Fotografia: Carla Raiter

Era uma vez, em um reino não muito distante, mulheres que não tinham muita opção de escolha: recebiam a data do nascimento de seus filhos anotadinha em um papel assim que se proclamavam grávidas. Afinal, os riscos eram muitos: um cordão enrolado no pescoço, um bebê muito grande, uma pelve muito estreita, o sedentarismo da mulher atual, um deslocamento de clavícula ou qualquer outro tipo de desgraça. Os meses se passavam, as barrigas já bem crescidas e lá dentro os filhos em preparação precisavam, sem qualquer opção de escolha, simplesmente aceitar serem removidos antes que estivessem, de fato, prontos. 
Muitos desses bebezinhos nasciam bem e, assim que possível, recebiam o abraço caloroso de suas mães, que tanto os haviam esperado, sonhando em ver seus rostinhos. Mas por que não recebiam os abraços calorosos de suas mães logo após seus nascimentos? Não se esqueça, nobre leitor, de que nessa história todas passavam por uma cirurgia de médio porte e possuíam inúmeros pontos em seus abdomes imperiais… Havia certo desconforto no simples fato de segurarem seus tão esperados bebês. Então, essas mães abraçavam seus amados filhos, ansiosas por sentirem pela primeira vez o seu cheirinho. Quão surpresas ficavam ao reconhecer a familiaridade daquele cheiro: sabonete. Como era possível que seus bebês recém saídos de seus úteros cheirassem a sabonete? Não se esqueça, nobre leitor, de que nessa história os bebês faziam uma pequena parada nas mãos de outras pessoas, que os lavavam e esfregavam para, só depois, entregá-los às suas mães operadas. Era um reino muito asséptico. Com horror a humanidades. Pacotinhos higienizados, vestidos e cheirando a sabonete, entregues. Mas ainda assim, esses eram felizardos bebês. Outros não tinham a mesma sorte… Precisavam ser mantidos em caixinhas aquecidas transparentes até que seus órgãos tão pequenos pudessem amadurecer ao ponto de aguentarem o tranco desta vida. Para esses pequenos prematuros retirados antes do tempo sem que houvesse qualquer necessidade, a vida começava assim… lutando por ela.
E foi assim que as mulheres viveram nesse reino não muito distante, por muitos e muitos e muitos anos. Muitos anos mesmo.
Até que, certo dia, surgiu, entre jovens amigas que se encontravam todas as tardes para um chá de alfazema, a instigante pergunta: “Não podemos parir nossos filhos como o fazem as mulheres deste reino vizinho?”. Algumas das jovens moças, temendo a hostilidade do restante do reino, que não queria saber de gemidos, odores, líquidos e gritos de felicidade, imediatamente responderam que NÃO!, não era possível regredir a um estado de animalidade; o reino era superior e já havia superado o primitivo daquela condição. Gemer, gritar, sentir cheiros que não os do sabonete, jamais!
Mas havia entre elas uma moça que insistia no fato de que não via justificativas para que fossem conduzidas como gado para uma cirurgia. Ela não queria viver aquilo. Gostaria de saber seu filho pronto, desejava esperar os sinais que ele mesmo lhe daria. As demais se dividiam entre as que temiam represálias e as que diziam que preferiam marcar o nascimento previamente; tinham medo da dor e medo da morte. E tinham razão para temer: o recinto destinado à realização das cirurgias de nascimento, também chamada de Pousada do Bom Barão, ostentava uma colossal foto do senhor Barão Cesárius Helletívius – grande salvador de vidas, que não suportava gemidos e havia tornado compulsório o nascimento cirúrgico – acima de um cartaz que dizia com letras garrafais: “Não sentirás dor. Não morrerás. Não gemerás em vão”. Era compreensível que temessem a dor e a morte… Essa era a frase mais dita e ouvida em reuniões femininas, desde que se conheciam por gente. 
Então aquela jovem moça, que não desejava passar por uma cirurgia, descobriu-se grávida e fugiu para uma casa nos limites do reino. Com ela foram seu companheiro e uma daquelas amigas presentes no chá de alfazema, que não queria deixá-la sozinha naquele momento tão especial. Ela precisaria de apoio. Então ali viveram por alguns meses, enquanto aprendiam sobre gravidez, parto, nascimento e amamentação. Acostumado ao fato de que gravidez e parto, naquele reino, não era coisa de homens, o jovem companheiro não demonstrou, inicialmente, interesse pelos estudos e disse que elas podiam ficar tranquilas, pois ele se afastaria no momento do parto. Ao que as jovens responderam que não era preciso; naquela casa não imperavam as leis daquele reino. Ele não precisava sair para que sua companheira, com a ajuda de sua amiga, pudesse dar à luz. Ele também era importante, seu filho nasceria junto com ele. E, assim, preparam-se para a chegada do pequeno bebê que, em certa madrugada, mostrou-se pronto.
Foram muitas horas de trabalho árduo dos três, trabalho ativo, amor e parceria. A jovem sentia grande vontade de se agachar, mas sua amiga não podia sustentá-la naquele momento, uma vez que se preocupava com massagens especiais que ajudavam a diminuir a dor. Felizmente, seu companheiro havia decidido ficar e pode sustentá-la enquanto se agachava, ao passo que sua amiga segurava suas mãos e a orientava em movimentos e respirações. Trabalho em equipe. Trabalho amoroso em equipe. Como estavam enchendo a banheira com água morninha vinda do chuveiro, que seria utilizada para que a jovem pudesse relaxar entre as contrações, caiu a energia elétrica da casa. Ficaram
todos no mais absoluto escuro. 
Mas a jovem não precisou se preocupar com isso, pois seu companheiro tratou de resolver o problema, enquanto a amiga se dedicava a ajudá-la e apoiá-la em seu trabalho de parto. Depois de muitas horas, tendo se alimentado, tomado muitos banhos e estando na companhia de quem se dedicara a ela, nasceu aquele bebê. Nasceu, foi amparado por seu pai, que levou-o ao colo da mãe, enquanto a amiga os orientava a desfazer as duas voltas de cordão em seu pescoço. Nasceu o bebê, repleto de vérnix, tão nutritivo e protetor. E sua mãe se lembra até hoje daquele cheiro de filho que acabou de chegar ao mundo.
Então, após ter dado à luz, voltaram para o reino, onde a novidade correu a galopes de internet.
Rapidamente, as demais amigas quiseram também conhecer aquela forma de dar à luz, queriam que seus filhos nascessem daquela maneira. Era possível, enfim, nascer sem os olhares do austero Cesárius Helletívius! Era possível, enfim, sentir o cheiro de um filho – e não de sabonete. 
Então aconteceu a fuga em massa de muitas jovens gestantes, com seus companheiros e suas amigas, para casas nos limites do reino, em busca de uma outra forma de nascer. Rumores de que o chá de alfazema as estava enlouquecendo correram pelo reino. Proibiram o chá. Rumores de que eram médicos do barão Cesárius Helletívius que levavam vida dupla correram pelo reino. Proibiram os médicos de falarem a respeito. De nada adiantou: chegadas as 36 semanas de gestação, era comum encontrar cavalos à galope no meio da noite escura. Tudo escondido. Era quase um crime.
Mas, nobre leitor, aquele não era um reino tão altruísta assim… Não era tão comum assim encontrar amigas que entendessem de parto e – acima de tudo – que quisessem acompanhar as mulheres e seus companheiros em uma desabalada fuga para que pudessem ter seus filhos longe de Cesárius Helletívius. Começou a faltar amiga… E foi então que outras mulheres passaram a estudar para preencher aquele importante papel, para apoiar as mulheres em seus partos. Em salões escondidos, nos recônditos do reino, mulheres se reuniam bem tarde da noite para estudar sobre parto, sobre a condição feminina, sobre nascimentos, acompanhadas por professoras vindas de outros reinos, livros misteriosos e – claro – chás de alfazema. Nascia, então, uma nobre profissão, a que chamaram “doulas”. 
Cesárius Helletívius, então, ao perceber o que ocorria e ao notar suas tão assépticas salas esvaziadas pelas fugas, mandou proibir qualquer grupo de mulheres que estudasse para ser assistente de parto. Estava proibida a profissão naquele reino. Mas as mulheres e seus companheiros, dotadas já de um certo grau de empoderamento advindo da nova forma de nascer, não aceitaram. Elas queriam suas doulas! Cesárius Helletívius, em uma estratégia de manter suas salas sempre cheias, ainda as seduziu: prometeu salas de parto que chamou de “humanizadas” – pois cheiravam a alfazema, gotas de óleo essencial que ele mandava trazer de longe, nada da plantinha, porque podia trazer contaminação. E as salas de Cesárius Helletívius não têm contaminação! Tem fotógrafo, tem cinegrafista, mas contaminação JAMAIS! E, você sabe… Alfazemas são tradicionalmente conhecidas por contaminar tudo ao seu redor. Mas as mulheres não queriam aquilo. Não queriam engodo. Elas queriam ser respeitadas em SUAS escolhas, não nas escolhas dele próprio. E então… rebelaram-se. E prometeram uma manifestação!
Organizaram-se. Movimentaram-se. Formaram redes pelo reino. Pintaram faixas. Chamaram carros de som. Encheram balões. Quem estava nos limites do reino esperando a chegada do filho, voltou. E foram para as ruas. Foram para as ruas defender seus direitos de escolha. Defender o direito que tinham de ter, junto a si, seus companheiros e suas doulas, se assim quisessem.
Andaram por uma das principais ruas do reino, munidas de suas armas de sempre: organização, elegância, razão, determinação e passos firmes. Andaram junto a seus filhos, seus companheiros, suas doulas, suas parteiras, suas obstetrizes, seus amigos. Atraíram a Gazeta do Reino, que fez muitas e belas fotos dessa caminhada. A cavalaria do reino as acompanhava, para garantir a segurança da manifestação. Carregavam mil balões coloridos. 
E então chegaram, silenciosas – elas sabem que é preciso respeitar a mulher que está dando à luz… – à frente de Cesárius Helletívius. E o olharam bem nos olhos. Ana Cristina Duarte, obstetriz e ativista do reino, muitas vezes atacada pela tropa helletiviana, então, leu a seguinte carta: 

