Há duas semanas, Adelir Carmen Lemos de Góes recebeu em sua casa, durante a madrugada e estando em trabalho de parto, a visita de um oficial de justiça acompanhado de policiais armados que a forçaram, e ao marido, a acompanhá-los ao hospital para que fosse submetida a uma cesariana contra o seu consentimento. A ordem judicial se baseou na opinião de uma médica, que afirmava que Adelir estaria colocando em risco sua própria vida e a de seu bebê, usando como argumentos o pós-datismo (quando a gestante ultrapassa 42 semanas de gestação), um bebê em posição sentada no útero e o fato de Adelir ter vivido duas cesáreas anteriores. Segundo a médica, ela não teria qualquer condição de viver o parto normal para o qual tanto se preparou, e insistir nesse objetivo traria obrigatoriamente um desfecho fatal.

Durante todos esses dias, muitos profissionais conceituados que atuam na área obstétrica manifestaram-se colocando em cheque a opinião da médica, não apenas baseados em sua opinião pessoal, mas em dados cientificamente comprovados, em suas próprias práticas obstétricas e grande experiência na assistência a partos normais após cesáreas e apresentação pélvica de bebês.
Muitas outras informações também surgiram, como o fato de que o suposto pós-datismo não procedia, uma vez que o exame feito por Adelir na tarde em que esteve no hospital, algumas horas antes de receber a visita do oficial de justiça e dos policiais, indicava gestação absolutamente normal e saudável de 40 semanas.
Nas próximas postagens deste blog, você poderá ler ponderações, explicações ou comentários feitos por médicos, obstetras e obstetrizes, cujos trabalhos em defesa do respeito ao parto e ao nascimento são nacionalmente reconhecidos e respeitados, a respeito tanto da recomendação questionável da cesariana quanto do próprio desfecho em si, marcado por grande violência e desrespeito aos direitos humanos.
Também durante todos esses dias, muito se falou e se agiu a respeito do ocorrido. A Artemis – Aceleradora Social Pela Autonomia Feminina, encaminhou à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Presidência da República uma denúncia formal sobre a violação dos direitos humanos e a violência obstétrica que marcaram o caso. O Deputado Federal Jean Wyllys acolheu a denúncia encaminhada e em breve haverá uma audiência pública sobre violência obstétrica junto à Comissão de Direitos Humanos e Minorias, em Brasília. Na última sexta-feira, atos de repúdio ao ocorrido e em defesa de Adelir aconteceram em mais de 30 cidades, culminando em uma vigília no Largo São Francisco, em São Paulo. Exatamente neste dia, as Secretarias de Direitos Humanos e de Políticas Para as Mulheres da Presidência da República manifestavam-se formalmente em defesa de Adelir e apoiando a luta contra a violência obstétrica no Brasil. Dezenas de notícias foram veiculadas pela mídia, escrita ou televisiva. Definitivamente, a violência obstétrica ganhou palco para discussão ampla nos coletivos. Finalmente, está-se falando sobre o assunto. Finalmente, a questão foi reconhecida como grave problema social, de saúde e de desrespeito aos direitos humanos e reprodutivos das mulheres.
E tudo isso por que?
É sobre isso que falo hoje.
Tudo isso porque uma mulher de vida simples e pacata, lutando pelo direito de ter seu filho com

respeito e orientada, durante a gestação, por profissionais sérios, foi cruelmente desrespeitada e forçada a uma cirurgia sem necessidade, contra sua decisão autônoma.

Durante todos esses dias, dividi-me entre a satisfação de ver o tema acolhido por órgãos e instâncias superiores e uma forte angústia: como Adelir estaria lidando com tudo isso? Como estaria sua vida? O que todo esse movimento, essa discussão, esses holofotes acesos para seu caso, estavam produzindo nela como mulher, como pessoa, em sua família, em sua rotina? Não é possível lutar por direitos humanos e esquecer das pessoas… Não é possível atropelar o sujeito pela causa que ele representa. Cada vez que eu ouvia ou lia comentários absolutamente vazios, desprovidos de qualquer conhecimento sobre o tema, baseados em moralismos ou opiniões pessoais, muitas vezes ofensivos, eu me lembrava de Adelir. E temia pela possibilidade, remota ou não, dela estar sendo novamente violentada, ainda que nossas intenções fossem – e sejam – as melhores.
Então, no sábado, 12 de abril, procurei por ela e seu esposo, Emerson. Ambos prontamente me atenderam ao telefone – ela tendo acabado de tomar um banho e de cuidar da sua bebê, Yuja, então com 12 dias. Perguntei se eles poderiam e gostariam de conversar comigo ou se preferiam que eu os procurasse em outro dia. Emerson me disse: “Hoje é um ótimo dia! Ela está voltando a sorrir. Fez até um bolinho hoje…”.
Então, Adelir e eu conversamos por quase uma hora.

E eu disse a ela que tinha todo o tempo do mundo para ouvi-la, mas que o motivo de tê-la procurado era um só: eu queria saber como ela estava, como estava sua vida, como ela estava emocionalmente, como estava recebendo toda essa movimentação ativista, militante, apaixonada e engajada. Eu estava preparada para ouvir qualquer tipo de resposta, e levar adiante qualquer depoimento dela. Queria saber como estavam as crianças, se havia algo a mais que pudesse ser feito para ajudá-los.
Então, depois de conversarmos u
m pouco sobre a bebê, depois de saber que Flora – sua segunda filha, que tem hoje 2 aninhos – está apaixonada pela irmãzinha e não quer nem que cheguem perto dela porque só ela quer cuidar, Adelir desabafou: 

“Eu não seria nada… Nesse momento, eu não seria nada sem esse apoio. Esse, que vocês todas estão me dando. Eu não seria nada, nós não seríamos nada, porque nem nossa família está nos apoiando. Eu não seria nada… Nosso nome estaria na lama se não fossem vocês”.

Então ela me contou tudo o que eles têm vivido desde então, e um pouco do que viveram no exato dia em que ela foi obrigada a ser operada.
Adelir é mãe de Angelo, Flora e Yuja. Toda a família morava em Canoas, RS, mas se mudaram há dois

anos para Torres, também no Rio Grande do Sul. Canoas é uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre e tem mais de 400 mil habitantes. Torres tem pouco mais de 30 mil habitantes e fica há mais de 200 km da capital do estado. A família se mudou porque buscava mais tranquilidade para viver e uma qualidade de vida melhor, que de fato encontraram na pequena cidade. Mas depois do que aconteceu com ela, tudo mudou. Hoje, eles são apontados na rua ou ofendidos por pessoas em função do que a grande mídia tem mostrado e em função de suas escolhas. Eles moram numa área rural e levam uma vida simples, e as pessoas da região pouca ou nenhuma informação têm acerca das possibilidades que uma mulher tem para receber o filho que gerou.

Adelir somente agora está encontrando força e coragem para sair com mais frequência, e nos primeiros dias esteve tão abalada emocionalmente que, certa noite, entrou em pânico por ouvir buzinas insistentes em frente à sua casa, achando que alguém poderia invadi-la e atentar contra eles – como de fato viveram dias antes, com a chegada da polícia. Talvez por todo esse abalo emocional, a cicatriz da cirurgia pela qual passou está encontrando dificuldade para cicatrizar e chegou a inflamar. O que trouxe a ela novo medo:

“Tudo o que eu não quero é voltar naquele hospital. Não posso nem imaginar o que pode acontecer comigo lá. Nunca mais voltei, mas tenho que voltar em breve para marcar o teste da orelhinha da bebê. Mas estou com muito medo. Eles me maltrataram muito naquele dia, imagine agora que o que fizeram foi revelado e está sendo discutido”.

Desde então, o acompanhamento médico que ela tem recebido vem unicamente do postinho de saúde do seu bairro. E é lá, inclusive, que ela está encontrando talvez o único apoio e fortalecimento em sua própria cidade. Todas as enfermeiras do posto a estão tratando com muito cuidado e amor e sempre se manifestam em sua defesa. Talvez porque, segundo ela mesma contou, muitas já sabiam de outros casos de maus tratos recebidos por outras mulheres na região quando foram dar à luz no mesmo hospital.

“Lá eu sou cuidada, sabe? Elas me abraçam, me beijam, perguntam como estou. Elas estão cuidando de mim, não estão me chamando de assassina nem nada. Elas entendem minhas escolhas”.

Pedi a Adelir que contasse como foi que tudo aconteceu durante sua gestação. Sua preparação para o

parto, porquê havia decidido por um parto natural após ter vivido duas cesarianas, quem a tinha apoiado e orientado, como ela tinha conseguido informação.

