Inúmeras vezes, nesta incrível e desafiadora aventura como mãe, eu me pego recordando deste exato trecho do filme “Histórias Cruzadas” (The Help), representado nestas fotos que eu mesma tirei na quinta vez que assisti ao filme. “Histórias Cruzadas” é um filme sobre direitos humanos, luta pelos direitos civis das pessoas negras, sobre mulheres e sobre crianças, centrado na figura das empregadas domésticas negras das décadas de 50 e 60 nos Estados Unidos.
Este trecho mostra a interação entre a garotinha Mae e sua “mãe de criação”, Aibileen, a empregada negra da família. Mae é bastante negligenciada por sua mãe, sendo criada com todo amor, carinho e respeito por Aibileen no tão problemático período de explosão da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, que culminou com a Marcha sobre Washington, liderada por Marthin Luther King.
O filme mostra uma negligência familiar totalmente centrada na figura da mãe, uma vez que a figura paterna é praticamente inexistente. Tal negligência aparece na forma de ausência de cuidados, violência física, ausência de tratamento afetuoso e estabelecimento de vínculo negativo. Todo o amor, carinho e cuidado que a garotinha recebe vem da figura de Aibileen, que se dedica ativamente a estimular na pequena valores relacionados à manutenção de sua autoestima. No início do filme, inclusive, ela diz que cuidou de 17 crianças em toda sua vida. E que tudo começou a fazer sentido quando ela percebeu que podia estimular nessas crianças o amor por si mesmas. A pequena Mae, embora tão novinha, já reconhece a negligência por parte de sua mãe, dizendo, inclusive, que sua verdadeira mãe é Aibileen. O trecho que tanto me marcou é o que mostra Aibileen se despedindo de Mae. A pequenina implora para que ela não se vá. Aibileen então se agacha e explica que precisa ir. E pede a Mae que nunca se esqueça de tudo o que a ensinou, perguntando: “Do que você precisa sempre se lembrar?“. E a menina responde:
Aibileen fez questão de repetir isso inúmeras vezes para Mae, tantas vezes que ela incorporou ao seu próprio autoconceito. E isso é uma questão extremamente importante para mim. Todos os dias desde que me tornei mãe, busco fazer exatamente a mesma coisa: ensinar minha filha como é importante que ela saiba dos seus próprios valores. Mais que isso: que por meio do meu discurso sobre ela mesma, ela possa se constituir como criança, menina e futura mulher consciente dos valores que tem. Que, enquanto cresce, possa se lembrar sempre, em qualquer momento, de sua mãe dizendo como ela é importante, como ela é gentil, como eu a amo. E que não tenha nenhuma memória de desvalor, ofensa, humilhação, rebaixamento ou constrangimento partindo de mim, sua mãe, uma das pessoas que mais deveriam protegê-la, amá-la, cuidá-la e apoiá-la. Para que ela cresça sabendo que, sim, sua mãe a apoia, sua mãe está ao seu lado, sua mãe acredita nela e reconhece seus valores.
Dedicar-se a fazer com que um filho e uma filha saibam que sua mãe e/ou seu pai os amam é contribuir para criar crianças seguras de si mesmas. E esse amor não pode vir misturado com violência física, verbal, emocional ou moral, pois que, desta maneira, ensinamos às crianças que violência e amor podem, sim, caminhar juntos. E não podem. Quantos de nós aprendemos isso… Quantos de nós nos esforçamos ativamente para nos livrarmos dessas correntes… Dedicar-se a transmitir um bom conceito sobre elas mesmas é parte indelével de uma criação empática e respeitosa. Por um motivo muito simples: sim, os discursos têm poder. É a partir dos discursos que ouvem que as crianças introjetam valores sobre os outros e também sobre si. Que elas alimentam em si mesmas valores preconceituosos e discriminatórios sobre as outras pessoas, que elas criam crenças limitantes, que constroem sua visão de mundo. Que elas se sentem mais. Ou se sentem menos…
Muito se fala sobre o poder do discurso materno. Sim, o poder que uma mãe têm sobre uma criança com seu discurso é grande. Mas não por ser um poder intrínseco atribuído à mãe por alguma divindade ou entidade cósmica, ainda que receba o nome de um grande psicanalista europe
