É muito difícil escrever esse texto. Já comecei algumas vezes. Deletei tudo. Parei. Fui cuidar da cria. Dormi. Trabalhei. Reescrevi. E apaguei tudo de novo. É difícil porque diz respeito a muitas de nós. Diz respeito a mim, inclusive – e muito.

Por que é tão mais fácil assumir o feminismo em sua forma política, não aceitar a misoginia que vem da rua, adotar uma postura na vida pública, nas redes sociais, na militância, no apoio a outras mulheres, do que em casa com nossos filhos, nosso pai, nosso companheiro (principalmente se estamos em uma relação com um homem cisgênero)?

Fui procurar leituras a respeito disso. Achei muito pouco. Conversei com psicólogas, lembrei das minhas próprias sessões de análise, das mulheres que tenho encontrado na vida e que tanto me inspiram, de amigas queridas com relacionamentos marcados muitas vezes por abusos e traição, outras apenas por atitudes e falas sutis que elas identificam como machistas mas não sabem como lidar. Mulheres incríveis que se viram enredadas em histórias tão cruéis quanto as que combatem e denunciam em sua militância. Outras que queriam muito chegar em casa, após um longo dia de atendimento a mulheres vítimas de violência, e apenas não terem que lidar com falas machistas do companheiro que se considera tão desconstruído.

 “Estou tão cansada” me disse uma delas certa vez. “Eu amo meu marido, ele é um cara legal, se esforça pra desconstruir o próprio machismo. Mas ele é homem. Foi socializado como homem. Às vezes simplesmente não tenho paciência”. E isso é um dilema para mulheres que amam homens. Não me esqueço de quando sentei finalmente para tomar um café com uma mulher forte, inteligente, que eu admiro muito e que sempre entrevistei para matérias sobre violações de direitos relacionados a gênero. Nós havíamos nos encontrado muitas vezes, mas nunca informalmente. Quando isso aconteceu, ela me contou que passou anos namorando um homem casado sem saber e que eles tinham inclusive noivado diante da família dela e que ele manipulou o relacionamento de tal forma que ela não suspeitou de nada. Quando descobriu, ficou em pedaços, mas também começou a se lembrar dos sinais. Ela simplesmente não os viu. Então, veio a culpa por ter se deixado enganar, mesmo conhecendo tantas histórias parecidas.

Logo ela? Pensei. Então lembrei dessa sensação que ainda me assombra, essa culpa por “ter me deixado” arrastar por anos em um relacionamento abusivo que ainda me faz tremer de medo, ódio e impotência. Logo eu. Feminista. Que há anos denuncio a violação de direitos das mulheres como jornalista. Que subo no palco pra gritar “abaixo o Patriarcado” com minha banda. Logo nós, mulheres combativas, que diariamente entregamos nossas vidas à defesa da igualdade de direitos porque acreditamos de verdade que devemos andar nas ruas em liberdade, que não podemos mais aceitar o aumento dos feminicídios, a impunidade dos goleiros Brunos, os estupros coletivos, os baixos salários, a fetichização e o controle dos nossos corpos pelo mercado, pela publicidade, pela medicina, pelo Estado, pela Igreja. Nós, que denunciamos essas coisas, que nos unimos em rede para ajudar uma garota que foi estuprada e teve seu direito legal a um aborto negado. Que encorajamos amigas a denunciar seus agressores. Logo nós, vejam só, temos tanta dificuldade em levar essa força para dentro dos nossos relacionamentos de afeto. Nem sempre conseguimos identificar ou enfrentar o abuso, a violência psicológica, o mainsplaining, o gaslighting, a dominação patriarcal que nos faz trabalhar em jornadas duplas, não dividindo as tarefas em casa, o cuidado com os filhos, caindo em furadas terríveis quando somos solteiras, muitas vezes nos torturando por estar fora dos padrões de beleza mesmo achando outras mulheres fora desses mesmos padrões lindas e poderosas. E vejam, nós REALMENTE acreditamos e lutamos por essas coisas. Temos conseguido ocupar espaços importantes. Temos avançado em nossas pautas e, mesmo em tempos obscuros e conservadores, estamos nos fazendo ouvir.

E essa culpa surge: a de não sermos “boas feministas” dentro das nossas próprias casas. É claro que existem muitas formas de militância e muitas correntes de pensamento e não é minha intenção discutir isso nesse texto. Nem me acho apta a isso, na verdade, tenho muito a estudar e aprender. Também entendo que as mulheres experimentam configurações variadas de opressão, em diferentes graus de intensidade, dependendo dos padrões culturais, raça, gênero, classe e etnia e por isso mesmo parto, nessa reflexão, da minha experiência pessoal e das mulheres próximas a mim. Porque a coisa mais honesta que posso fazer aqui é contar pra você, do meu lugar de fala que, logo eu, fui vítima de violência patrimonial e que hoje tenho dívidas enormes feitas em meu nome que me impedem de coisas bem básicas como alugar um apartamento, por exemplo, o que dificulta muito a vida de uma mãe solo sem família abastada. Que, logo eu, por alguns anos tive medo de um homem que chegava alcoolizado em casa à noite. Que fui perseguida e caçada por esse homem “tão apaixonado” que me jogou no fundo de uma tristeza e de um terror tão profundos e que eu só consegui sair com o amor e a parceria imensa do meu filho e de alguns amigos e familiares. Mas que outros amigos, logo eles, tiveram muita dó desse homem tão determinado em me reconquistar e eu fui taxada de “louca”. Minha família também, logo ela, acolheu suas dores de macho ferido, independente do que ele me causou. Posso confessar pra vocês que eu já pensei em escrever sobre isso tantas e tantas vezes e que meus dedos travaram em todas elas. Logo eu.

