“O que fazer com uma criança dessa?”
Uma criança “dessa”…
O que tem essa criança? O que a faz diferente das demais? O que dá a sensação de que “essa” criança – e talvez não outras… – pode ser exposta a tamanha humilhação, ridicularização e desprezo por seu sofrimento? Por que “essa criança” pode ser exposta à incitação da violência nas mídias, enquanto outras são protegidas e eliciam movimentos de problematização pela violência sofrida? Nenhuma criança age de maneira agressiva extrema se está tudo bem com ela. Isso não parece óbvio? Não, infelizmente não é óbvio. E por que não é? Porque não vivemos em uma sociedade cujo padrão é acolher e respeitar a infância. Nosso padrão, enquanto membros de uma sociedade violenta, é ser violento com aqueles cujos direitos são sistematicamente violados. Especialmente os das crianças. Especialmente os das crianças negras e pobres. Especialmente os das crianças em cujos ombros repousam séculos de opressão e negligência. Negligência de seus pais? Não apenas. Negligência de toda a sociedade.
A repugnância da sociedade pela infância não é algo recente. Toda a aceitação, crença e reforço à infância como um período obrigatoriamente nefasto, quando as crianças são necessária e obrigatoriamente ruins, maldosas, incapazes de bondade, vem de séculos de crenças filosóficas e religiosas, especialmente compiladas e defendidas por Santo Agostinho, e depois por Decartes, entre tantos outros personagens considerados “sábios”. Santo Agostinho, um dos principais responsáveis pela compilação do conhecimento religioso católico, ao mesmo tempo que é autor de frases como “Aquele que tem caridade no coração tem sempre qualquer coisa para dar” ou “Onde não há caridade não pode haver justiça“, foi o mesmo que defendeu e propagou não existir inocência na infância. Para ele, a criança é a máxima expressão do pecado original, a condenação da humanidade, tendendo sempre para o mal. O que os adultos, portanto, deveriam fazer para corrigir tal mazela chamada infância? “Combatê-la“, era essa sua resposta… Anulá-la. E daí seguia-se toda sua defesa das varas, ameaças e palmatórias. “Infante”, advindo de “não ter fala”, não teria razão e, portanto, não teria em si a manifestação divina que há nos adultos… Ainda que separados por séculos de história, Descartes (o filósofo de uma tal razão) assemelhava-se em muito a Santo Agostinho no que acreditava ser a infância. E, tendo o pensamento ocidental moderno sido esculpido pelo conhecimento cartesiano – limitado, limitante, reducionista e simplista – fica fácil perceber de onde vem tanta repúdio à infância… Descartes reconhecia a imaginação, criatividade e ingenuidade das crianças como sendo obrigatoriamente nocivos e, para ele – bem como para Santo Agostinho – quanto antes saíssemos da infância, melhor para nós.
De onde viria tamanha rejeição a ser criança? Por que temos dois grandes filósofos, entre tantos outros influenciadores de grande parte do pensamento ocidental, rejeitando qualquer coisa que remeta a ser criança, recomendando seu combate e anulação? Teria vindo, talvez, de uma infância extremamente dolorosa para si próprios? Com toda certeza. A infância de ambos foi marcada por profundas formas de violência e desrespeito, e ambos conheceram diferentes formas de negligência, desamor e rejeição.
Mais uma vez, aquilo que já sabemos…
Crianças criadas com desprezo aprendem a desprezar.
Crianças criadas com violência aprendem a violentar.
Crianças criadas com repugnação por sua condição aprendem a repugnar. E, o que é pior, mobilizam milhares de pessoas a fazerem o mesmo.
