Compartilho hoje texto que escrevi para a página da Revista Crescer, intitulado “Sobre Meninos e Cisnes” e como foi o processo até chegar a ele.

A jornalista Fernanda Kfouri me convidou para um texto como escritora convidada da revista. Meu objetivo ao aceitar o convite e produzir esse texto foi contribuir para a discussão do grave problema da medicalização da infância, da educação e da patologização do normal. A epidemia de diagnósticos psiquiátricos que vivemos hoje é algo sem precedentes na história e exige que cada um de  nós, todos nós, tenhamos uma visão diferente do assunto, que saibamos abordar o tema por um outro prisma que não o estritamente médico. O problema é grave, o assunto é sério, principalmente porque estamos transformando em doentes crianças absolutamente saudáveis por incapacidade de acolhê-las e lidar com suas diferenças.

O texto viralizou. Somente na página da revista foram milhares de curtidas e compartilhamentos. Eu realmente não esperava por isso, ainda mais considerando o tema… O número de e-mails e mensagens com teor de identificação e apoio que recebi também foi algo que me surpreendeu muito positivamente.

Não foi tarefa fácil escolher escrever sobre um tema tão delicado quanto a medicalização da infância. O tema por si só é difícil, envolve pessoas sensibilizadas, fragilizadas e gente buscando informação.

Transtornos psiquiátricos existem. Psicofármacos estão aí para serem usados com parcimônia, cautela e, quando assim empregados, salvam vidas, tornam vidas possíveis, integram, ajudam a socializar pessoas que talvez de outra maneira não conseguiriam. Foi por isso, exclusivamente por isso, que fiz mestrado e doutorado nessa área, em Neuropsicofarmacologia. Mas infelizmente, temos visto a banalização dos psicofármacos, como se fossem substitutos do autoconhecimento, das boas relações sociais, do amparo humano, de uma vida plena de sentido. Temos visto a banalização do diagnóstico e da prescrição, a influência exacerbada da indústria biomédica e farmacêutica sobre nossas decisões mais pessoais, mais íntimas. E foi por enxergar isso que preferi deixar essa área e mergulhar na saúde coletiva.

Sobre Meninos e Cisnes
Publicado em 21 de maio – no site da Revista Crescer

 

Menino era aquele bebê risonho e simpático que se interessava por todo tipo de estímulo. Da borboleta voando ao redor da lâmpada à buzina dos carros, tudo despertava sua curiosidade. De olhos vívidos, atentos ao menor sinal de movimento e atividade, Menino amava a natureza e os animais. Logo estreou, sem o auxílio de ninguém e sem ensaios, seus primeiros passos, substituindo a fase do engatinhar por passos seguros e firmes. Caía inúmeras vezes e levantava-se de todas como se nada fosse, pronto que estava para explorar o mundo, esse mundo fantástico que o encantava. Rápido aprendeu a falar. Logo transformou movimentos descoordenados em firmeza muscular e precisão de movimentos, para desespero de sua mãe que, muito antes que o esperado, precisava correr para tirá-lo de um parapeito ou de cima da mesa da cozinha ensaiando um emocionante voo em direção a uma cara esfolada no chão.

Menino prodígio. Menino precoce. Menino de ouro. Orgulho de toda a família, interessado e curioso por quase tudo. Não tudo. Coisinhas entediantes e monótonas? Não eram com ele. Seu desinteresse logo transformava-se em correria, reclamações e muito choro. A agitação o encantava, a intensidade era sua marca. Menino era demais! Mas, embora desse alegrias e orgulhos sem fim, consumia toda a energia da família. Era a alegria da casa. Mas também sua falta de sossego…

Então, Menino foi para a escola pela primeira vez. A família precisava de um descanso, estavam todos esgotados…

Pouco tempo depois, o primeiro convite: “Caros pais, esperamos vocês para uma conversa na próxima quarta-feira. Gostaríamos de conversar sobre Menino”.

O que teria havido?

