Fonte da imagem: aqui.
Na semana passada, mais precisamente dia 17 de julho, os veículos de comunicação noticiaram a publicação, em uma das mais respeitadas revistas científicas no mundo, a Nature, de uma pesquisa diretamente relacionada à Síndrome de Down. Nela, a pesquisadora Jeanne Lawrence e sua equipe apresentam resultados que, em última análise, mostram o “silenciamento” do cromossomo 21 extra presente nas pessoas que possuem a síndrome, e que seria o causador de suas características genéticas e morfológicas. A notícia causou grande alvoroço, principalmente entre mães e pais de crianças que possuem a síndrome. Desde então, tenho recebido alguns e-mails e mensagens perguntando sobre o assunto, se isso representa uma “cura”, se é definitivo, o que de fato representa essa pesquisa e esse resultado.

Frente à leitura que fiz do artigo e dos comentários de alguns pesquisadores, não me pareceu nada relacionado a “cura”, ao contrário do que muita gente andou dizendo por aí – claro, estimulados pela mídia, que produz matérias sensacionalistas, com títulos atrativos, porém rasas. Diz mais respeito ao conhecimento que vai sendo adquirido a respeito do substrato genético dessa trissomia, das técnicas de pesquisa utilizadas e de possíveis abordagens terapêuticas futuras. Não dá para imaginar que seja algo que transforme vidas agora, ao contrário do que muitos discutiram.
Como não sou geneticista, não estou apta a falar sobre o estudo. Mas considerando o grande número de pais e mães buscando informação a respeito e o objetivo deste blog  – que é, entre outros, divulgar informação baseada em evidências científicas justamente para pais e mães – senti-me motivada a buscar um esclarecimento confiável sobre o tema. Foi quando me deparei com o texto produzido por uma amiga, pessoa que esteve bastante presente em minha vida durante a graduação e a quem considero muito. Li o que ela escreveu, gostei bastante e a convidei a publicar aqui seu texto, ao que ela prontamente aceitou.
Ela é Debora Rodrigueiro, formada em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual Paulista, mestre e doutora em Ciências Biológicas/Genética pela mesma universidade, tendo sido seu doutorado realizado parcialmente na Universidade de São Paulo. Debora é professora do Departamento de Morfologia e Patologia da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da PUC-SP, campus de Sorocaba. É colaboradora do Serviço de Aconselhamento Genético da Universidade Estadual Paulista (Campus Botucatu, SP) e do Instituto de Química da mesma universidade, no Campus de Araraquara, SP. Trabalha especificamente com sindromologia, citogenética humana, diagnóstico molecular de afecções genéticas e aconselhamento genético.
Para mim é não só uma honra como uma grande alegria ter esse texto publicado aqui. Obrigada, Debora, por aceitar o convite.
Abaixo segue, portanto, o texto em que ela explica o que é a técnica, como é possível o desligamento genético de um cromossomo, o que é o gene chamado “XIST” e o que representa, de fato, tais resultados. Espero, com esse texto, ajudar a desmistificar falsas crenças imediatistas e superficiais que por ventura a mídia generalista tenha estimulado nas famílias ao divulgar os resultados do estudo. Em resumo: é um resultado bastante positivo. Mas não, não é a cura. Tem mais a ver com técnica, com conhecimento da base genética das trissomias (presença de um cromossomo a mais em um determinado par, caso da Síndrome de Down e de outras) e com perspectivas futuras. Se sabe, hoje, como bloquear a expressão de um cromossomo (ou de parte dele), mas não se sabe as consequências disso em um indivíduo. 
TRADUZINDO A COMPENSAÇÃO DE DOSAGEM NA TRISSOMIA 21

Por Debora Rodrigueiro
Em 19 de julho de 2013

A inserção de um gene que pode silenciar a cópia extra do cromossomo 21 que causa a Síndrome de Down, segundo um estudo publicado em 17/7/2013 na revista Nature, partiu de uma excelente ideia.  O método pode ajudar os pesquisadores a identificar os caminhos celulares por trás dos sintomas do transtorno, e então desenvolver tratamentos direcionados. Entretanto, contrariando o que tem sido divulgado na mídia, não é a cura da Síndrome de Down.

Não me causa estranheza ver tantas notícias a respeito desta publicação, ainda mais ao checar que o artigo foi enviado à revista em maio de 2012e aceito para publicação em junho deste ano. Um trabalho passar por revisão e análise crítica por tanto tempo nesta revista é um claro indicador do impacto de seus resultados e aplicações.
Jeanne Lawrence e sua equipe desenvolveram um método para simular o processo natural que silencia um dos dois cromossomos X transportados por todos os mamíferos do sexo feminino. Ambos os cromossomos contêm um gene chamado XIST (X INACTIVATION-SPECIFIC TRANSCRIPT), o qual, quando ativado, produz uma molécula de RNA que reveste a superfície de um cromossomo tal como um cobertor de bloqueio, impedindo outros genes de serem expressos. Nos mamíferos do sexo feminino, uma cópia do gene XIST é ativada – silenciando o cromossomo X em que ele reside.

E por que isto acontece?

Os machos possuem apenas um cromossomo X e, consequentemente, uma cópia dos genes nele situados. As fêmeas, com suas 2 unidades cromossômicas, possuem em cada uma de suas células 2 cópias de cada gene do cromossomo X. Ao inativar um de seus cromossomos X, através do gene XIST, há a compensação de dose. Por outro lado, os machos possuem o cromossomo Y, um pequeno cromossomo que contém, dentre outros, um gene crucial na complexa cascata de diferenciação sexua
l. Nesta linha de raciocínio, agora quem tem mais genes ativos seriam os machos, correto?

É aí que entra um ponto chave do funcionamento do gene XIST: ele não “desliga” o 2º cromossomo X inteiro nas fêmeas. Alguns genes escapam desta inativação e o resultado é que as fêmeas permanecem, para determinados genes do cromossomo X, com duas cópias ativas. Ao final, não há superdosagem de genes em nenhum dos sexos.

Numa definição simples, o termo “síndrome” refere-se a um conjunto bem definido de sinais e sintomas que caracterizam uma doença ou estado patológico. Esta é uma nomenclatura para o reconhecimento clínico de uma patologia, não necessariamente genética. Um exemplo é a síndrome de Estocolmo, um estado psicológico particular desenvolvido por algumas pessoas que são vítimas de sequestro. A Síndrome de Down é causada pela presença de 3 cópias do cromossomo 21, ao invés das 2 habituais.  Não há diferença em relação ao sexo; homens e mulheres possuem 2 cópias deste cromossomo e, portanto, duas cópias de cada gene localizado no cromossomo 21.  Logo, o mecanismo responsável pela Síndrome de Down é a superdosagem de genes, porque as 3 cópias de cada gene estão ativas, ou seja, ligadas. 

A ideia dos pesquisadores foi a de, experimentalmente, desligar a 3ª cópia do cromossomo 21. A equipe de Lawrence inseriu o gene XIST em uma das três cópias do cromossomo 21, em células retiradas de uma pessoa com a síndrome. A equipe também inseriu um ‘interruptor’ genético que lhes permitiu ligar XIST dosando as células com o antibiótico doxiciclina visando bloquear a expressão de genes individuais ao longo do cromossoma 21 que potencialmente contribuem para os problemas globais do desenvolvimento que compõem a Síndrome de Down.

A ideia de desligar um cromossomo inteiro é extremamente interessante. Em estudos anteriores pesquisadores já haviam retirado o cromossomo extra em células de pessoas com Síndrome de Down usando um tipo diferente de modificação genética. Em ambos os casos, de retirada ou desligamento do cromossomo, os resultados foram experimentais, com células fora do corpo em funcionamento. Não há até o momento nenhuma estratégia segura de intervenção deste porte (retirar ou desligar um cromossomo específico de cada uma das 10 trilhões de células de um indivíduo).

Assim como ocorre naturalmente no cromossomo X das fêmeas de mamíferos, o gene XIST não inativa todos os genes do cromossomo, e não há por enquanto um controle sobre quais genes ele irá atuar, inativando-os. Quero chamar a atenção sobre o uso do gene XIST na inativação de cromossomos extra: ao ligar o gene XIST não há como certificar-se do bloqueio de toda a expressão de todos os genes no cromossomo extra, e isso pode atrapalhar os resultados experimentais.

Ainda assim, acreditamos que a abordagem poderia render novos tratamentos para a Síndrome de Down – e ser útil para o estudo de outras doenças cromossômicas, como a síndrome de Patau, um distúrbio do desenvolvimento causado por uma terceira cópia do cromossomo 13.

Debora A. Rodrigueiro, MSc, PhD

Bióloga Geneticista

Departamento de Morfologia e Patologia 

da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da PUC-SP

*trechos ressaltados por Ligia Moreiras Sena – blog Cientista Que Virou Mãe
**Em tempo:
Quero enfatizar o seguinte: eu, se tivesse um filho ou uma filha com essa característica (e não estou isenta de ter, nem isso me atemoriza), jamais estaria buscando qualquer espécie de “cura”. Estaria, sim, buscando melhorias possíveis para sua vida. Não vejo a síndrome como doença. Vejo como uma característica genética como outras. A diferença é que essa traz, junto consigo, alguns fatores que podem comprometer a saúde de quem a tem quando não recebe o acolhimento e acompanhamento devidos e, apenas por isso, eu gostaria de acompanhar melhor as descobertas da ciência no que tange à sua base genética. No mais, quero reforçar minha postura de jamais encarar um indivíduo como portador de qualquer coisa mas, sempre, como uma pessoa plena e dotada de direitos e dignidade como todas. Tudo que proponha qualquer espécie de “cura” para características humanas (não doenças) não tem nem terá meu apoio jamais.

Leave a Reply