São Paulo, 03 de fevereiro de 2013
Aos Dirigentes do Grupo Santa Joana:
Nós, do Movimento de Humanização do Parto, uma rede de mulheres, homens e profissionais da saúde, que em uma semana compôs o Movimento de Mulheres e Homens pelo Direito a uma Doula, para lutar contra as arbitrariedades impostas pelo Grupo, vimos por meio desta informar nossos pedidos.
1) Que as Doulas sejam recebidas, e bem recebidas como membros da equipe multidisciplinar de atenção ao parto, independentemente da presença dos acompanhantes familiares;2) Que o trabalho das Doulas seja facilitado, e não dificultado;3) Que o cadastro, se houver, seja aberto a qualquer Doula que tenha sido certificada e capacitada como tal, independente de ser ou não Psicóloga, Fisioterapeuta, Enfermeira ou ter qualquer outra profissão específica;4) Que fotógrafos de fora do hospital, contratados pelas famílias, sejam admitidos nos ambientes tanto quanto os fotógrafos que vendem seus serviços no saguão dos hospitais;5) Que as mulheres saudáveis sejam tratadas c
omo mulheres saudáveis, com liberdade, sem restrições, com acesso fácil a alimentação, hidratação natural, espaço para caminhada, banheira, chuveiro, etc.;
6) Que as equipes que trabalham com partos naturais sejam bem recebidas, mesmo atendendo partos longos, que ocupem a sala de parto por muitas horas;7) Que o plano de parto dos casais seja reconhecido como documento, respeitado e integrado ao prontuário;Que as mulheres possam ter seus bebês na água, se assim lhes convier e os seus médicos julgarem seguro;9) Que bebês saudáveis sejam imediatamente entregues ao colo de suas mães, antes de passar por procedimentos e mantidos com suas mães, sem passar por berçário de observação;10) Que o alojamento conjunto e o apoio irrestrito ao aleitamento materno seja a regra para bebês e mães saudáveis
Segue Petição Pública em forma de Abaixo Assinado, que solicita o reconhecimento das Doulas.
Atenciosamente,
Movimento de Humanização do Parto

Leu a carta e pediu um minuto de silêncio pelas tantas mulheres que tiveram seus partos roubados. Alguns nomes foram ditos, de mulheres que estavam presentes. Há rumores de que lágrimas rolaram nesse momento… E também por quem escreve essa história. Após isso, Gisele Leal, uma das doulas ativistas do reino, entregou junto a uma comissão a carta e o abaixo assinado, onde podem ser encontradas 5.200 assinaturas.  
Então, felizes por sua missão, dispersaram-se em paz pelo reino. 
O fim da história? Não se sabe… 
Mas quando todas as mulheres do reino e suas famílias perceberem que essa história quem conta é elas, tirarão das mãos de Cesárius Helletívius o poder fictício que tem sobre seus corpos. 
E foi assim mais uma manifestação organizada por mulheres e homens que lutam pela humanização do parto no Brasil. Esse reino em transformação, que começa a reconhecer, lentamente, que em direito reprodutivo e liberdade feminina não se mexe. 
Esperteza, Paciência
Lealdade, Teimosia
E mais dia menos dia
A lei da selva vai mudar

Todos juntos somos fortes
Somos flecha e somos arco
Todos nós no mesmo barco
Não há nada pra temer
Ao meu lado há um amigo
Que é preciso proteger
Todos juntos somos fortes
Não há nada pra temer

Letra da música “Todos Juntos”: Enriquez – Bardotti – Chico Buarque – 1977
*E o trecho sobre a queda de energia na casa é parte de uma história real…

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