As redes sociais nos permitem belíssimas trocas, que talvez não fossem possíveis de outra maneira. É por meio delas que trocamos ideias, que nos apoiamos, que damos um “olá” para alguém que mora longe, que matamos saudades, que acompanhamos o crescimento das crianças de quem gostamos, a viagem dos amigos, as conquistas e vitórias. Claro que é também por ela que, vez ou outra, acontecem situações desagradáveis, deselegantes, egoístas. Mas, ainda assim, vejo muito mais riqueza na interação que é possível, muito mais construção, muito mais coletividade.
É também pela rede que recebemos apoio nos momentos felizes e também nos mais tristes.
Senti isso na pele há pouco tempo.
Com a perda do meu pai, recebi dezenas de e-mails e mensagens de muita gente, muita gente mesmo. Gente conhecida, gente que ainda não conheço, gente que escreveu longas, profundas e belíssimas mensagens de apoio, gente que escreveu uma simples e comovente frase. Coisa assim… maravilhosa. Emocionante. Demais mesmo. Foi algo em que me apoiei em muitas madrugadas de melancolia. Muito obrigada a todos que dedicaram alguns momentos de seus dias a me escrever lindas cartas.
Hoje é mais fácil estar “ao lado” de quem a gente gosta, mesmo que estejamos fisicamente longe. E-mails, Facebook, Twitter, Google+, etc e etc. Mensagens de texto dos celulares. WhatsApp. Até o telefone anda perdendo espaço frente a tantas outras facilidades mais econômicas.
Mas antes, como era? Como nos comunicávamos antes com quem não estava tão perto de nós?
Cartas.
As coisas eram mais lentas, mais esperadas.
Esperávamos os carteiros com ansiedade maior que a que temos hoje pelo BIP dos equipamentos eletrônicos.
Muita gente viveu experiências inesquecíveis mediadas pelas cartas e guarda profundas e belas lembranças dessa época. Muita gente vive ainda hoje a emoção de escrever cartas, selá-las, levá-las aos Correios, esperar que sejam entregues, aguardar a resposta, aguardar o carteiro.
Então um dia, na timeline da rede social, uma amiga escreveu que sentia saudade das cartas e ficaria feliz em receber algumas. Logo pedi seu endereço. Meu objetivo era gravar uma mensagem de voz a ela, passá-la para um pen drive, colocar o pen drive em um envelope e enviar pelos correios. E por que? Porque eu queria que ela pudesse me ouvir. Queria que ela ouvisse minha voz, já que sei que para ela ouvir é fundamental.
Então, ao invés de pedir que me leiam, peço agora que me ouçam. Abaixo, é uma mensagem que gravei especialmente a ela e que explica um pouco da postagem de hoje. Caso você não possa me ouvir, no final da postagem há transcrito o que eu digo na mensagem de voz.
Abaixo segue, então, o belo texto de Joyce Guerra. Como eu disse, ela é mãe em tempo integral, bibliófila e escritora nas horas vagas. Acredita na disciplina positiva, na criação com apego e na não-violência como forma de criar seres melhores para o mundo. Ela é uma ativista (mesmo que não se denomine assim) da acessibilidade para cegos e, mais importante, da inserção dos cegos como membros ativos da sociedade. E, além disso, vive nos dando grandes lições sobre infância e criação de filhos, já que ela tem pequenos a quem ama acima de tudo.
Muitas vidas pelas cartas…
Joyce Guerra
Pelos livros, vivemos várias vidas; pela correspondência também, com o detalhe de serem reais.
Em nosso contexto extremamente conectado, vivemos o risco ocupacional de ficarmos isolados no nosso quadradinho restrito de experiências cotidianas, não obstante termos o mundo inteiro ao alcance da ponta dos dedos.
Comigo, não foi assim. A diversidade sempre esteve ao lado, talvez por minha deficiência ter me excluído, felizmente, da hipótese de me sentir apenas mais uma, inserida firmemente num contexto de aceitação e garantias.
Por gostar muito de ler em um universo em que livros eram tão escassos quanto difíceis de obter, cedo passei para os correspondentes; e por cismar de aprender castelhano, o leque se ampliou.
Cada qual tinha seu jeito, um estilo muito próprio, muito particular. Um, de Portugal, enviava as cartas todas escritas em Braille a mão, numa escrita reta, perfeita, impecável. Ele me falava de seu dia-a-dia e, muitas vezes, não estava no apartamento que partilhava com minha mãe no Jardim 13 de Maio, mas com ele, lá em Sobreda, Portugal.
“Se somos amigos, conta-me um segredo” – Disse-me, à terceira volta de cartas.
“Desculpe, eu acho que não tenho segredos” – Leu, três semanas mais tarde.
“Não estou aí, então, o que quer que me contes, será segredo, se assim o disseres“.
“Ok. Eu queria entender matemática, só que não entendo, e isso me faz sentir completamente burra.“.
“Lá vai o meu: estou a trair minha mulher com uma gaja da Irlanda. Acho que sou mais burro que tu“.
