Por Priscila Cavalcanti

 

Por conta de minha escolha em advogar apenas para mulheres, perdi qualquer vestígio de imparcialidade que ainda tivesse. A perspectiva feminista do mundo invadiu também minha vida profissional. Trabalhando com direito de família, nos processos de divórcio, comecei a perceber um fenômeno novo, ao menos para mim: violência contra as mulheres no desenrolar de uma separação. 

Chegam ao escritório mulheres precisando de colo e de empoderamento, para que percebam que, sim, darão conta de viver suas vidas sem o homem com quem se casaram. Mas elas trazem outro ponto em comum: relatos de violência ocorrida desde o início da separação. A mulher que sofreu violência durante a relação, experimenta aumento dessa violência. E mesmo aquelas que tiveram uma relação de companheirismo e respeito, chegam ao escritório em um doloroso estranhamento do companheiro, que agora a trata de
modo violento, mesquinho, como se fosse outra pessoa.

Juntei relatos dessas mulheres, para tecer essa colcha de tristes retalhos. O que faço aqui é denunciar o que vivem muitas mulheres que, após perceber que a relação acabou, precisam se preparar para ainda mais violência, cometida tanto pelo ex-companheiro quanto, muitas vezes, também por familiares e até por profissionais. Os nomes dessas mulheres foram trocados, identidades preservadas e histórias misturadas, para evitar repetição. Mas tudo que você vai ler aqui é real.

Amarilis, 30 anos

“Meu ex fugiu de pagar pensão para nossa filha. Fez acordo com a empresa, nunca tinha dinheiro para nada e não consegui nem pedir pensão na Justiça. Nunca pagou nada, desde que saiu de casa. Ele me perseguia nas redes sociais, adicionando todo mundo que tinha meus contatos. Aparecia sem motivo e tentou me agarrar. Quando eu resisti, ele disse que sabia que eu era das que nunca dizem não. A última novidade? Engravidou a namorada, mesmo não tendo dinheiro para nada. E a moça acredita que ele não tem dinheiro porque tiro tudo dele. Eu, a megera”.

Tatiana, 31 anos

“Estou em pleno processo de divórcio. Pedi a separação porque não aguentava mais os maus tratos, a grosseria, a humilhação. Ele me chamava de louca e alcoólatra. Eu trabalhava com ele e fui demitida de uma hora pra outra sem justificativa. Ele dizia que não me queria mais como profissional, mas como mulher. Quando reagi mal a isso, porque desse modo eu ficaria totalmente sem dinheiro, ele me acusou de estar escolhendo a carreira e jogando a relação fora. O resultado é que saí sem grana nenhuma, dependendo totalmente dele. Ele ainda me ofende e quase me fez acreditar que eu estava louca”. 

Manuela, 30 anos

“Concordamos em separar. Ele contratou uma advogada muito simpática, que era meio prima dele. Acreditei nela e nele, tínhamos uma relação super bacana. Achei que fôssemos continuar amigos. O acordo que assinei, por influência dessa advogada e dele, foi péssimo para mim. Não me deu o direito de moradia com meu filho – sem esse direito, estou com dificuldades de aceitar um trabalho em outra cidade. Esse acordo prevê que eu não posso morar a uma distância maior que 2 km de onde ele mora, tenta me impedir até de ter outro relacionamento. Tive agora de gastar dinheiro com outra advogada e outro processo, para tentar recuperar minha autonomia”. 

Elisa, 29 anos

Assim que eu falei em nos separarmos, ele passou todos os imóveis para a mãe dele, tentando fazer com que minha filha não tivesse
direito. Hoje ele é falecido, não deixou nada para ela e eu terei de gastar meus recursos para tentar reverter a situação”. 

Suzanna, 45 anos

“Meu marido me impedia de trabalhar. Quando começamos o divórcio, ele se recusou a me dar pensão e me mandou trabalhar. Paga o mínimo de pensão às crianças, mas quando quer pegá-las para se exibir, não respeita os acordos de convivência. Fala para todo mundo que tem guarda compartilhada, mas só para buscar na escola uma vez por semana. Tudo dos meninos – trabalhos, passeios, doenças, compras, crises de adolescência – tudo isso é por minha conta, não entra na “guarda compartilhada”.

Karen, 40 anos

“O divórcio era amigável, fizemos com um advogado amigo dele. Tive que ser grosseira com o advogado, ele não estava me representando, o acordo era horrível!”

Luiza, 27 anos

“Minha história é grande. Acabou que o juiz deu a guarda provisória dos meus três filhos para o pai. Sinto que meu advogado dá em cima de mim. Fico muito desconfortável. Mas como estou sensibilizada demais com toda a questão do divórcio litigioso, deixo para lá a questão do assédio do meu advogado. Não me imponho, porque sinto que preciso do apreço do advogado, para ele querer lutar por mim”.

Catarina, 30 anos

“Meu ex-marido dizia que eu era burra, que eu só falava bobagem, que eu nunca seria nada. Comecei a sofrer de depressão logo após o
nascimento da nossa filha, fui me tratar, pedi o divórcio. No processo, recebi ameaças por parte do ex, que dizia que eu era louca, pois tomava remédios de receita controlada. Dizia que tiraria a menina de mim, pois uma louca não poderia criar uma criança. Sendo que a depressão aconteceu por conta do abuso que ele cometia… O processo acabou, ele não conseguiu a guarda e estamos nos recuperando. Ainda tenho pesadelos em que ele leva minha pequena
embora”.

Celeste, 37 anos

“Vivi uma vida privilegiada até me divorciar. Durante a audiência no processo de divórcio, o Juiz só faltou me bater, quando eu disse que queria manter meu filho na escola particular, como tinha sido desde sempre. Ele me humilhou e só não me chamou de mimada, mas deixou bem claro que pensava isso de mim, em plena audiência. Minha família acabou me tirando o apoio, dizendo o tempo todo que eu não podia deixar Felipe com o pai. Não ofereciam ajuda concreta, mas diziam o tempo todo: ‘Faz alguma coisa. Se sacrifica mais. Dá um jeito. Se vira’”.

Gabriela, 29 anos

“Na minha separação, meu ex ficou me perseguindo, socou e quebrou uma mesa, enquanto tentávamos resolver o que faríamos com os bens em comum. Não fiz B.O. por conta da mesa, já que na minha cidade não tem delegacia da mulher e tive medo de ser ridicularizada”.

A violência doméstica ou familiar é objeto de repressão legal, em especial, pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), conhecida já por
grande parte das pessoas. Desde 2009, o DataSenado pergunta às entrevistadas se já ouviram falar da Lei Maria da Penha. Há um grande percentual de conhecimento sobre a existência da Lei: em 2011 eram 98%, e em 2013, 99%. Em 2015, praticamente 100% das entrevistadas declararam saber da Lei (1).


O tipo de violência representado pelos trechos que reproduzi aqui é vista pela OMS (Organização Mundial de Saúde) como questão de saúde pública (2). Essa violação é representada por qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, e dano moral ou patrimonial, e tenha sido praticada no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou no âmbito de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (3). Ou seja, a violência doméstica também abrange violência cometida por ex-marido ou ex-companheiro, com separação apenas de fato, no decorrer de processo de divórcio ou mesmo depois dele.

Segundo o Mapa da Violência 2015 (4), dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que em 33,2% destes casos o crime foi praticado pelo parceiro ou ex. Uma em cada cinco mulheres consideram já ter sofrido alguma vez “algum tipo de violência de parte de algum homem, conhecido ou desconhecido”. O parceiro (marido ou namorado) é o responsável por mais de 80% dos casos reportados. Em agosto de 2016, a Central de Atendimento à Mulher, o Disque 180, contava com quase 68 mil atendimentos, equivalentes a 12,23% do total, como sendo relatos de violência: 51% correspondendo a violência física; 31,1% violência psicológica; 6,51% violência moral; 1,93% violência patrimonial; 4,30% violência sexual; 4,86% cárcere privado e 0,24% tráfico de pessoas.


Espantosamente, para determinar os direitos e os deveres frente a uma relação que já acabou, há homens que não se inibem, mesmo o processo já correndo na Justiça. Continuam a tentar dominar, amedrontar, constranger. Continuam a praticar violência patrimonial, ocultando bens, encerrando contas, sumindo com o dinheiro, deixando a mulher sem ter como alimentar os filhos do casamento desfeito. Diante de toda essa violência, que, sim, pode acontecer, o fundamental é saber se proteger. Abaixo, deixo algumas sugestões de formas legais de proteção:

