Quem acompanha o blog sabe da minha busca por novas possibilidades educacionais e da

identificação que tenho, pelo menos no presente momento, com a discussão em torno dos processos de desescolarização.
Acompanho diferentes grupos e pessoas que se comprometem a discutir a questão de maneira verdadeira, comprometida, incluindo em sua análise diferentes pontos de vista e tentando compreender melhor as motivações e questões que levam diferentes famílias, em diferentes regiões, a optar por desescolarizar, ou não, seus filhos.
Sigo aprendendo e participando dos debates e, até o momento, minha opinião sobre o movimento ainda incipiente de desescolarização no Brasil – ainda que receba outros nomes ou seja representando por diferentes iniciativas – vai na seguinte direção: vejo grande semelhança, em termos de motivações, princípios e quebra de paradigmas, entre o que leva as famílias a desescolarizarem seus filhos e o que leva as mulheres a desinstitucionalizarem seus partos e lutarem pela humanização do nascimento.
Mas não me aprofundarei nisso agora. Deixo para outro momento a discussão desse meu ponto de vista, que está longe de ser consensual para mim mesma e está em constante processo de construção, pois que me dedico constantemente a refletir sobre o assunto.
Por buscar novos olhares que possam contribuir para a questão da inserção (ou não) das crianças no processo educacional formal, tenho verdadeiro respeito pelo olhar dela: Carolina Pombo. Para além de concordarmos ou não uma com a outra com relação à desescolarização, ou de vivermos em países diferentes (eu no Brasil, ela na França), temos um entre muitos pontos em comum: estamos em busca de refletir profundamente sobre o assunto, incluindo diferentes olhares em nosso próprio olhar sobre a questão.
Hoje, tenho a honra de tê-la como autora deste Guest Post.
Convido vocês, então, para nos acompanhar nesse processo de reflexão.
E agradeço à Carolina por ter enviado este texto para publicação.

O dilema da transmissão de saberes dentro e fora das escolas
Por Carolina Pombo

É inevitável pensar na escola (e nos modelos escolares que temos disponíveis ao redor de nossas residências e nesse mundo globalizado) quando temos filho/a/s, mesmo que ainda sejam bebês. Todas as sociedades já encontradas nesse mundo afora desenvolveram técnicas de transmissão de saberes, dos mais elementares, do tipo “como extrair a manteiga de karité das amêndoas”, e dos mais complexos do tipo “como tornar a manteiga de karité um produtos lucrativo no mercado internacional”. Por que estou usando o exemplo da manteiga? Bom, a ideia aqui é refletir sobre como coisas aparentemente distantes estão estreitamente ligadas, coisas que passam pela peneira de nossas escolhas aparentemente tão bem fundamentadas, ao pensarmos no desenvolvimento e na escola de nossas crianças. Tentamos pensar em tudo! Tentamos preveni-las de quase tudo! Mas, no quesito transmissão/criação de conhecimentos, há muito mais entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia… A ideia desse texto é trazer alguns pontos de reflexão que podem fazer você ficar um pouco mais angustiada com essa escolha ou que podem até fazê-la relaxar e aproveitar o que a vida escolar (e extra-escolar) pode oferecer.
  
Voltemos a nosso exemplo: a manteiga de karité está presente em diversos produtos, inclusive em cosméticos e remédios que nós, mulheres ocidentais (ou quase ocidentais, já que fazemos parte dos trópicos), consumimos em larga escala. Sua descoberta é, na verdade, oriunda de uma cultura africana, onde as mulheres trabalham tradicionalmente buscando amêndoas e desenvolvendo técnicas de extração dessa gordura vegetal. Esse saber tem sido passado de geração em geração, fazendo parte das práticas cotidianas, da organização social, das comunidades e das famílias. As relações entre mães e filhas são atravessadas pela transmissão dessa técnica, assim como pela atribuição de valores espirituais e materiais ligados ao produto. Utensílios são criados, materiais para a manutenção e o transporte, relações com distribuidores, consumidores, etc., geram toda uma rede dependente dessa matéria-prima. A importância dela em certas comunidades em Burkina Faso é tão grande que tornaram-se alvo de missões humanitárias e projetos internacionais para a emancipação das

mulheres burkinesas. Elas tem sido praticamente invadidas por uma gama de “boas intenções” de Ong’s internacionais para aprenderem a “vender seu peixe” no mercado globalizado. De fato, esses novos aprendizados têm servido para que as burkinesas ganhem reconhecimento mundial e saibam lidar melhor com suas poderosas compradoras multinacionais. Mas conflitos têm aparecido. Essas artesãs não querem ser simplesmente ensinadas pelos engravatados conhecedores do marketing. Elas também querem preservar sua forma tradicional, espontânea, de conhecimento, já que ela está tão ligada a outros aspectos de sua cultura e identidade.