Também havia uma moça de Cascais. Ela não enviava cartas, mas fita-cartas [fitas-cartas eram fitas cassetes onde se gravavam as mensagens, ao invés de escrevê-las]. Logo passei preferir estas àquelas. Antes de fazer 14 anos, soube do som que faziam as máquinas de diálise. Ela gostava especialmente de gravar cartas para seus correspondentes enquanto estava conectada, o que acho que era uma alternativa bastante sábia da parte dela. Sua voz era suave e, por vezes, o sotaque era tão acentuado, que punha o gravador para reproduzir mais devagar, para apanhar todas as palavras. Na quarta mensagem, confidenciou:
“Sei que estou a morrer, pequena, mas isto não importa. Não importa a mim, e deve não importar a você, também. Pensa-se muito quando espera-se demais, e pensar é um privilégio. Este não é meu primeiro transplante, e está posto que não sobreviverei ao próximo. Dizem que o que mais faz falta às pessoas é a Educação; acho que o que mais falta é gentileza. Gentileza por gentileza; gentileza por amor ao desconhecido e ao reconhecido. Há poesia nas máquinas e nas esperas, e há nos amigos de longe que nos ouvem, como tu.“
Em troca eu lhe falava dos meus livros favoritos, dos desafios de estudar num sistema que, pouco a pouco, entendia o que era inclusão.
“Tudo que passa contigo hoje, é para que seja melhor para os que virão” – dizia outra, da Polônia, também me retratando suas dificuldades na sua escola. Aliás, as minhas eram fichinha perto das dela. Eu sabia não só porque ela me contava, mas porque levava o gravador para a sala de aula, e embora não entendesse nada de polonês, podia entender a que ela se referia. Discriminação. Despreparo, frustração… E, ainda assim, com as doses de gentileza que minha amiga de Cascais tanto apreciava. Por último um amigo, de Moscou, gravava sua realidade. O som dos pássaros de sua cidade, que não eram muito diferentes dos sons dos que cantavam na praça do meu bairro, todas as tardes; seu trabalho, sua rotina, como ele vivia em um frio que era surreal para mim, mas era parte do seu universo. Este reencontrei, pela Internet. Ele me ensinou a apreciar música celta, música indiana, música popular russa, enquanto ele ouvia sobre meus desafios e era um dos poucos russos a tocar “Lua e flor”, de Oswaldo Montenegro, num sotaque que era indecifrável, para mim. Mas era lindo, não porque fosse estético, mas porque nos fazia próximos.
A música era ponte para uma das lições mais valiosas que colhi, naqueles anos: o de acolher a diversidade em mim e nos outros, e de sempre relativizar tudo, especialmente as dificuldades.
Na era moderna, tenho centenas de conhecidos, alguns muito bons amigos, mas nenhum correspondente… E sinto falta deles. O cheiro do papel dobrado; os dedos contando os selos dos correios. Aquelas cartas imensas, escritas com carinho, escritas sem medo, faladas de qualquer jeito, do jeito exato de quem queria dizer.
A última fita dela me chegou quando estava me preparando para deixar minha cidade natal pela vez que não era a primeira, mas seria definitiva. Uma fita made in China, porque as realmente boas já não eram mais produzidas. O som monocórdio e inexorável da diálise ao fundo. Sua voz, gentil como sempre, mas mais distante, como se, realmente, houvesse um Atlântico entre nós.
“Esta não precisas mais responder, amiguinha. Estou a enviar despedidas para toda a gente,e não porque seja mórbida. Posso ouvir, mesmo daqui, coisas ótimas para se olhar. Sei que a vida não é fácil para ninguém, mas nem por isso deixa de ser boa, por mais que possa soar contraditório. Nos meus vinte e cinco anos de vida, conheci muita gente diferente. Família, amigos, colegas, professores, médicos, enfermeiros, amores de muitas cores, e estou muito grata a todos eles, mesmo aos que
me feriram, porque me fizeram mais humana. Não chores muito por mim. Só um bocadinho, para significar que me querias. Deixa-me dizer algo importante: nunca esqueças que és uma boa amiga. Não deixes que nada nem ninguém te tire isto. És uma boa amiga, e por essa razão poderás ser feliz, onde quer que estiveres. Seja uma boa amiga, e sempre terás alguém por ti, em algum lugar, qualquer lugar. As pessoas perdoam se fores diferente; as pessoas perdoam se pensares diferente; mas as pessoas não
perdoarão se não as tratares com respeito. Lembra-te sempre disso e de mim, de vez em quando.”
E, como sabia que eu estava para ir embora, dedicou-me uma música que eu lhe enviara na fita passada, dizendo que tinha tudo a ver com a viagem que nós duas empreenderíamos, opostas na aparência, mas idênticas, na essência…
“A primeira noite
Na cidade distante do seu quarto
É a primeira sem tudo o que passou“…
*para você que não pode me ouvir, aqui há a transcrição do que eu digo na mensagem de som:
**meu agradecimento especial a Priscilla Carriel e Marcela Nunes pela ajuda com a transformação do arquivo de som em milhares de formas 🙂