partir daí, podemos começar a traçar uma linha que divide o que é aceito e incentivado nas mulheres e o que é socialmente condenável, em relação ao uso dessas drogas.

Enquanto o uso de “remédios” é incentivado entre nós (porque nos aprisiona e nos cura!), o uso de drogas de forma recreativa costuma trazer a nós, mulheres, uma imagem de vulgaridade, descontrole emocional e disponibilidade sexual, sendo, assim, reprimido ou punido. Também por isso, é muito comum a violência sexual ocorrer em situações onde estamos fazendo uso de drogas, como o álcool, por exemplo. Ou seja, quando reivindicamos nosso direito ao uso dos nossos próprios corpos para obtenção de prazer como bem entendemos, somos violentadas. Uma mãe que gosta de tomar cerveja com amigas e amigos no final de semana, por exemplo, é vista como uma mãe negligente e incapaz de educar seus filhos.

O USO DE DROGAS SÓ É TOLERADO ENTRE “ALGUMAS” MULHERES

Agora, pra começar a entrar na questão central deste texto, com os pés na porta, imaginem vocês uma mulher, mãe, moradora de rua, negra, usuária de crack. Em primeiro lugar, essa mulher, já vítima de violências diárias na rua – somente por ser mulher e negra -, é também usuária de uma droga cheia de estigmas e preconceitos. Sofre, assim, duplamente: por suas escolhas e pela completa falta delas. Uma vez que essa mulher se torna mãe, por exemplo, logo após o parto é quase sempre impedida de amamentar e de cuidar do seu bebê por ser considerada incapaz, ou com o argumento de que ela oferece riscos aos seus filhos por ser usuária de drogas. Muitos casos como este estão sendo denunciados em diversas cidades brasileiras, evidenciando a entrega de bebês filhos de usuárias de crack para adoção de maneira arbitrária. Em muitos casos, essas mães desejaram ser mães e planejaram a chegada de seus bebês, mas nunca mais os tiveram de volta.

Quais seriam os riscos que essas mães oferecem a seus bebês? É o risco do bebê se tornar dependente de crack por ser alimentado com leite materno? É o risco dessa mãe abandonar seu filho para fazer uso de drogas? A melhor solução para ambos é privá-los da relação mãe-filho? Temos muitas perguntas, várias sem respostas definitivas, principalmente pela falta de estudos nessa área. Mas podemos considerar que separar os bebês de suas mães não parece muito razoável, certo? Em outros países, existem programas de assistência, acolhimento e reabilitação de mães e gestantes usuárias de drogas que prezam pela manutenção do vínculo entre mãe e bebê, inclusive para ajudar essas mulheres em seus tratamentos. Aqui no Brasil, algumas iniciativas baseadas em políticas de redução de danos estão tratando dessa questão com mais cuidado e promovendo o acolhimento dessas mulheres, como acontece em Brasília e em Salvador, por exemplo.

CONSEQUÊNCIAS INDIRETAS ÀS MULHERES: AS DROGAS E NOSSOS FILHOS

Indiretamente, o uso de drogas – não pelas mulheres, mas por pessoas próximas a elas – pode levar a consequências desagradáveis também. Se pensarmos no impacto do uso de drogas entre uma população como nós, mulheres leitoras da plataforma Cientista que Virou Mãe, talvez o que mais nos preocupe sejam nossos filhos. Como lidar com a ideia de que nossos filhos podem vir a fazer uso de drogas?