u. Mas porque somos as principais cuidadoras. Não no sentido de “melhores”, mas muitas vezes no sentido de “únicas” ou realmente “principais”. Há que se ter muito cuidado com isso. Muito cuidado. Porque disfarçada de análise psicológica, pode haver uma grande opressão contra quem já é bastante oprimido. Pior: pode haver também uma intensa culpabilização da vítima. Porque, afinal, se uma mulher está praticamente sozinha na responsabilidade de transmitir valores às crianças, não apenas por uma escolha sua mas, principalmente, por uma imposição social, então o peso que suas ações e seu discurso exercem sobre suas crianças torna-se grande. Então, muita calma nessa hora, senhoras. O discurso materno tem poder? Sim. Tem. Mas especialmente, ou principalmente, porque, muita vezes, ele foi o único discurso ouvido pelas crianças…
Eu gosto do trecho que ressaltei do filme justamente porque mostra como o discurso é de fundamental importância na formação das crianças e de seus autoconceitos. E não é um discurso dito pela mãe da criança, mas pela principal cuidadora. Isso nos mostra a imensa responsabilidade que TODOS temos com relação ao que dizemos às crianças. Ao que dizemos sobre infância. Crianças crescem ouvindo adultos emitirem suas opiniões sobre o mundo, sobre elas. Sendo formadas por essas opiniões. Via mãe, pai, avó, avô, tias e tios. Via escola, mídia, profissionais da saúde. Via livros. Via todo tipo de meio construtor de informação. Via gente babaca sentada na mesa de um restaurante que não se furta a um comentário discriminatório contra a criança, no que poderia ser chamado, inclusive, de PEDOFOBIA. Se eu cresço num ambiente que chama a crianças de pestes, eu, criança, verei a mim mesma como uma peste. Se eu cresço num ambiente que diz a mim, menino, que todas as amiguinhas são minhas namoradinhas, é assim, com esta visão objetificada, que eu crescerei vendo minhas amigas. Se eu cresço num ambiente que diz a mim que meninas namoram meninos e meninos namoram meninas, qualquer sentimento diferente disso que eu possa vir a ter será interpretado por mim mesma como ruim, como desviante, como patológico. Se eu cresço ouvindo que sou impossível, que sou insuportável, que tenho algum tipo de transtorno, que eu sou incapaz de lidar com os outros, ou que sou burra, ou que sou lerda, ou que não sei fazer nada bem feito, então será assim que eu passarei a me ver. E aí, queridas e queridos, sabemos o tamanho da dor no futuro… Sabemos o tamanho do esforço para lutar contra a baixa autoestima que crescemos nutrindo sobre nós mesmos, alimentados pelo que diziam sobre nós… Quem “diziam”? Nossas mães? Não. Toda a sociedade.
Toda e qualquer pessoa, seja ela responsável ou não por crianças, deveria ser consciente da importância da infância. Inclusive aquele seu amigo babaca que se sente confortável para dizer “Criança?! Não, credo. Tenho horror a criança”. Ninguém tem o direito de se dirigir assim a outro ser humano. Você não quer ter filhos? Ótimo. Seu direito. Lutarei por ele também. Você odeia crianças? Problema seu. Grave problema seu e seria interessante procurar ajuda para tentar entender o porquê de se sentir tão incomodado com elas. Porque neste mundo pelo qual lutamos não haverá espaço para ódios. A qualquer grupo oprimido. E crianças representam um dos principais grupos oprimidos. Nós só não as vemos marchando na Paulista porque estão em suas casas sob os cuidados de seus responsáveis – pelo menos é o que se espera, e sabemos que nem todas estão. Você tem dúvidas sobre as crianças serem grupo oprimido? Basta ver o incentivo social que há para que as punamos com violência, enquanto criamos leis e movimentos que combatem a violência de gênero, a violência contra a pessoa idosa, a violência contra gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. É sempre bom lembrar que as organizações de defesa dos animais surgiram antes das que defendem crianças… Tire suas conclusões.
Todos nós precisamos despertar para a importância do nosso discurso com relação às crianças. Precisamos reformular completamente a forma como nos dirigimos a elas. Se todas as pessoas que têm crianças sob seus cuidados escolhesse palavras amorosas, ainda que firmes, para estimular nas crianças o amor por si mesmas e o reconhecimento de seus valores, muita coisa poderia ser diferente.
É também por isso que eu me dedico todos os dias a escolher as palavras que dirijo à minha filha. Porque um dia ela se lembrará das palavras que eu disse sobre ela em sua infância e quero que essas sejam lembranças felizes, cheias de um significado profundamente amoroso.
No filme, o amor de uma empregada doméstica é capaz de ajudar uma criança em seu próprio autoconceito, a despeito da negligência que recebe da própria família. Porque amor é isso: amor ensina, amor grava, amor cura, amor previne, amor regenera.