“Por mais esclarecidas que sejamos, a maldita criação machista que recebemos nos faz acreditar que é nosso papel ‘servir’ sexualmente ao marido quando ele quiser. Aconteceu comigo, uma mulher tida como livre, independente. Eu era casada com o pai do meu filho e quando tínhamos 6 anos de casamento, tive problemas com um mioma no útero que me causava muitas dores e hemorragias. Eu não tinha vontade de transar com ele mas achava que era uma fase, que iria passar quando estivesse curada. Mas ele começou a forçar. Dizia que era homem e que eu tinha que cumprir com minhas obrigações de esposa. Na mesma época ele se tornou muito religioso, dizia que tudo era pecado e que todas as mulheres eram putas. Fui ficando com nojo dele, dessas atitudes todas. No começo eu me forçava a aguentar as investidas mas quando os sangramentos pioraram eu passei a recusar com mais firmeza e ele foi se tornando mais violento. Lembro de uma vez que saí da cama pingando sangue pelo chão, fui para o banheiro e ele começou a berrar que eu tinha que tirar logo aquela ‘merda de útero’. Eu dizia que ele tinha que me respeitar, que eu não sentia vontade, que estava doente e ele respondia que era só eu abrir as pernas que a vontade viria. Ele me forçava e não importava que eu ficasse lá parada igual a um poste. Eu levantava da cama e ia vomitar de nojo. Cheguei a pensar se o problema era realmente comigo, se eu era frígida. Eu não me separava porque tinha dó, ele tinha perdido o emprego, as filhas dele moravam com a gente, não queria por todo mundo na rua. Um dia quando ele veio pra cima eu fugi para o quarto do meu filho. E meu marido se levantou da cama e ficou andando pela casa fingindo que estava em um transe religioso. Gritava rezas em outras línguas e rodeava o quarto do Lucas*. Dessa vez eu fiquei apavorada e decidi enfim mandar ele embora. Demorou para eu entender que era estuprada pelo meu marido, aquele homem de bem, o pai do meu filho. Nunca pensei em denunciar porque tinha vergonha, não queria que minha mãe soubesse, minhas enteadas. Mas isso deixou marcas muito profundas em mim. Agora estou me tratando e me curando, fazendo também o meu papel em criar um menino gentil que valoriza as mulheres. Eu acho que o primeiro passo – e o mais difícil –é o de admitir pra nós mesmas que fomos estupradas por nossos maridos”.

O relato forte e doído de Lúcia*, que reuniu coragem para contar sua história pela primeira vez, está longe de ser um caso isolado, dizem psicólogas e advogadas que trabalham em atendimento a mulheres em situação de violência doméstica. Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, advogada e presidente do Geledés – Instituto da Mulher Negra, me disse uma vez que era comum que em rodas de conversa sobre violência de gênero, mulheres despertassem como de um transe quando se discutia a violência sexual dentro do casamento. Uma das vezes, lembrou, uma senhora se levantou em choque e disse: “Aquele desgraçado me estuprou por mais de 30 anos” se referindo ao marido. Mas por ser algo ainda extremamente invisibilizado, quase não existem pesquisas e dados a respeito no Brasil.

O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e divulgado no dia 03 de novembro de 2016, apontou que mais de 5 pessoas são estupradas por hora no Brasil. Na verdade, o próprio estudo calcula que o número é bem maior, já que o estupro é o crime com maior subnotificação do mundo: segundo o National Crime Victimization Survey (NCVS), apenas 35% das vítimas de estupro costumam prestar queixas. Estimativas do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) são ainda mais pessimistas e falam que apenas 10% dos casos são registrados no Brasil. Falhas nas redes de proteção, vergonha, medo, desconfiança na polícia, falta de informação e o machismo estrutural que costura e legitima tudo isso são alguns dos motivos para o silêncio. Mas no caso da violência sexual dentro do casamento é ainda pior porque raramente as próprias mulheres se reconhecem como vítimas, como explica Ana Rita Souza Prata, defensora pública coordenadora do Nudem: “O estupro é um crime carregado de julgamento moral, um tabu. Esse crime é associado à ideia de um agressor feroz, psicopata, que ataca mulheres desconhecidas na rua. Ainda há a ideia de que a violência mencionada no tipo penal é apenas física e a ameaça deve ser feita com uma arma de fogo, faca, ou seja, um cena normalmente distante de como ocorre dentro da relação doméstica, em que a violência é normalmente psicológica ou moral”. Ana lembra também que até pouco tempo, o sexo era tido como um dever conjugal: “esse entendimento ainda está no senso comum, dificultando que as mulheres reconheçam que o sexo dentro de suas relações deve ser consentido sempre, sob pena de se configurar estupro”.

É importante dizer que o estupro dentro do casamento ou de qualquer outra relação afetiva é mencionado na Lei Maria da Penha – Lei n. 11340/2006 – em seu artigo 7, que coloca como uma das formas de violência doméstica a violência sexual.  E que está previsto no crime de estupro no artigo 213 do Código Penal. Como definiu certa vez Aparecida Gonçalves, ex-secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República: “A violência sexual é a mais cruel forma de violência depois do homicídio, porque é a apropriação do corpo da mulher – isto é, alguém está se apropriando e violentando o que de mais íntimo lhe pertence. Muitas vezes, a mulher que sofre esta violência tem vergonha, medo, tem profunda dificuldade de falar, denunciar, pedir ajuda”. A Organização Mundial de Saúde define ainda como violência sexual “qualquer ato sexual ou tentativa de obter ato sexual, investidas ou comentários sexuais indesejáveis, ou tráfico ou qualquer outra forma, contra a sexualidade de uma pessoa usando coerção” e pode ser praticada, segundo o organismo, por qualquer pessoa, independentemente da relação com a vítima, e em qualquer cenário, incluindo a casa e o trabalho. O Código Penal Brasileiro diz que estupro é “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” – como define o capítulo sobre os crimes contra a liberdade sexual, após as alterações promovidas em 2009 com a Lei nº 12.015.

A psicóloga Branca Paperetti, que por alguns anos coordenou o Centro de Referência para Mulheres Vítimas de Violência Eliane de Grammont, em São Paulo, conta que nos atendimentos a violência sexual é a que mais demora a aparecer porque as mulheres não compreendem aquilo como violência.  “No antigo direito canônico [católico] a mulher deveria servir sexualmente ao homem como uma das tarefas do casamento e se isso não fosse cumprido o casamento poderia ser inclusive anulado na igreja. A lei mudou mas a cabeça das pessoas não. E mesmo as mais jovens acreditam que há um dever sexual para com o outro e que isso faz parte das relações. A ideia de que o corpo da mulher pertence ao homem e é feito para dar prazer está muito enraizada na nossa cultura”. Branca reitera que a violência sexual dentro do casamento é mais complexa porque nem sempre envolve violência física, muitas vezes é psicológica, chantagens, ameaça de abandono. E acrescenta: “É importante entender se você é sujeito de direito na relação, se está sendo respeitada em seus momentos, em sua sexualidade. Tudo que não for consentido, tudo que não for combinado, é violência. Se não há respeito e autonomia é violência. É importante refletir sobre isso e se for difícil lidar com isso sozinha, conversar com alguém”

O estupro dentro do casamento não é assunto fácil. Envolve sentimentos, sutilezas, desconstruções internas e toca em conceitos profundamente enraizados e complexos de dominação do corpo da mulher. É legitimado e silenciado pela sociedade, aprovado pela estrutura patriarcal. E justamente por isso precisa ser encarado, discutido, enfrentado, cutucado, denunciado, para que possa então ser desnaturalizado. Para que possamos ser livres dentro das relações, dentro da nossa sexualidade, dentro dos nossos próprios corpos. Se você está passando por isso, fale sobre com outras mulheres, com amigas, terapeutas, com alguém em quem confia. Para que se fortaleça e para que possam te ajudar. É difícil. Mas mais difícil é passar uma vida sendo violentada. Há muita gente disposta a apoiar para que você possa tomar providências práticas se decidir assim. Ainda que sejam delicadas ou difíceis.

*Seu verdadeiro nome foi trocado a fim de garantir sua segurança

 

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