1. DENUNCIE NA DELEGACIA DE POLÍCIA E PEÇA MEDIDAS PROTETIVAS

A forma de violência contra a mulher a que nos referimos aqui é caracterizada como violência doméstica. Portanto, pode e deve ser denunciada na Delegacia de Polícia, no âmbito da Lei Maria da Penha. Pode-se pedir medida protetiva, que pode ser aplicada após a denúncia de agressão, feita pela vítima à Delegacia de Polícia, cabendo ao juiz determinar a execução desse mecanismo em até 48 horas, após o recebimento do pedido da vítima ou do Ministério Público. E o que são as medidas protetivas? Podem ser: afastamento do agressor do lar ou de onde convive com a vítima; fixação de limite mínimo de distância que o agressor precisa manter da vítima; suspensão da posse ou restrição do porte de armas, se for o caso. O agressor também pode ser proibido de entrar em contato com a vítima, seus familiares e testemunhas por qualquer meio ou, ainda, ter restritas ou suspensas as visitas aos filhos menores. As medidas protetivas podem proteger também os bens da vítima. Assim, pode-se obter bloqueio de contas, indisposição de bens, restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor, e prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica. O juiz pode determinar uma ou mais medidas em cada caso, podendo substituí-las, a qualquer tempo, por outras de maior eficácia.

Dependendo da gravidade do caso, o juiz pode aplicar medidas protetivas de urgência. Pode encaminhar a vítima e seus dependentes para programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento, determinar a recondução da vítima e de seus dependentes ao domicílio, afastando o agressor, ou determinar o afastamento da vítima do lar, sem prejudicar direitos relativos a bens, guarda dos filhos e recebimento de pensão. Sempre que considerar necessário, o juiz pode determinar o auxílio da força policial, para garantir a execução das medidas protetivas.

Outra medida que pode ser aplicada é a obrigação de o agressor pagar pensão alimentícia provisional ou alimentos provisórios (ou seja, a obrigação de ele pagar pensão, em caráter de urgência, antes mesmo de correr todo um processo).

2. EXIJA QUE UM ACORDO SEJA FEITO MINUCIOSAMENTE

Alguns homens, para desagradar a ex-companheira, passam a desrespeitar sistematicamente os acordos verbais ou judiciais. Por isso, um modo importante de proteção da mulher é exgir que um acordo seja feito em minúcia. Por condicionamento cultural, algumas mulheres temem a pecha de “chata”, caso exija detalhes. Entretanto, não se preocupe com o que ele vá pensar: faça constar no acordo o valor da pensão, o índice e a periodicidade de reajuste, quais as despesas que são pagas pelo pai, até que idade dos filhos (ou eventos, como formatura na faculdade) a pensão alimentícia deverá ser paga, dia e hora em que o pai deverá buscar e devolver os filhos, especificações a respeito de feriados, férias e festas de fim de ano e, em especial, com quem os filhos menores residirão, dentre outras estipulações. Tudo isto é garantia de maior proteção para a mulher. Claro que, se o homem quiser agir errado, não será um papel que o fará agir certo. Mas é um acordo, tem a força do compromisso e pode ser a base para uma denúncia judicial. Em caso de pais que propositalmente somem dos filhos, pode embasar uma ação de reparação por abandono moral.

3. FAÇA VALER AS MEDIDAS PREVISTAS PARA EVITAR A VIOLÊNCIA PATRIMONIAL

Como a violência patrimonial é bastante comum, nos casos de ex-companheiro que não pagam a pensão estipulada, vale lembrar que há mecanismos na lei civil para obrigá-lo ao pagamento. Ele poderá ter descontado de seu salário o valor em atraso, em parcelas. Poderá ter o nome inscrito nos cadastros de proteção ao consumidor, e também poderá ser preso. Lembrando que, se o devedor apresentar justificativa de impossibilidade de pagamento, tem possibilidade de evitar a prisão. 

4. VOCÊ PODE PROVAR, COM A AJUDA DAS REDES SOCIAIS E DE TESTEMUNHAS, QUE ELE TEM CONDIÇÕES FINANCEIRAS

A argumentação do “não tenho dinheiro” muitas vezes é desmentida por perfis em redes sociais, onde o ex demonstra uma vida bastante luxuosa. Vale juntar “prints”, vale achar testemunhas da capacidade financeira dele, além de lembrar que a advogada poderá pedir ofícios ao Banco Central e às administradoras de cartões de crédito, para apurar a realidade dos ganhos e gastos do ex.


5. NÃO TENHA MEDO: ACIONE O 180 SE PRECISAR

Por fim, vale lembrar que qualquer pessoa pode denunciar a violência contra mulheres, ligando no 180.