Então agora eu traço um paralelo com a relação entre famílias e escolas formais. A princípio, queremos que nosso/a/s filho/a/s façam parte de uma rede de transmissão de conhecimentos importantes para se viver em nossas sociedades. Queremos que se sintam incluídos nessa sociedade, a ponto de contribuírem para sua manutenção e também transformação. Mas, quando as escolas começam a sobrecarregá-lo/a/s com deveres e mais deveres de casa baseados na apreensão de conteúdos formais pura e simplesmente, parece que seu papel está contradizendo justamente aquilo que tínhamos desejado ao pensar no desenvolvimento dele/a/s. Não queremos apenas detentores de um conhecimento supostamente melhor jogando um monte de matérias a serem decoradas e jamais aplicadas por nossas crianças. Isso toma o tempo delas, rouba sua oportunidade de aprender brincando, de desenvolver maneiras criativas de ensinar e aprender, e de se divertir. Não queremos que essa ânsia pela decoreba roube nosso tempo em família, invadindo nossas casas e espaços de convivialidade com a tensão já tão rotineira da ameaça de reprovação ou de uma nota baixa na escola.
Quando esse modelo escolar se torna dominante, há que se resistir. O nó da questão está em que nós não vivemos numa aldeia onde as regras sociais e as identidades culturais estão intimamente ligadas a saberes tradicionais. Há séculos atrás, a sociedade brasileira foi idealizada como uma das terras prometidas do progresso moderno, ordenado e encabeçado por uma crença científica na educação formal. Nossa sociedade constituiu sua ordem democrática a partir do letramento, da alfabetização, do direito a ler, escrever e se comunicar dentro de um modelo estabelecido. E isso gera muitas tensões. Se, por um lado, estamos muito satisfeita/o/s em fazer parte de uma democracia (apesar das  ameaças que de vez em quando aparecem), não acreditamos que o direito a participar dela deva estar atrelado a uma educação massificadora. O Brasil aprendeu muito com as críticas de Paulo Freire à “educação bancária”, aquela que foi inventada como modelo ideal mas que excluía, violentava e calava muito/a/s brasileiro/a/s. Paulo Freire chegou a fazer parte de uma secretaria de educação e influenciou bastante a transformação do projeto de transmissão de conhecimentos no nosso país. Chegamos enfim num modelo escolar perfeito que concilia inclusão, democracia e respeito às formas espontâneas de aprender? Infelizmente não.

Outro nó desse conflito está na privatização da educação. O sonho de uma escola perfeita foi atropelado pela globalização da educação focada no lucro. No Brasil, os projetos e instituições escolares se diversificaram tanto que mal conseguimos entender a relação desses projetos com as Diretrizes Nacionais para a Educação. No fim das contas, temos escolas públicas baseadas numa concepção libertária da educação, porém, constrangidas pela falta de investimento, pela desvalorização dos professores e atravessadas por enormes problemas sociais dos quais as instituições não podem dar conta sozinhas. No outro lado, temos as particulares, as instituições privadas que tem sido orientadas pelo lucro e portanto não tem muita crítica quando à prática conteudista. E há também algumas poucas iniciativas associativas, que são mais livres da ânsia pelo lucro e conseguem ter um pouco mais de recursos para se manter. Porém, acontece que muitas salas de aula que deveriam abrigar formas emancipatórias da transmissão do conhecimento viraram bancos de depósitos dos conteúdos e das regras excludentes. Chegamos no fim do poço, sem esperança para uma escola que realmente cumpra o papel que sonhamos? Eu acho que não.
Eu acredito na capacidade daquelas mulheres burkinesas em resistir de alguma forma à invasão da globalização, sem contudo abrir mão das oportunidades que ela pode trazer. Antes dos projetos humanitários, a maioria dessas africanas vivia em condições extremamente desiguais, trabalhando sem salários, submissas aos homens. Hoje, elas detém uma parte importante da renda familiar e estão adquirindo conhecimentos que contribuem para sua emancipação profissional e afetiva. Mas, para que a resistência e o aproveitamento dessas oportunidades sejam conciliáveis, é necessário que instituições e cidadãs dialoguem, debatam, disputam os espaços.
Se é necessário conhecer o mercado global para desenvolver técnicas de negociação e proteção do patrimônio cultural, que as burkinesas sejam as atoras por excelência da apropriação e transmissão desse conhecimento. Que as instituições internacionais sejam, nesse caso, facilitadoras, mediadoras desse processo e não depositantes do saber. Então, eu acredito também na capacidade das nossas crianças e de nós, mães, pais e educadore/a/s, em ocupar as escolas com os valores de educação que julgamos fundamentais. Algumas experiências associativas tem mostrado que isso é possível. E mesmo em escolas não associativas é possível exercer alguma influência, participando mais das reuniões, oferecendo-se a cuidar de alguma atividade ou estrutura da escola que não estejam em funcionamento ideal, conversando com as crianças e procurando resistir à enxurrada de deveres de casa que podem aparecer. Particularmente, eu não acredito que excluir minha filha da vida escolar seja uma boa estratégia de resistência, porque reconheço que, mesmo com suas enormes contradições, a educação formal é uma baliza fundamental da sociedade democrática. Eu quero que minha filha contribua para uma sociedade melhor, porém, antes disso, quero que ela se sinta incluída e confiante de que pode fazer alguma diferença, sem que essa diferença exclua outras crianças com recursos e contextos menos favorecidos.

*Por Carolina Pombo, autora do livro “A Mãe e o tempo: ensaio da maternidade transitória”, doutoranda em Saúde e Bem Estar Social, mãe da Laura e editora do blog www.maetempo.net

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