O garotinho do vídeo compartilhado milhares de vezes, que joga móveis e apresenta forte descontrole emocional, está sofrendo. É tão difícil enxergar isso? Sim, para muitas pessoas é muito difícil enxergar sofrimento onde há banalização. Para aqueles que aprenderam que a culpa é sempre das crianças, que elas são essencialmente más e nocivas à sociedade, ou para aqueles cuja violência no trato consigo mesmas, em suas infâncias, foi uma constante, uma “banalidade”, uma condição inerente, é difícil distanciar-se do senso comum. E o senso comum incentiva a violência. O senso comum vê de maneira rasa, vê apenas duas soluções: o 8 ou o 80. A punição física severa ou a completa negligência. Para os que foram criados de maneira negligente, violenta, marcada por anulação de seus próprios anseios, é muito difícil retirar-se do círculo vicioso que alimenta ainda mais violência e dizer: “Ajudem-no. Ele precisa de amparo, de amor“. É muito mais fácil reproduzir – à moda de Santo Agostinho e Descartes – aquilo que está dentro de si, fruto de uma infância difícil, e dizer: “Isso é falta de porrada! Isso é falta de tapa! Isso é falta de chinelada” ou qualquer outra coisa que vá, com toda certeza, aumentar ainda mais o sofrimento daquela criança. <
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Retirar-se do círculo vicioso de uma infância violenta e afastar-se do discurso predominante que pune e agride a criança e defende o adulto, é tarefa extremamente difícil. E sua dificuldade maior talvez esteja no fato de que é uma porta que só abre por dentro. É preciso olhar para si, reconhecer a própria dor, ver-se como parte de uma sociedade violenta e… decidir se retirar dela. Para acolher. Para fazer diferente. Para defender as crianças. E, assim, ajudar a curar a própria criança que um dia se foi…
Olhar para aquele garotinho, tão novinho, tão desamparado, em situação de sofrimento emocional, sendo ainda estimulado por quem está ao seu redor a ficar ainda mais descontrolado, ao invés de receber acolhimento, contensão amorosa e respeitosa, olhar empático, uma palavra firme porém amorosa para tirá-lo daquele estado de hiperagitação emocional, olhar para ele e reconhecer sua dor significa, também, olhar para si e reconhecer a própria dor. Enxergar a dor do outro tem muito a ver com enxergar a própria dor, a própria infância. E isso, numa sociedade que valoriza superficialidades a aparências, que medica para NÃO SENTIR, que distrai para NÃO SE CONHECER, que se droga para NÃO MERGULHAR EM SI, praticamente não existe…
Olho para o garotinho e penso: “Sei o que é isso”. Porque me reconheço nele, ainda criança, se sentindo sozinho, com medo. Expor sua situação de fragilidade e sofrimento com tamanho desdém, estimulando que outras pessoas, tão desconhecidas, incentivem e PEÇAM que ele seja punido, violentado, agredido, não é só a total anulação de seus direitos como pessoa. É, principalmente, falta de amor. Falta de amor pelas crianças. Falta de amor por quem não conhecemos. Falta de empatia. É julgamento – talvez a prática mais corrente hoje nas redes sociais. O julgamento “detentor” de verdades, ainda que sejam criadas ao bel prazer de quem julga.
Por séculos a fio, o infanticídio foi permitido. Por séculos a fio, a infância foi negligenciada. Cada vez que compartilhamos aquele vídeo, fazemos isso. A infância somente passou a ser respeitada e valorizada há muito pouco tempo em nossa história. E não se espante ao saber que esse respeito se refletiu, também, numa maior aproximação entre os pais e seus filhos…
Então, faço a você, que recomendou a violência contra aquele garotinho, uma pergunta: o que isso diz sobre você? O que diz sobre sua infância? O que diz sobre a qualidade do amor que recebeu? Você o recebeu? O que diz sobre você ter aprendido, em algum momento de sua vida, que amor e violência podem se unir? E, especialmente, o que isso diz sobre sua vida e suas experiências hoje?
Saindo um pouco da dimensão da reflexão e sendo mais pragmática, gostaria de lembrar que o garoto ter sido filmado em situação de vulnerabilidade, exposto em seu sofrimento, representa crime contra a infância. Crime praticado por uma pessoa e reforçado por milhares de cúmplices, que desconhecem e/ou descumprem o que as leis de proteção à criança brasileira orientam. E é com elas que eu termino esse texto. Porque é preciso olhar para si e reconhecer em si uma história de violência, se deseja mudar. Mas também é preciso respeitar direitos duramente – e recentemente – reconhecidos. Crianças são detentores de direitos. Se é tão difícil assim para esta sociedade doente o exercício do olhar empático, talvez cumprir determinações legais – “pequenos manuais de convivência em uma sociedade não animalizada” – seja mais fácil… Se der preguiça, facilitei o trabalho: selecionei uns excertos, coloquei em negrito e em letra maior. É só lê-los.
E a você, que recomendou a punição e violência contra aquele garoto, estimulado por um vídeo desprezível, pergunto: como se sente violentando crianças? Caso esteja se sentindo mal, a boa notícia é que você pode mudar.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:
Outras sugestões de leitura:
– As concepções de infância e as teorias educacionais modernas e contemporâneas – Paulo Ghiraldelli Jr.
– O uso de palmadas e surras como prática educativa – Lidia Natalia Dobrianskyj Weber, Ana Paula Viezzer, Olivia Justen Brandenburg