O que eu posso dizer sobre isso é que a maioria dos nossos medos em relação às drogas vem da falta de informação. Muitos mitos e medos são plantados em nós culturalmente em relação às drogas. A ideia de que a maconha seria a porta de entrada para outras drogas, por exemplo, é uma ideia muito difundida e que já se sabe hoje o que significa: pelo fato de ser uma droga ilícita, a única maneira de se obter é via tráfico. Muitas vezes, na intenção da compra de maconha de um vendedor de drogas, outras drogas são oferecidas em seu lugar. O comércio de cocaína é muito mais lucrativo que o de maconha, por exemplo. Logo, muitos comerciantes de drogas preferem que seus clientes consumam cocaína do que maconha. Assim, usuários de maconha podem acabar sendo induzidos a consumir cocaína, ou por falta de maconha no momento da busca, ou porque são coagidos a isso – sim, tudo isso é possível sim. Não significa que a maconha leva o sujeito a querer algo “mais forte”, mesmo porque maconha e cocaína não produzem o mesmo efeito e nem deveriam ser comparados em termos de “força”. São drogas completamente diferentes em termos de mecanismo de ação e de efeitos.

Seguindo esse raciocínio, é possível perceber, então, que a proibição atua como o principal fator que expõe o usuário de maconha a outros tipos de substâncias – afinal, se é proibido, só é adquirido via tráfico, e quem trafica um geralmente trafica outro.

Outro medo/crença que paira sobre nossas cabeças é o de que as drogas transformam as pessoas em zumbis, ou que o vício leva as pessoas a roubarem e/ou matarem por elas. O estigma associado aos usuários de drogas, sim, pode levar à exclusão social e, consequentemente, a uma condição de total vulnerabilidade, perda de bens, emprego e família, que o obriga a obter recursos de outras maneiras, muitas vezes através de pequenos delitos. Quando a família do usuário o rejeita ou reprime, ela provavelmente entra nessa condição. No entanto, quando um adolescente que começa a ficar curioso sobre as drogas é escutado, assistido e acolhido pela família, isso dificilmente irá acontecer. Entender os motivos pelos quais nossos filhos buscam essas experiências e como irão lidar com elas pode fazer muita diferença no tipo de adulto que eles se tornarão. Claro que não podemos achar que não há problemas nisso, mas o foco deve ser o indivíduo e não a droga em si.

Muitos problemas associados ao uso de drogas podem acontecer quando o uso começa precocemente. Na adolescência, o sistema nervoso central está a todo vapor sofrendo transformações importantes e, portanto, muito vulnerável a estímulos, tanto emocionais quanto químicos. Por isso, é preciso ter cautela, sim, e ficar atentas às mudanças que observamos em nossos filhos nessa fase. Conversar sobre isso e fornecer informações (reais, não fictícias) sobre as consequências do uso de substâncias psicoativas é uma ótima opção. Há uma associação importante entre o uso de maconha na adolescência e o desencadeamento de esquizofrenia, por exemplo. Ainda não temos informações suficientes para saber se há uma relação causal entre essas coisas, mas devemos considerar esse risco e informá-lo às crianças e adolescentes assim que eles tiverem curiosidade natural sobre essas questões.

VOLTEMOS À MÃE NEGRA, POBRE E PERIFÉRICA

Voltando para aquela mãe, negra, pobre, com baixo nível de escolaridade e moradora da periferia: o que essa mãe tem medo em relação ao uso de drogas pelos seus filhos? Ela sabe muito bem quais as consequências das drogas ao seu redor: morte e prisão. Os adolescentes filhos dessas mães sofrem diariamente com a repressão e com o racismo estrutural, desde que se dão por gente, e sabem muito bem que, uma vez em contato com o tráfico, podem estar com o destino traçado. E essas mulheres sofrem cotidianamente com a retirada, muitas vezes violenta, traumática e trágica, de seus filhos, pais, irmãos e companheiros de sua convivência pela criminalidade.

Essas mulheres passam, então, a ser a única fonte de renda e subsistência da família, e aí começa uma cadeia de eventos que as levam a também sofrerem diretamente as consequências da atual política de drogas no país (Lei nº 11.343/2006). Um reflexo disso é o aumento exponencial do número de mulheres encarceradas. O relatório do Departamento Penitenciário Nacional (Infopen, junho de 2014) mostra um aumento de 557% no número de mulheres presas (37.380 mulheres), de 2000 a 2014, enquanto a população carcerária masculina cresceu 220%, no mesmo período. A porcentagem de mulheres presas por tráfico é de 63%, enquanto a de homens é de 23% pelo mesmo crime, e duas a cada três presas são negras.

