Há um provérbio que diz que precisamos trazer a memória aquilo que nos dá esperança. Sempre o citei em situações para lembrar de coisas boas. Hoje, pela primeira vez, uso de outra forma. Vou trazer a memória as dores, as feridas, as violações de um passado não muito distante para nos lembrar para que lutamos e porque é preciso defender a nossa democracia.
Hoje você pode bradar palavras de ordem, mudar foto de perfil, ir para as ruas protestar. Pode discutir política com o vizinho, com o dono da padaria, com a outra mãe do parquinho. A todos nós isso é permitido porque vivemos em uma democracia. Mas essa democracia não nos foi dada gratuitamente. Ela foi conquistada a muito custo. Ao custo de muitas vidas e ao custo de muitas violações.
O que estamos vivendo no Brasil é algo assombroso. Muitos analistas, pensadores, filósofos vão se debruçar sobre os acontecimentos e ainda vamos ler muito sobre tudo isso. Há mais perguntas do que certezas. E no calor do momento é difícil não pensar e escrever sem o fígado. Mas é exatamente isso que precisamos fazer nesse momento. Respirar fundo, parar e olhar o contexto maior.
Vivemos num Estado de Direito. Isso quer dizer que qualquer pessoa, ocupando qualquer cargo, de qualquer instituição precisa respeitar os direitos fundamentais e a hierarquia. Ninguém está acima da lei. O que é muito diferente numa monarquia na qual ao rei é dado o direito divino. Ou em uma ditadura, quando a violação aos direitos fundamentais é constante.
Defender a democracia, os ritos judiciais não é defender o Lula, a Dilma ou qualquer outra pessoa. É defender a nós mesmos da pior versão da humanidade. O discurso de ódio, o gozo ao ver quem pensa diferente acuado, são alimentos do fascismo. Todas as ditaduras – todas – têm algo em comum, mesmo que tenham motivações políticas opostas: nelas não se é permitido pensar diferente.
E sabe o que aconteceu com quem pensava diferente durante a ditadura no Brasil?
[…] que molharam o seu corpo, aplicando consequentemente choques elétricos em todo o seu corpo, inclusive na vagina; que se achava grávida, semelhantes sevícias lhe provocaram aborto […] Estudante Regina Maria Toscano Farah, na época com 23 anos.
[…]que nesta sala foram tirando aos poucos sua roupa; que um policial, entre calões proferidos por outros policiais, ficou à sua frente, traduzindo atos de relação sexual que manteria com a declarante, ao mesmo tempo em que tocava o seu corpo, tendo esta prática durado por duas horas […] funcionária pública Maria Auxiliadora Lara Barcelos, na época com 25 anos.
[…] e ainda levaram seu filho para o mato, judiaram do mesmo, com a finalidade de dar conta de seu marido; que o menino se chama Francisco de Souza Barros e tem a idade de 9 anos; que a policia levou o menino às cinco da tarde e somente voltou com ele às duas da madrugada […] Camponesa Maria José de Souza Barros.
[…] que ao retornar à sala de torturas, foi colocada no chão com um jacaré sobre o seu corpo nu […] Estudante, Dulce Chaves Pandolfi, então com 23 anos.
Os corpos ainda sangram. As feridas ainda estão abertas. O luto ainda é diário. Durante a ditadura as pessoas eram presas para averiguação sem qualquer tipo de mandado de prisão (http://varelanoticias.com.br/vania-galvao-e-galo-condenam-prisao-de-takemoto-e-se-pronunciam-contra-prefeitura/), estudantes eram presos e violentados por policiais por se manifestarem (http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,pm-e-estudantes-entram-em-confronto-em-protesto-na-doutor-arnaldo,10000003601), pessoas que pensavam de forma diferente eram hostilizadas e muitas vezes denunciadas, sem terem cometido nenhum tipo de delito (http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,atos-pro-dilma-sao-hostilizados-em-manifestacoes-contra-o-governo,1651185).
