“Eu passei muitos anos achando que eu era louca, inadequada”. M.A. 32 anos
“Minha autoestima ficou destruída, porque eu me colocava em cheque o tempo todo”. S.T.C, 41 anos
“O fim do relacionamento foi tão inacreditável, tão desrespeitoso e emocionalmente violento, que embora eu soubesse que havia sido vítima de abuso psicológico, eu ficava buscando motivos para me culpar, quando a culpa era totalmente dele”. L.M.S., 44 anos
“Eu não dei conta, foi devastador para mim, precisei de ajuda psiquiátrica e comecei a tomar antidepressivos”. A.P.K., 28 anos
“Saí daquele relacionamento de anos achando que nada do que eu fazia era bom, que eu era um estorvo para todos, que não teria outro companheiro. Meu companheiro atual não consegue nem acreditar que eu me sentisse assim, porque sou muito segura, sou autoconfiante. Mas foram anos de esmagamento”. A.L.B., 43 anos
“Eu não consigo nem falar sobre como fui machucada emocionalmente… Foi muito difícil voltar a acreditar em mim”. N.S., 35 anos.
Quanto mais trabalhamos a fim de levar informação às mulheres para que possam identificar situações de abusos, mais se tornam comuns e frequentes depoimentos como esses. Mas existe um paradoxo aí: quando perguntamos aos homens se conhecem outros homens que praticaram abusos contra uma mulher – ou se eles mesmos já cometeram tais abusos – a resposta com frequência é “Não”. “Eu nunca agredi uma mulher”, “Não, jamais faria isso”, “Eu estou alinhado ao feminismo, não violento mulheres”, “Não tenho parças abusivos”. Essa incongruência acontece por muitos motivos, entre os quais estão a vergonha de se saber violento, a naturalização dos abusos e, também, o fato de que o que vem à cabeça quando falamos de violência contra a mulher é a violência física. Mas existe um tipo de violência extremamente comum, utilizado inclusive como forma de controle: a violência psicológica.
Ser agredida fisicamente deixa marcas físicas que podem ser facilmente vistas, ainda que disfarçadas. Ser agredida psicologicamente não dá para ver a olho nu, embora deixe marcas das quais uma mulher só consegue se recuperar a muito custo, e isso quando se recupera. A violência psicológica é sórdida porque não deixa testemunhas, uma vez que não deixa roxos ou arranhões e acontece na intimidade de uma relação, nas palavras que são ditas, nas ações que visam machucar emocionalmente aquela mulher, na fragmentação cotidiana de sua autoestima e autoconfiança. E, portanto, por não ter testemunhas, reforça ainda mais seu caráter danoso, uma vez que as pessoas ao redor, por não presenciarem a manifestação da violência, passam a duvidar ou a questionar aquela mulher, num processo de revitimização que agrava as consequências da violência vivida. É frequente que uma mulher que foi vítima de violência psicológica desenvolva um estado depressivo, também advindo do julgamento externo – porque o agressor mantém seu padrão de ataques psicológicos mesmo quando não direcionados diretamente a ela, na prática da maledicência, da difamação e da inversão da história, mesmo que o relacionamento já tenha acabado. Quem não conhece muitas histórias assim? Eu mesma poderia escrever um livro contando todos os casos que conheço e até os que já vivi – e quem sabe eu não faça isso mesmo…
Nem sempre a violência psicológica é manifesta de maneira visivelmente agressiva aos demais. Xingamentos, humilhações, ofensas, abandono emocional, chantagem emocional, ghosting e outras formas de violência psicológica acontecem de maneira silenciosa, o que contribui para que os agressores mantenham as aparências de civilidade e se sintam protegidos, inclusive enganando muitas pessoas, especialmente outras mulheres. Com frequência, a violência psicológica se manifesta de maneira sutil, com palavras de depreciação ou com a criação de situações que culpam aquela mulher ou a fazem se sentir má e inadequada. E é no mínimo interessante que, via de regra, existe a tentativa de inversão da culpa: quando o agressor, após começar seu jogo psicológico, tenta culpar a mulher pela violência emocional que ele comete: “Você me deixa assim”, “Você me faz sentir assim”, “Seu jeito é quem predispõe esse meu comportamento”.
A chantagem emocional é parte do jogo psicológico contra a mulher, apelando, frequentemente, para características de sua própria personalidade – “Eu sou assim, paciência”, “Você já sabia que eu não sou fácil”, “Todo mundo sabe que esse é meu jeito” – ou para sua história de vida – “Precisei ser assim para sobreviver”, “Fui abandonado na infância”, “Sofri violência quando mais jovem” – e outras tentativas de justificar seu próprio comportamento abusivo, inclusive mostrando-se como sendo a vítima da reação provocada na mulher por sua própria ação psicologicamente violenta. E quando se evidencia que ele precisa de ajuda, com frequência recusa – claro, porque reconhece que ser assim, especialmente com outras mulheres, traz vantagens a si mesmo, mantém uma situação que o beneficia de alguma maneira.
Dentre o amplo repertório de ações que constituem violência psicológica, é preciso dar ênfase a duas formas, tanto por sua frequência quanto pelas consequências que produzem: a manipulação e a distorção dos fatos.