Mas então a primeira lição que aprendi é a de que não existe “logo eu”. O “logo eu” é arrogante e nos distancia da nossa condição de mulher e também de outras mulheres. Nós não somos de outra casta e também não somos imunes a qualquer tipo de opressão por sermos mulheres feministas. Ao contrário: entender isso deve fortalecer a nossa luta e nosso cuidado próprio e umas com as outras. Porque nem sempre os abusos são tão extremos ou a violência tão crua. Muitas vezes, o companheiro é um cara legal que “dá uma derrapada” vez ou outra, como aquele marido da minha amiga querida, que reproduz uma lógica incrustrada na sua criação e socialização.

Sobre isso, tive uma conversa que clareou muita coisa dentro de mim (e que conto aqui porque espero que clareie pra você também) com Maria Silvia Bolguese*, que é psicanalista, professora e autora de livros – um deles, ainda no prelo, chamado “O tempo e os medos”, examina a condição da mulher nas sociedades capitalistas. Ela me disse o seguinte:

– É obvio que as questões da mulher e da própria luta feminista tocam em pontos profundos e arraigados que fazem o feminismo não virar um anacronismo. Tem uma vertente que é mais sociológica e política do que é a sociedade capitalista, mas pra mim também interessa entender porque em casa, no ambiente doméstico e afetivo, fica tão difícil de sustentar uma posição. E a minha hipótese é que a gente está lidando com algo de aprisionamento e fixidez da mulher na sociedade que eu vou chamar de clausura do corpo da mulher. Existe um eixo, uma apropriação que é absolutamente machista do que é a mulher, a vida da mulher e o corpo da mulher. Então a educação da mulher e toda a administração que ela tem da saúde do corpo, da beleza e da juventude é criada em uma perspectiva machista. É tão insidioso e arraigado que é difícil você se dar conta disso no âmbito doméstico. Mas eu acho que existe um equívoco em identificar no marido, no companheiro, o opositor. É preciso ter a compreensão de que ele também está submetido. Eu acho que só imaginar que ele está sendo sacana ou maldoso não resolve. [Claro que aqui estamos falando do cara legal, que você ama e quer por perto, não do abusador ou agressor]. Não que ele seja uma vítima e que não pode sair dessa posição, mas é necessário um trabalho de conversa e ampliação dessa consciência pra que isso se movimente. Essas coisas tem que ser muito discutidas entre mulheres e os parceiros, mulheres e seus filhos, pra que isso possa ser recolocado em uma outra perspectiva. A coisa é que a gente tem que estar alerta pra não entrar em uma automação, porque se topa reproduzir o sistema, ele vai mudar por que? Principalmente com os filhos. Porque o risco é de entrar em um jogo de culpas eterno do qual a mulher não consegue escapar. Você tem toda razão quando diz que é muito mais difícil ser feminista dentro de casa. Porque a gente vai ter que ter força pra marcar posição deixando claro que não é uma oposição necessariamente ao outro, mas uma posição marcada para que o entorno se movimente.

Quando você se movimenta e ocupa outra posição todo mundo que está a sua volta se relocaliza.

Não existem respostas certas ou um manual de como ser feminista dentro de casa. E sinceramente eu acho que ainda bem. Porque quem dá um único caminho (como a religião, por exemplo) geralmente também aprisiona e oprime. Mas existe o diálogo sincero entre nós mulheres. Existe a troca de experiências diversas e nossa fala a partir delas. Existe o diálogo com nossos parceiros e existe o momento muito importante de pesar o que vale a pena ser consertado ou descartado. O que não existe é o “logo eu” e toda a arrogância que vem dele. Repetindo: Não estamos imunes à misoginia nem a opressão patriarcal enraizada nas bases de todas as nossas relações por sermos feministas. E justamente por isso é que devemos continuar lutando.

*Maria Silvia Bolguese, psicanalista; membro do Departamento e professora do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; mestre e doutora pela PUC-SP; pós-doutorado pelo Ipusp. Autora do livro Depressão e doença nervosa moderna (Via Lettera, 2004), tem vários artigos e capítulos publicados sobre psicanálise e contemporaneidade. No prelo “O tempo e os medos” (Ed. Blucher), no qual dedica um capítulo para examinar a condição da mulher nas sociedades capitalistas. Está lançando um livro que traz a mulher na sociedade contemporânea.

 

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