A nossa frágil democracia precisa que nos posicionemos a favor dela. Num Estado de Direito não é (ou não deveria ser) permitido a violação dos direitos humanos e dos ritos processuais. Mesmo do pior bandido. Mesmo ao réu confesso é dado o direito de defesa, a salvaguarda de não violação de seu corpo, o respeito ao processo jurídico. Lula e Dilma sequer são réus em nenhuma ação. Contra eles, ainda, não há nenhuma prova ou condenação. Por pior que sejam os áudios dos telefonemas vazados, eles não podem ser admitidos como provas dentro de um processo sério porque foram obtidos criminosamente ou porque violam o sigilo advogado-cliente. A vontade de se provar a culpa de alguém não pode ser maior do que a obediência aos ritos processuais. Se eles são culpados, as provas aparecerão, as informações virão à tona e eles responderão por seus delitos, assim como muitos já estão respondendo. Forçar a saída de uma presidenta, eleita democraticamente, no berro, no discurso de ódio e em “pedaladas” jurídicas não nos trará um país melhor.
A quem deseja um Brasil sério, precisamos começar defendendo as instituições. Comemorar desvio de atitude de quem se espera lisura e imparcialidade não nos faz defensores da moralidade. O governo da Dilma é indefensável por sua (in)governança. Há muito que criticar: abandono das políticas de direitos humanos, as obras das hidrelétricas na Amazônia, a lei anti-terrorismo, a politicagem rasteira para manutenção do poder, até mesmo a manobra de trazer o Lula como ministro, que não é ilegal, mas (a meu ver) é imoral. Mas, repito, o que se defende não é a Dilma ou Lula ou qualquer partido. O que precisamos defender agora é a democracia. A justiça. O Estado de Direito.
Um país melhor exige cidadãos autônomos e responsáveis. Exige pessoas que não usam as instituições a favor de si mesmo. Exige pessoas que estejam atentas a qualquer violação de diretos. Exige pessoas abertas à diversidade e ao diálogo. Exige pessoas que não gritam contra a corrupção apenas aos domingos, mas que não sonegam impostos, que não vendam recibo para imposto de renda, que não falsifiquem carteira de estudante, que não estacionem em vaga de deficiente, que não subornem policial.
Agora é a hora de nos posicionarmos. Não a favor de um partido, de um político, de um juiz. A favor do Brasil. A favor da democracia. Da imparcialidade do Judiciário. Contra a corrupção em todas as esferas – do legislativo e executivo. Que as empresas de comunicação, que precisam de concessão pública, sejam responsáveis e éticas, não tendenciosas. Que o diálogo volte a existir entre todos nós.
Se torcermos pelo caos, se torcemos pelo enfraquecimento das instituições, a próxima vítima pode ser a gente. É urgente aprendermos as lições que derivam do nosso passado recente. Não há bem que surja do ódio, da polarização, do maniqueísmo, da intolerância.
Na apresentação do livro Brasil Nunca Mais, lançado em 1985, com denúncias das torturas sofridas por pessoas durante a ditadura, há o seguinte trecho:
É preciso tomar decisões, adotar medidas corajosas que favoreçam a consolidação de um país democrático. É preciso trabalhar, sem trégua e sem demoras, na remoção dos rastros do autoritarismo e na edificação de um legítimo Estado de Direito, que seja sólido e ao mesmo tempo permeável à crítica. Onde não seja proibido participar, nem discordar, nem contestar. Onde o grito dos pobres possa ser ouvido. O grito de todos. (p.19)
Para que todos nós, de direita, de esquerda, apartidário, possamos ter o direito de contestar, de protestar. Para honrar as vidas que foram violadas e mortas pela luta da liberdade. É por isso que precisamos sair em defesa da democracia. Do diálogo, do respeito e da tolerância. Por nós mesmos.
Ana Caroline Castro
Jornalista, mãe da Tarsila e do Ernesto e diretora do documentário CORATIO – 30 anos do Brasil: Nunca Mais, que trata das violações dos direitos humanos da ditadura aos dias atuais.