Mas o que é a manipulação emocional? É levar a outra pessoa a fazer aquilo que, mesmo ela não demonstrando interesse naquele momento, é vantajoso para o manipulador. É, por meio de palavras muito bem escolhidas ou argumentos que ele sabe que surtirão efeito, levar a mulher a fazer o que ele deseja que ela faça para seu próprio benefício. O manipulador emocional nunca está satisfeito com sua própria vida e vê na outra pessoa apenas um meio para conseguir o que quer e, quem sabe, aumentar sua própria satisfação. Geralmente, o manipulador se vê como sempre prejudicado, considera a outra pessoa como mais privilegiada que ele, possui um comportamento passivo-agressivo facilmente identificável e distorce os fatos a fim de que a mulher se sinta culpada. É aí que entra a distorção dos fatos, quando interpreta o que aconteceu a seu bel prazer, inverte as situações, mente descaradamente e isso, com frequência, sem qualquer resquício de culpa. E não se enganem achando que se trata de um monstro ou um psicopata, porque não se trata de uma psicopatologia; são homens convencionais que, via de regra, sabem muito bem o que estão fazendo. E se você já identificou essas duas formas de violência emocional e psicológica – a manipulação emocional e a distorção dos fatos – é porque elas, juntas, recebem o nome de GASLIGHTING.
Recentemente, assisti à série Dirty John, disponível na Netflix. E aqui já quero fazer um alerta: não recomendo que você assista se estiver enfrentando um momento emocionalmente difícil ligado a relacionamentos afetivos, pois ambas as temporadas são extremamente duras e disparadoras de gatilhos, especialmente a segunda. São duas histórias independentes e, infelizmente, reais. A primeira temporada conta a história de uma mulher muito bem sucedida, bonita, gentil, que começa a namorar um homem que conheceu por meio de um aplicativo de relacionamento e que só queria tirar vantagem dela. A segunda temporada, sobre a qual quero me deter melhor aqui, conta a história chocante de uma mulher que sofre anos de violência psicológica por parte de seu marido, considerado um homem bom, bacana, gentil, “de família”. Não foi nem um pouco fácil para mim assistir à temporada inteira, me exigiu parar repetidas vezes para respirar fundo. Uma das histórias mais tristes que já conheci sobre abuso emocional contra uma mulher. E aqui chamo atenção especialmente para o episódio 4, quando, no tribunal, um psicólogo especialista em abusos psicológicos define o que é o gaslighting e quais as consequências para uma mulher. Nas palavras do personagem:
“Gaslighting: nome dado em homenagem a um famoso filme, em que o homem quer algo de uma mulher, finge ser amigo dela, se casa com ela, mas, na verdade, é inimigo dela. E no processo, ele é muito gentil com a vítima, mas na realidade, a cada momento, ele está minando a sanidade dela”. Em outro momento, ele também diz: “O que não se imagina é que quanto mais a mentira dura, quanto mais lavagem cerebral, quando uma pessoa ouve repetidas vezes que aquilo que ela acha que é verdade não é, quando de fato é, mais pressão a vítima sofre”. E ainda: “Para conseguir uma boa separação, a primeira coisa que tem que acontecer é que a pessoa esteja disposta a admitir o que fez e expressar remorso, e dizer: ‘Eu sei que te magoei. Eu menti. Eu admito. Eu sinto muito’. Essas são as condições necessárias para a mudança. Sem isso, a situação vira uma panela de pressão”. E por fim: “A menos que algo seja admitido à vítima, que ele diga: ‘Você não é louca, aconteceu mesmo, você não está errada em sentir esse desamparo com a total falta de apoio (…)’, enquanto isso não for dito à vítima, não vai existir a cura”.
É muito triste para mim, como pesquisadora da violência e seus impactos, como orientadora e apoiadora de tantas mulheres, e ainda mais, como pessoa que vive isso na pele por minha própria condição estrutural de mulher, saber que já caminhamos tantos passos para a evidenciação da violência contra a mulher, mas que a violência psicológica continua a acontecer todo santo dia com grande parte de nós. É duro ver mulheres maravilhosas, talentosas, profissionais incríveis, que já foram radiantes e felizes e que são mães dedicadas, com seus brilhos apagados por sucessivos abusos emocionais. Penso que talvez a violência psicológica seja a última forma de violência que conseguiremos combater, justamente por seu elemento de invisibilidade conferido pela intimidade e, claro, porque abusadores emocionais convencem outras pessoas, especialmente mulheres, de que eles não são tão problemáticos e errados assim… E me preocupa que fiquemos à mercê das decisões individuais de homens pela manutenção desse tipo de comportamento que, claro, lhes confere benefícios – afinal, abusar psicologicamente de uma mulher dá a ele a suposta sensação de força e superioridade que, de fato, ele não tem. E embora o abuso psicológico seja praticamente uma autodeclaração de fraqueza e sentimento de inferioridade do abusador, ele não deixa de machucar sua vítima.
Espero, com essas reflexões, evidenciar comportamentos de abuso psicológico para que mais mulheres possam identificar sua presença em suas vidas e para que saibam que, sim, estão sendo vítimas de uma forma terrível de violência, que as enfraquece para que outra pessoa seja beneficiada em seu lugar. Não aceitem. Não naturalizem. Não esperem por mudanças alheias enquanto você sofre, enquanto sua vida é sugada. É possível sair de uma situação emocional e psicologicamente abusiva e se curar e ser mais feliz em outras situações. E, especialmente, não se insurjam contra outras mulheres apenas porque houve distorção de fatos por conta dos abusadores. Essa é outra grande ferramenta de manutenção da violência psicológica: quando o abusador indispõe as mulheres umas contra as outras.
E, acima de tudo, saibam: vocês não estão loucas nem são desequilibradas. O que vivem – ou viveram – tem nome: violência.
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Parte do meu trabalho é orientar e apoiar mulheres nas diversas questões de suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que te explicamos como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças.