Por Cláudia Cristina Mussolini

 

Quando se fala em violência, existem variações nas terminologias que podem confundir as pessoas ou mesmo minimizar a gravidade e amplitude da situação. Da mesma forma, usar “as palavras certas”, pode consolidar e ampliar direitos e/ou fortalecer uma luta política. Como saber, portanto, dentro dos termos “violência contra a mulher”, “violência de gênero” e “violência intrafamiliar”, qual nos fortalece mais?

Como bem afirma Maíra Zapater (2016):

“Não é preciosismo acadêmico: nomear as distintas formas de violência permite às suas vítimas o reconhecimento de suas demandas com todas as suas peculiaridades e possibilita elaborar as melhores políticas para seu combate”.

QUAIS AS VARIAÇÕES DE TIPO E NATUREZA DA VIOLÊNCIA?

Minayo (2006) considera a tipologia da violência baseada no Relatório Mundial da OMS (2002), o qual pontua os seguintes tipos, de acordo com as manifestações ocorridas:

– violências auto-infligidas, que se referem a comportamentos suicidas e os auto-abusos;

– violências interpessoais, classificadas em dois âmbitos: o intrafamiliar e o comunitário, o primeiro ocorrendo entre os membros da família e entre os parceiros íntimos, e o segundo acontecendo no ambiente social, entre conhecidos e desconhecidos

– violências coletivas, que são atos violentos que acontecem nos âmbitos macrossociais, políticos e econômicos.

Em conjunto com os tipos, varia também a natureza da violência expressa, podendo ser classificada como:

– física, que significa “o uso da força para produzir injúrias, feridas, dor ou incapacidade em outrem” (p.82);

– psicológica, na qual acontecem “agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima, restringir a liberdade ou, ainda, isolá-la do convívio social” (p.82);

– sexual, que diz respeito ao ato ou ao jogo sexual dentro de relações hetero ou homossexuais, visando estimular a vítima ou utilizá-la para obter excitação sexual por meio de aliciamento, violência física ou ameaças;

– e negligência ou abandono, que “inclui a ausência, a recusa ou a deserção de cuidados necessários a alguém que deveria receber atenção e cuidados” (p.82).

POR QUE QUANDO FALAMOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, A INTRAFAMILIAR LOGO SURGE EM NOSSA CABEÇA?

Porque a violência por parceiro íntimo é uma das formas mais comuns de violência contra as mulheres. Dados advindos da Central de Atendimento à Mulher (Disque 180) mostram que, ao longo de 2012, foram recebidos 88.685 relatos de violência. Destes, 92% eram relatos de violência doméstica e familiar.

Em 2016, dois terços das denúncias de violência contra a mulher se referiam a violências praticadas por atuais ou ex-companheiros, cônjuges, namorados ou amantes da vítima (1) . Entretanto, a violência doméstica é diferente da intrafamiliar, mesmo aparentando semelhanças. Quando falamos em violência intrafamiliar, de forma isolada e sem um contexto específico, estamos nos referindo à violência que ocorre entre integrantes da família, sendo eles homem ou mulher, menino ou menina, idosa ou idoso. Ou seja, não é necessariamente uma violência contra o gênero feminino. Já a violência doméstica é entendida como violência baseada no gênero feminino desde a criação da Lei Maria da Penha.

A LEI MARIA DA PENHA

No Brasil, de fato, há uma lei específica robusta que visa a proteção da mulher em situação de violência doméstica, que é a Lei Maria da Penha (Lei n.º 10.340/2006). Em seu artigo 1º, cita: “Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, ou seja, somente a violência que ocorre:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Em 2006 houve um grande avanço na proteção ao gênero feminino, especialmente pela inserção do seguinte dispositivo na Lei Maria da Penha:

Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Portanto, toda pessoa que tem o gênero feminino, ou seja, que se apresenta socialmente como mulher, independentemente do sexo biológico, tem a proteção da Lei Maria da Penha em casos de violência doméstica.

Esta norma tem grande valia, pois atestamos em nossa prática cotidiana que relações de abuso e violência não ocorrem somente em relações heteroafetivas. Por vezes, em uma relação homoafetiva entre mulheres, uma das mulheres acaba incorporando o comportamento patriarcal, assumindo o papel social do “homem da relação” e, consequentemente, reproduzindo o comportamento machista e opressor.

Da mesma forma, mulheres transexuais ou travestis, ou qualquer outra pessoa que se identifique como mulher, não estão livres da opressão do patriarcado e suas formas danosas de controle sobre sua vida e seu corpo e estão, igualmente, protegidas pela Lei Maria da Penha conforme condições já citadas. Travestis, quando violentadas ou assassinadas, geralmente têm seus seios marcados ou mutilados. Um comportamento misógino extremamente agressivo contra um símbolo emblematicamente feminino: os seios. Mulheres lésbicas ou homens trans sofrem estupros corretivos para “aprender a gostar de homem”.

No entanto, é preciso reforçar que a Lei Maria da Penha protege todas as mulheres contra as violências domésticas. Em violências na comunidade ou urbanas, mesmo de gênero, não se aplica essa lei.

MAS, E A VIOLÊNCIA DE GÊNERO?

E vale esclarecer que a violência de gênero está caracterizada pela incidência dos atos violentos em função do gênero ao qual pertencem as pessoas envolvidas. Ou seja, há a violência porque alguém é homem ou mulher. A expressão violência de gênero é quase um sinônimo de violência contra a mulher, pois são as mulheres, historicamente, as maiores vítimas da violência. De acordo com as estatísticas, em 95% dos casos de violência praticada contra a mulher, o homem é o agressor (Teles e Melo, 2003). Isto acontece porque, em uma sociedade patriarcal, os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres possuem pesos e importâncias diferenciados, ou seja, os papéis masculinos são supervalorizados em detrimento dos femininos.

Como alertam Maria Amélia Teles e Mônica de Melo (2003), os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos e indicam que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza ou da biologia, mas sim do processo de socialização das pessoas.

Todavia, alguns autores questionam o uso do conceito “violência de gênero” como sinônimo da violência contra a mulher, pois acreditam que homens e mulheres não cumprem sempre, nem literalmente, as prescrições de sua sociedade. Eles entendem como necessário examinar as formas pelas quais as identidades geneficadas são construídas e relacionar seus achados com toda uma série de atividades, organizações e representações sociais historicamente específicas.

Nós entendemos que, nas relações entre os gêneros (feminino, masculino, binário), existem, sim, violências contra o gênero masculino. Entretanto, ela é numérica e qualitativamente menor que a violência perpetrada contra o gênero feminino, conforme dados e relatos supracitados.

A Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, também chamada de “Convenção de Belém do Pará”, cita em seu art.1º:

“Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.

VIOLÊNCIA DE GÊNERO: DE QUE TIPO? QUANDO? ONDE?

Considerando que a violência baseada no gênero se manifesta de diferentes maneiras ao longo da vida das mulheres, a Primera Encuesta Nacional de Prevalencia de Violencia Basada en Género y Generaciones realizada pelo Uruguay (2013) incorporou a perspectiva geracional perguntando sobre a ocorrência de:

– diferentes tipos de violência

– em diferentes estágios do ciclo de vida das mulheres

– e para diferentes ambientes

Sendo o patriarcado uma força estrutural e estruturante em nossa sociedade, entendemos como um grande avanço a inclusão dos diferentes estágios do ciclo de vida, ou seja, a coleta de informações em todas as idades, bem como a inclusão de diferentes ambientes. Antes, as pesquisas eram realizadas com mulheres entre 15 e 49 anos (idade fértil) e somente no ambiente doméstico. Essa mudança representa um progresso na luta contra a violência à mulher que, cotidianamente, extrapola o ambiente doméstico e se estende a todos os locais onde a mulher circula e se relaciona.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: NÃO EXISTE SÓ ELA

No Brasil, de modo geral, a população, por conhecer a Lei Maria da Penha (2) (90% da população brasileira conhece a Lei), possui a noção equivocada de que existe somente esta forma de violência contra a mulher, e que somente essa legislação abarca as violências sofridas por uma mulher. A violência doméstica é a mais praticada? Sim. Inclusive porque o lar é tido como um ambiente inviolável, sagrado e, portanto, protegido da punição da lei. Entretanto, alguns países da América Latina, que citaremos durante este artigo, estão empenhados em modificar este pensamento conservador que concebe o lar como um lugar necessariamente seguro, e que não deve ser investigado ou conhecido, bem como ampliar a punição das leis de violência intrafamiliar para qualquer violência contra o gênero feminino.

COMO OUTROS PAÍSES ESTÃO AGINDO?

Países como Uruguay, Equador e Argentina entendem que é de extrema importância a quantificação da violência de gênero contra as mulheres exercida por qualquer pessoa nos vários ambientes da vida social, seja na família, no trabalho, em ambiente educacional ou em outros espaços públicos.

Levando em conta a diversidade das relações que se têm ao longo da vida, na pesquisa sobre as relações familiares e violência de gênero contra as mulheres (Equador, 2011), as entrevistadas foram questionadas sobre os ataques sofridos por seu parceiro atual ou parceiro em relacionamentos anteriores, independentemente se houve ou não a convivência habitacional entre eles, ou seja, a análise da violência por parceiro íntimo não deve se concentrar exclusivamente no ambiente doméstico e familiar, pois esta situação também ocorre em espaços fora do domicílio.

Na pesquisa realizada no Uruguai e já mencionada anteriormente sobre violência baseada em gênero (Primera Encuesta Nacional de Prevalencia de Violencia Basada en Género y Generaciones – Apuntes metodológicos y principales resultados), entende-se igualmente que os atos de violência baseada em gênero não se manifestam somente ao nível doméstico e familiar; por isso, investiga a ocorrência de diferentes tipos de violência na esfera pública (espaços públicos, escola, local de trabalho) e do setor privado (campo família: parceiro, ex-parceiro e outros membros da família que convivem com a entrevistada).

A violência baseada em gênero não se manifesta somente através das relações de consanguinidade: também é reproduzida nas diferentes relações interpessoais que as mulheres estabelecem em vários campos.

La violencia contra las mujeres, debido a su condición de género, se da en todos los ámbitos y por parte de agresores diversos, desde la pareja y familiares hasta desconocidos; constituye un fenómeno extendido con características y matices diferentes (2013, p.8)

Pensando desta forma, o nosso olhar deve se ampliar para as diferentes possibilidades de agressões, bem como diferentes possibilidades de agressores em função do seu ambiente de referência: parceiro ou ex-parceiro; família direta e indireta; chefes e/ou colegas de trabalho; professores/as; desconhecidos na área social.

Na Argentina, no ano de 2006, foi sancionada a Lei Integral para prevenir, condenar e erradicar a violência contra as mulheres em todos os âmbitos de suas relações interpessoais. Também foi sancionada, em 2012, a Lei da Identidade de Gênero (3) que reconhece o direito à identidade de gênero considerando a autopercepção da pessoa, independentemente do sexo designado ao nascer.

A criação de ambas as leis ocorreu graças ao movimento de mulheres e feministas da Argentina que têm grande adesão de mulheres lésbicas, travestis e transexuais.

No Peru, por exemplo, existe a Lei para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra as mulheres e os integrantes do grupo familiar – Lei 30.364, de novembro de 2015. É uma lei bastante completa que reconhece e assume o enfoque de gênero, direitos humanos e interculturalidade. Entretanto, uma grande parte da imprensa peruana não fala de violência de gênero e a menciona como violência contra a mulher; isso se deve à existência e crescimento de uma corrente conservadora, que, aliás, ganha cada vez mais força, e que prioriza o foco familiar sobre o foco de gênero. Um exemplo disso foi o Ministério da Mulher e da População Vulnerável, órgão regulador da inserção do foco de gênero na política pública do país, passar a se chamar Ministério da Família e Inclusão Social.

LUTA DIÁRIA

Aqui no Brasil, vivemos um movimento semelhante no qual o termo “gênero” é visto por grupos religiosos e militantes que se intitulam “pró-vida” como uma forma de doutrinação contra a ”família e os bons costumes”. No Chile, um país extremamente conservador no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o termo “violência intrafamiliar” é o mais utilizado pelo Estado e pela imprensa. Neste país, existe a Lei de Violência Intrafamiliar que inclui a violência contra as mulheres, mas que perpassa também no que tange aos meninos, meninas, idosos, etc. Somente agora está se discutindo o conceito de violência de gênero, ainda de forma incipiente.

Conversando com colegas chilenas que trabalham na rede de enfrentamento à violência, elas me disseram que:

“Existir um movimento que implemente uma lei específica de violência contra as mulheres é um grande avanço, mesmo que ainda esteja dentro da perspectiva intrafamiliar”.

Na Guatemala, outro país conservador, o tema da violência contra a mulher é uma luta diária, já que muitos dizem que as mulheres estão abandonando seus lares pelas correntes feministas. Há inclusive uma rádio que promove um programa que se chama “lo que calamos los hombres” e, como é possível imaginar, alguns homens e mulheres atacam abertamente as leis de feminicídio e outras formas de violência contra a mulher, alimentando pensamentos machistas e dizendo que essa lei foi criada para atacar e oprimir os homens.

Em nosso entendimento, utilizar a terminologia “violência de gênero”, não é somente correta pelas indicações mencionadas, mas também por ser um reconhecimento de que a violência específica contra as mulheres e às pessoas que se identificam com o gênero feminino causam danos e prejuízos graves à toda a sociedade.

A inclusão do termo “violência de gênero” é uma conquista não somente semântica, mas política, onde grupos historicamente excluídos podem, igualmente, ser protegidos pela Lei Maria da Penha. Da mesma forma, a punição e criminalização da violência de gênero deve ser ampliada para além dos muros das casas e das relações de afetividade/proximidade na compreensão de que todos os espaços onde as mulheres circulam são potenciais locais de violação de seus direitos.

1 http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/11/violencia-domestica-e-causa-de-dois-tercos-das-denuncias-de- agressoes-contra-a-mulher

2 Cumpre informar que a publicidade em torno da Lei se deu em razão da condenação do Brasil pelo órgão má- ximo da ONU na questão de Gênero, como penalidade por perpetuar a violência e não punir o quase homicídio sofrido por Maria da Penha. Ou seja, não foi uma propaganda que partiu do Estado, tampouco a Lei foi criada por impulso do Estado Brasileiro em proteger as mulheres. Ele só o fez em decorrência da sanção internacional que sofreria diante da condenação do descumprimento de um dos tratados mais importantes de Direitos Humanos assinados e ratificados.

3 A lei abriu um precedente mundial por ser a única no mundo que não patologiza a comunidade trans (transgê- nero, transexuais e travestis). Além disso, a lei inclui em seus artigos o respeito em todo o momento à identidade de gênero da pessoa e seu nome social escolhido (tenha ou não realizado o trâmite burocrático, visibilizando a realidade trans e travesti), a adequação sexual ao gênero (tratamentos hormonais e a cirurgia de resignação sexual) no Plano Médico Obrigatório, abrindo o leque para que médicos tenham que se capacitar para isso.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIANCHINI, A. “O que é violência baseada no gênero”. Rev. Sororidade – Dimensão ética, política e prática do feminismo contemporâneo. 2015

DIP, A. Existe ideologia de gênero? Agência Pública. 2016

ECUADOR. La violencia de género contra las mujeres en el Ecuador: análisis de los resultados de la encuesta nacional sobre relaciones familiares y violencia de género contra las mujeres. QUITO, 2014.

ILPES – Instituto Latinoamericano y del Caribe de Planificacion Econòmica y Social e CEPAL – Comisión Económica para America Latina y Caribe. La Medición de la violencia contra las mujeres em America Latina y el Caribe. 2017

MÉXICO. Instituto Nacional de Estadística y Geografía . Panorama de Violencia contra las mujeres en Jalisco. ENDIREH, 2011.

MINAYO, M. C. de S. Violência e Saúde, Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2006.

NACIONES UNIDAS. Directrices para la producción de estadísticas sobre la violencia contra la mujer: encuestas estadisticas. Departamento de Asuntos Económicos y Sociales. División de Estadística. New York, 2015.

TELES; Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher?. São Paulo: Brasiliense, 2003.

URUGUAY. Instituto Nacional de Estadistica. Primera Encuesta Nacional de Prevalencia de Violencia Basada en Género y Generaciones- Apuntes metodológicos y principales resultados. INE-URUGUAY, 2013

ZAPATER, M. Violência contra mulheres, violência doméstica e violência de gênero: qual a diferença? Escola Superior da Polícia Civil. Paraná: 2016 http://www.escolasuperiorpoliciacivil.pr.gov.br

Claudia Cristina Mussolini

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