QUE TIPO DE ATUAÇÃO ESSAS MULHERES EXERCEM NO TRÁFICO DE DROGAS?

Muitas delas são presas levando drogas a seus companheiros na cadeia, ou realizando entregas de mercadorias ilícitas a mando de alguém, ou armazenando drogas em casa, ou fazendo pequenas vendas como bico para aumentar a renda mensal. Na maioria das vezes, essas mulheres são apenas coadjuvantes no tráfico e não chefes de facções ou de grande importância no “negócio”. Uma vez presas, condenadas ou aguardando julgamento, essas mulheres são alojadas em prisões com estrutura muito precária, na sua maioria adaptadas para mulheres e não construídas pensando nelas. Essas prisões, inicialmente construídas para uma população masculina, não possuem celas adequadas para gestantes ou mães com bebês, nem berçários ou creches, e essas mulheres mães acabam sendo separadas de seus filhos, nascidos dentro do sistema prisional ou separados no momento da detenção. Além disso, serviços médicos especializados são precários ou inexistentes. Por exemplo, são realizados partos com as mulheres algemadas e absorventes higiênicos não são disponibilizados porque não fazem parte do kit distribuído nos presídios (definido para a população masculina).

Ou seja, a população carcerária feminina é praticamente invisível aos olhos do Estado e pouca informação sobre essas mulheres e suas demandas é divulgada. É como se elas não existissem.

Outro fato muito triste em relação à invisibilidade dessas mulheres é a falta de visitas. Aquela imagem que temos de filas enormes na porta de presídios para visitação não ocorre em presídios femininos. Salvo raras exceções, essas mulheres não são visitadas. Elas são comumente esquecidas e abandonadas após serem presas e condenadas mais uma vez por seus familiares, que as privam do contato com família e filhos.

Fica claro, portanto, que a atual política de drogas, ao tratar a questão como caso de polícia e não como uma questão de saúde ou social, atinge cada vez mais a população feminina, negra e pobre, direta ou indiretamente. Diversos grupos de mulheres, coletivos e organizações civis têm debatido e organizado eventos e manifestações pelo fim da falida Guerra às Drogas e pela descriminalização, focando principalmente nas questões racial e de gênero.

Também é urgente a discussão pela regulamentação, tanto da maconha como de outras drogas para fins medicinais e recreativos, que possa facilitar, inclusive, o desenvolvimento científico, atualmente travado no Brasil em consequência da proibição.

Faz-se necessário, portanto, um amplo debate sobre a atual política de drogas no país, com a sociedade civil participando, se posicionando e cobrando ações, baseadas em informações reais e científicas sobre as consequências dessa lei sobre as mulheres, sobre os efeitos danosos das drogas e do vício, mas principalmente em relação à letalidade da criminalização.

É inaceitável que se mantenha uma política de drogas escancaradamente baseada na criminalização da população negra.

Confira nos links abaixo como a sociedade está se organizando, fornecendo acesso à informação e como podemos participar dessas mudanças.

Relatório do Departamento Penitenciário Nacional – Infopen 2014

Programa Corra pro Abraço: SITE e PÁGINA

Elas existem – mulheres encarceradas

Pastoral Carcerária: SITE e PÁGINA

Geledés Instituto da Mulher Negra: SITE e PÁGINA

Iniciativa negra por uma nova política sobre drogas

Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas – RENFA

Coletivo Desentorpecendo a Razão: SITE e PÁGINA

Centro de Convivência É de Lei: SITE e PÁGINA

Artigo: Mães em Belo Horizonte com histórico de uso de drogas têm seus bebês retirados à força na maternidade

Artigo: Bebês filhos de mães viciadas são tratados ainda na maternidade