No dia e hora marcados, estava lá a mãe, toda preocupação. A professora, então, perguntou a ela se tudo estava correndo bem em casa, com Menino. Se havia algo fora do normal, um problema conjugal, a chegada de um irmão, ou outra questão. A mãe se surpreendeu: n
ada estava acontecendo fora da rotina. Muito apreensiva, a professora apontou para uma mesa onde espalhavam-se muitos desenhos infantis. Árvores verdes, de troncos marrons, em cujas copas surgia o vermelho de uma maçã. Bucolismo, doçura, meiguice, padrão. E, no meio das árvores de frondosas copas e maçãs vermelhas, um cachorro com o que um dia havia sido um gato na boca. Enquanto todas as crianças haviam desenhado as mesmas coisas por orientação dela, Menino desenhara um cão com um gato arrebentado na boca. A professora estava realmente preocupada. Suspeitava de um problema doméstico. A mãe não viu nisso grandes problemas, afinal, entendia o contexto: no dia anterior, Menino havia salvado o gato da vizinha do ataque de Fedorento, seu cachorro. Muito orgulhoso, apareceu na sala com o gato todo estropiado mas ainda vivo, contando esfuziante sua proeza salvadora dos animais. Mas a professora insistiu: “Tem certeza, mãe, que nada diferente está havendo? Porque há uma diferença gritante entre o comportamento de Menino e as demais crianças da turma…”. A mãe disse que não, que estava tudo bem. “Mas observe, mãe. Esteja atenta aos sinais que podem se transformar em comportamentos mais graves no futuro”.


Findada a conversa, foi a mãe embora para casa. Mas não foi sozinha. Foi ela e a pulga. Aquela.

Chegou em casa e foi logo perguntando por Menino. Chamou uma, chamou duas, chamou três vezes. Nada de Menino aparecer. Preocupada, chamou a vizinha para ver se ele estava por ali com as demais crianças. “Não, Menino não está aqui não. Estão todos jogando videogame ali na sala, menos Menino”. E eis que surge Menino: imundo, suado e com um ferimento gigantesco no joelho. Onde ele estava? Correndo na rua com Fedorento. “Estou te chamando há horas! Olha só como você está! Porque raios você não pode ser como todo mundo, Menino?!”.

Naquela noite, a mãe não dormiu… A pulga não deixou. Seria Menino uma criança diferente das demais?

A escola ainda chamou mais duas vezes a família para conversar. Menino não parecia se enquadrar à turma, aos hábitos, à escola. “Não se interessa pelas atividades propostas. Seus desenhos e sua linguagem são atípicos. Nosso psicopedagogo detectou um déficit de desenvolvimento, talvez relacionado à sua hiperatividade. Sugerimos, então, uma abordagem medicamentosa como forma de contornar sua dificuldade natural. Família nenhuma quer expor um filho a dificuldades graves futuras, não é mesmo?”.

E foi assim que o Menino prodígio, o Menino precoce, deixou para trás sua história como o filho pródigo para ser… o Menino problema. O Menino hiperativo.

A partir de então, Menino passou a ouvir repetidas vezes sua mãe e pai falando aos outros que ele era assim porque era hiperativo. Seus pais eram tudo que ele mais admirava na vida. Se eles falavam que ele era hiperativo, então é porque ele era hiperativo. Isso afetou sua autoestima, sua segurança, sua desenvoltura. Ele se sabia doente… Foi quando as coisas em sua vida começaram a mudar.

A mãe confiava na escola. A escola detinha anos de experiência. A mãe confiou no diagnóstico dado ali. Natural: uma mãe quer o melhor para seu filho. Uma mãe não quer que seu filho sofra. E ao ouvir a frase: “Família nenhuma quer expor um filho a dificuldades graves futuras” havia sido acionado aquele botão mágico de manipulação materna: a culpa.

A mãe não sabia… mas Menino não estava só. Antigamente, apenas entre 2 e 5% das crianças em idade escolar eram diagnosticadas como hiperativas. Hoje, esse valor está chegando a 30%. Uma prevalência dessa é maior que muitas doenças sérias, como a asma, a bronquite e até mesmo o câncer. Mas será mesmo que todos esses meninos e meninas diagnosticados possuem essa doença? Ou será que está havendo uma epidemia de diagnóstico, englobando inclusive o sadio como doença por incapacidade da escola de lidar com as diferenças?

A mãe não sabia… mas o que a escola estava fazendo não podia ser feito. Se a hiperatividade é uma condição neurobiológica dos domínios da psiquiatria, um diretor não pode diagnosticá-la. Um professor também não. Mesmo quando diagnosticado por um médico psiquiatra, é preciso cautela em aceitá-lo, porque existem profissionais de todos os tipos. E, no entanto, mais da metade das crianças diagnosticadas como hiperativas recebem o primeiro diagnóstico exatamente na escola.

O nome disso: medicalização da educação. É quando a inabilidade da escola de lidar com diferentes personalidades é interpretada como um problema de saúde mental. Afinal de contas, é muito mais fácil culpar a criança do que reformular a prática de ensino.

Um grupo importante de pesquisadoras da Unicamp relatou exatamente o que anda acontecendo em muitos outros lugares. Uma professora da primeira série de uma escola em Campinas, interior de São Paulo, chegou a encaminhar 10 crianças de uma classe com total de 31 alunos para serem avaliadas por profissionais do Serviço de Saúde Mental. Eu não sei para você, mas a mim faz muito mais sentido que essa professora não estivesse preparada para lidar com as diferenças dos alunos do que achar que quase metade da turma possuísse um transtorno psiquiátrico. Hiperatividade não se dá como gripe, que atinge todo mundo por infecção. A chance de que Menino, cheio de vida e absolutamente normal, fosse um desses 10 é grande…< span style=”background-color: white; line-height: 24px;”>

Professores não são os vilões que fazem centenas de maus diagnósticos de caso pensado. Eles vêm sofrendo com décadas de desvalorização profissional e de rebaixamento hierárquico. A prática pedagógica tem sido vista como “inferior” há muito tempo. Ao se considerar capaz de oferecer diagnósticos que somente um profissional médico pode fazer, isso confere um aparente aumento de status. Mas o que acontece é exatamente o contrário: a depreciação ainda maior da educação em detrimento de outra área. A escola, aquele lugar onde se aprenderia, onde experiências incríveis seriam vividas, onde o brincar daria o tom da aprendizagem, transformou-se em rotulador e identificador de doenças, pautado pela identificação de distúrbios de aprendizagem. A epidemia de diagnósticos de hiperatividade que todos já sabemos que existe é extremamente prejudicial à nossa infância. Não somente aos meninos e meninas absolutamente saudáveis que estão sendo rotulados. Mas também àqueles que, de fato, apresentam reais problemas de aprendizagem. Afinal de contas, a atenção e o cuidado que deveria ser dada a essa criança passa a ser dividida entre centenas de crianças que não precisam.

Mãe e pai de Menino viveram muita angústia após o diagnóstico. A mãe chegou a dividir sua angústia em grupos maternos virtuais e lá encontrou diferentes opiniões. Havia quem a incentivasse a medicá-lo, dizendo que o mesmo tinha acontecido com seu filho e que a medicação havia melhorado tudo, um “santo remédio; agora ele aprende, se mantém sentado e todos têm paz”. Havia o depoimento da mãe que medicara seu filho, mas que desistira em função dos efeitos colaterais que havia observado, que tiraram dele sua característica natural e seu brilho no olhar. E havia quem sugerisse que nada de errado havia com Menino, que ouvi-lo era uma boa, que avaliar criticamente o método da escola era uma boa, que manter o diagnóstico como dúvida e não como verdade era uma boa, e que reformular sua rotina em casa era uma boa também.

Foi quando a família de Menino decidiu: não queria o diagnóstico. Decidiram tirar Menino daquela escola, que não o aceitava. Escolheram uma outra que oferecia aquilo que, de fato, tinha significado para o filho: valorização do natural, espaço para correr, professores de fato preparados para acolher as difenças. Em casa também reformularam muita coisa. Criaram mais situações em que Menino podia usar toda sua energia. Mudaram a iluminação da casa. Reduziram ruídos. Tiraram a televisão do período noturno. Cortaram os alimentos ricos em açúcar. Introduziram a música educativa no lugar da música sem sentido. Deram outro significado ao banho, como momento de descanso e relaxamento. Reduziram os estímulos visuais excessivos do quarto. Passaram a conversar mais, a fazer mais refeições juntos, a envolver Menino nas tarefas domésticas. Trocaram uma de suas três atividades extracurriculares por passeios contemplativos ao ar livre.

Não foi fácil. Não foi tranquilo. Não foi rápido. Mas foi recompensador.

Hoje, Menino é livre para continuar a ser quem sempre foi: aquela criança risonha e simpática que se interessa pela vida, de olhos cheios de um brilho radiante e cheio de energia. Sem rótulos. Sem drogas. Com orientação e envolvimento familiar, uma escola comprometida e muito, muito respeito pela pessoa que ele é. E não pela que querem que ele se torne. Afinal, ele é um cisne. Não um patinho feio.

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