Adelir viveu uma cesariana no nascimento de seu primeiro filho, Angelo. Ele nasceu em um hospital particular, com pagamento pelo convênio que eles tinham. Com 39 semanas de gestação, o médico não deixou que ela seguisse em frente e marcou a cesárea.
“Foi médico particular, né? Aí que eles não deixam passar de 39 mesmo”. – disse ela.
Naquela época, ela ainda não tinha ouvido falar ou lido a respeito do parto normal, dos benefícios, das possibilidades. Quando ficou grávida de Flora, chegou a buscar informação. Mas não conseguiu tanto quanto queria por falta de tempo para estudar sobre o assunto. Ela tinha uma lancheria, fazia trufas para gerar renda e trabalhava bastante, fazendo cerca de 60 trufas por dia. Foi na gestação de Flora que ouviu falar pela primeira vez em violência obstétrica e em parto humanizado, mas não conseguiu se aprofundar tanto quanto gostaria. Então, às 41 semanas, o médico que a atendia (e de quem ela gostou muito, por ter sido muito bem tratada e acolhida), afirmou que os batimentos cardíacos da bebê estavam lentos. Adelir chegou a ver em um monitor os batimento cardíacos caindo e, então, consentiu com a cirurgia. Após o nascimento, o médico disse que, por algum procedimento de sutura ter sido feito de maneira não recomendada na primeira cesariana, seria muito arriscado passar por uma terceira. Que se ela engravidasse novamente, talvez buscar outras opções para o nascimento fosse melhor do que viver uma nova cesariana, pois seria muito mais arriscado.
A gravidez de Yuja foi inesperada. Ao se saber grávida, uma das primeiras coisas que Adelir lembrou foi da recomendação do médico sobre o risco de viver uma terceira cesárea. Então, decidiu buscar informação. Buscar alternativas. Eles já viviam em Torres e ela tinha mais tempo disponível, pois não estava trabalhando fora, estava em casa cuidando dos dois filhos pequenos. Então, entrou no Facebook. E lá, encontrou o grupo “Cesárea? Não, obrigada!”. O grupo possui hoje quase 10.000 participantes, mulheres em busca de orientação e profissionais dispostos a oferecê-las. É um grupo ativamente moderado por ativistas, professores, obstetras e obstetrizes conhecidos e engajados na luta contra a epidemia de cesarianas, a violência obstétrica e a medicalização do parto. E foi lá que o estudo de Adelir em busca de um parto normal após suas cesarianas começou.

“Foi lá que eu comecei a estudar. Foi quando soube que muitas médicas e outras profissionais estavam quebrando mitos. Elas tinham dados, informações. Foi lá que encontrei a doula que tanto me ajudou”.

Adelir assistiu ao documentário “O Renascimento do Parto” e se preparou muito para seu parto natural. No final de sua gestação, seu marido,
Emerson, fez um acordo com seu empregador e passou a ficar em casa junto com ela, também se preparando para apoiá-la e ajudá-la na hora do parto. Ambos estudaram. Ambos se prepararam. E ela diz que não foi em busca de um parto normal por ser “irresponsável”, como tantos a chamaram. Mas porque tinha medo de morrer em uma cirurgia que, de acordo com o médico anterior, seria muito arriscada. E, também, porque se lembrou muito de seu pai e do que ele a ensinou. Adelir perdeu os pais aos 14 anos e tinha muito medo de que seus próprios filhos ficassem órfãos.

“Meu pai era um educador. Ele me ensinou a nunca repetir o que os outros falavam, me ensinou a ir atrás da verdade. Nós não somos papagaios, não podemos só repetir o que dizem por aí, temos que estudar, temos que decidir o que é melhor para a nossa própria vida. Eu nunca descartei uma cesárea! Jamais! Eu só estava em busca de uma opção melhor, mais saudável, para mim e minha filha. Então quando dizem por aí que eu estava colocando meu bebê em risco iminente, é mentira! Não estava! Se um médico me disse que havia um problema com minha cicatriz, eu queria ir atrás de outra opção e encontrei”.

Adelir foi tirada de casa pelos policiais na frente de seu enteado, um garoto de 15 anos, que ficou tremendamente assustado e nervoso, precisando ser amparado pela doula. E a despeito de todo o transtorno e humilhação de ter sido tirada de sua família na madrugada, em trabalho de parto, Adelir diz que isso não foi o pior. Pior que isso foi o que ouviu da médica que fez a cesárea sem seu consentimento:

“Enquanto ela me operava, dizia que eu era uma irresponsável, uma assassina, uma louca. Que se eu tivesse marcado a cesárea antes, nada disso precisava ter acontecido. Se eu tivesse marcado a cesárea, meu marido podia estar ali tirando foto agora. Que por minha causa agora eu estava sozinha e ele lá fora. Eles não deixaram meu marido entrar, eu fiquei sozinha…”.

Nesse momento, Emerson interrompeu para dizer o que ele também havia vivido. Ele foi impedido de entrar como acompanhante para o nascimento da filha. Ele acredita que foi impedido porque seria testemunha do que seria feito com a esposa.
 “Se eles tivessem me deixado entrar, eu ia poder ver se realmente tinha mecônio. Se realmente a bebê estava em sofrimento como ela dizia. Se realmente ela estava sentada e não encaixada como Adelir sentia. Por que não me deixaram entrar? A bebê nasceu bem. E se ela nasceu bem, então ela não estava em sofrimento. Mentiram pra gente”. – disse Emerson.
Adelir também falou de seu pré-natal:

“Foi ótimo, tudo o que pediram que eu fizesse, eu fiz. Foram 9 consultas, então quando dizem que eu não me cuidei, estão tentando manchar meu nome. Sempre esteve tudo bem com a gestação. Tanto que no exame do dia 31/03 – todo mundo pode ver – estava tudo ótimo com a gente. Batimentos cardíacos ótimos, placenta íntegra, líquido adequado, tudo ótimo. Como que de uma hora pra outra tudo ficou ruim? Só porque eu não quis fazer o que queriam! A única coisa que não batia era isso deles dizerem que eu estava de 42 semanas, porque não batia nas minhas contas. E depois o exame mostrou que eu realmente não estava, estava de 40 semanas”.

Adelir, ao contrário do que as pessoas divulgaram, não é cigana. Emerson é que é descendente de

ciganos. Ela é órfã e somente tem contato com os tios. Deles, apenas 1 tio ligou para saber como eles estavam, se precisavam de algo. Seu tio e sua irmã, Talita, foram os únicos da família que a apoiaram. Perderam contato com muitos outros familiares, que não os apoiaram quando o caso chegou à mídia, sequer telefonaram para saber da bebê ou de Adelir. Adelir e Emerson estão chateados e magoados porque gente a quem consideravam muito os estão ofendendo. E quando eu perguntei o que eles esperam com todo esse movimento, ambos responderam juntos:

“Uma retratação! A gente quer uma retratação do hospital! Para que as pessoas aqui da nossa comunidade e da nossa família vejam que não estávamos errados e que fomos maltratados”.
Sobre o medo que ela sente de voltar ao hospital, recomendei que ela não vá sozinha, nem somente com o marido. Que alguém de sua confiança os acompanhe, talvez a doula, e que gravem ou filmem com o celular o atendimento que receberem, a fim, quem sabe, de evitar que sejam novamente maltratados.
Por fim, Adelir deixou um recado às mulheres que pretendem engravidar, às que já estão grávidas e às ativistas:


 “Eu quero dizer às mulheres que estudem. Que estudem muito. Que busquem informação, toda informação que puderem. Porque a venda de cesárea é muito grande. E eles fazem a gente acreditar que não sabemos de nada. Tenham uma doula, uma doula ajuda muito. Às ativistas eu quero dizer que ‘Obrigada’ é muito pouco, sabe? Eu não tenho palavras pra dizer o que você estão fazendo por mim, por nós. Eu não teria força, meu marido não teria força, se não fossem vocês. Obrigada por nos ajudarem, por estarem do nosso lado. Sem o apoio de vocês eu não seria ninguém agora, depois do que eu passei. Estou conseguindo melhorar porque vocês estão me ajudando. Hoje [1 dia depois do ato nacional] eu consegui até bater um bolinho pra gente! O que eu falo? Falo obrigada! Mas ainda é pouco”.
Essa foi a nossa conversa. Uma conversa sincera, de mãe para mãe, de mãe para pai, de pai para mãe. Entre pessoas fisicamente distantes e tão próximas em nossos ideais. Não sei como isso será possível, mas espero sinceramente que Adelir e Emerson recebam a retratação que esperam e merecem. Isso não vai fazer desaparecer o que ela viveu. A cicatriz de sua terceira cesariana sempre existirá. Mas talvez dê a ela um pouco de paz para seguir com sua família.
De nossa parte, é preciso empatia, acolhimento, compreensão, não julgamento e apoio. Uma família teve toda sua vida alterada em função, apenas, de ter exercido sua liberdade, seu direito à escolha informada e sua autonomia.
Se a nós, cidadãos e cidadãs, for negado esse direito tão básico, o que mais faltará acontecer?
Não somente por isso mas também por isso, somos todxs Adelir. Somos A
delir, Emerson e toda sua família.

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