Essa foi / está sendo uma Páscoa um pouco difícil. Entremeada por lembranças bonitas e pela dor da
saudade. Uma saudade que, espero, em breve perca seu caráter doloroso, sendo substituída apenas pelo conforto de saber que alguém concluiu sua história nessa experiência de vida.
É natural que sintamos falta de quem nos é caro e que esteve ao nosso lado fisicamente nas Páscoas de anos anteriores. Resta o gostinho rançoso do “E agora?“. E, mesmo natural, não deixa de ser difícil…
Senti falta do meu pai em cada momento deste feriado prolongado. Ainda mais em decorrência de um grande amigo também ter se despedido de seu pai nesta sexta-feira “santa”. O mesmo amigo que nos presenteou, a mim e minhas irmãs, com a linda ilustração deste texto, quando da partida do meu pai, há exatos três meses.
O processamento das emoções trazidas por este feriado tem sido difícil…
Tentei me conectar, muitas vezes, ao significado místico atribuído de modo geral a essa data: celebração, comunhão, fertilidade do amor, libertação, transmutação. E foi difícil conseguir. Em parte pela dor do luto, que ainda me acompanha, em parte pela dificuldade de conciliar uma face difícil da realidade com suas faces mais belas.
Senti grande vontade, durante todos esses dias, de voltar a ver a Páscoa com outros olhos. Um desejo genuíno de voltar a sentir o espírito de comunhão, seu significado holístico, a lembrança de algo maior que nos conecta a todos.
Mas essa busca pela libertação – em suas múltiplas formas – que iniciei há quatro anos tornou-me crítica demais, um tanto seca, um tanto cética, bastante desconfiada e em constante avaliação racional das diferentes situações.
Acredito que isso também seja natural… Talvez outras pessoas, mais experientes e amadurecidas que eu, e que já trilharam essa mesma busca, esse mesmo caminho, possam dizer que isso é natural. E que é assim mesmo, até que eu encontre uma forma gentil de conciliar as múltiplas visões e facetas de um ser humano e de sua condição. E quero encontrar. Sei que encontrarei.
Felizmente, tenho apenas 35 anos e muito o que aprender – espero ter… E se eu pudesse escolher algo, uma coisa só, para aprender, seria isso: aprender a conciliar harmônica e dialogicamente as faces difíceis da realidade com seu lado ameno e belo, e não deixar que as primeiras se sobreponham à segunda. Como diz alguém que tem me orientado informalmente nessa nova vida: “Lembre-se sempre de não permitir que a violência que você estuda encubra a beleza que você vive”.
Estudar a violência, em sua vertente marcada por viés de gênero, de institucionalização do poder, de redução dos sujeitos a meios para um fim, lembra-me da frase de Nietzsche: “Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você“. Torna-se muito difícil acreditar em verdadeira comunhão e celebração de nobres valores quando se lida com o gritante desrespeito de um ser humano por outro… Tudo tende a parecer uma grande hipocrisia, uma pseudocomunhão baseada apenas em aparências, mas na verdade inexistente… Até que se consiga reajustar o próprio foco e ver que não, que o lado difícil da realidade não se sobrepõe às suas faces belas. Que é apenas mais uma, entre tantas outras. Não a única. Não a mais importante. Não a prevalente. Apenas uma. Mas para assim enxergar, é necessário o constante exercício de ajuste e reajuste de foco.
Meu pai foi alguém que me lembrava todos os dias, na gentileza com que me tratava, que a vida era mais bonita do que se mostrava – embora ele mesmo tivesse dificuldade para aceitar verdadeiramente isso. E na véspera de Páscoa, enquanto eu arrumava minha casa – na tentativa de, reorganizando o espaço externo, reorganizar o interno -, em um momento extremo de saudade, deixei tudo o que estava fazendo, fui até o jardim, sentei-me e, quando veio a vontade de chorar, foi como se eu pudesse ouvir a sua voz… E lembrei-me com perfeição de uma frase inteira que ele me disse, pouco tempo antes de partir, quando conversávamos exatamente sobre como estava sendo difícil para mim ler tantos depoimentos de violência. E ele me disse:
“Olhe além. Há beleza até nisso. Não perca o foco: o contexto é maior que o texto”.
Eu estava com certa dificuldade de lidar com a questão da Páscoa com relação à minha filha. E havia decidido que o domingo de Páscoa seria um dia de domingo como outro qualquer, sem celebrações ou outro tipo de comemoração.
“Olhe além…”
Mas então, à noite, em uma agradável conversa com queridas amigas, lembrei-me de uma coisa importante, que move meus dias e me infla de energia e motivação: os olhos brilhantes da minha filha frente à descoberta do novo.
“Não perca o foco…”
E foi durante a conversa, que decidi: no dia seguinte, domingo de Páscoa, ao acordar, Clara conheceria alguém importante. Alguém que ainda não havia sido apresentado a ela. Que é muito amigo da Maricota. Conhecido do Boi-de-Mamão. Primo irmão do Papai Noel. Ao acordar, Clara conheceria ele, essa figura bizarra que tem pelo, bota ovos e não é um ornitorrinco: o Sr. Coelho.
Então, na madrugada, após o jantar e a conversa com nossas amigas, ele nos visitou.
E com patinhas sujas de tinta preta lama, em pegadas que partiam da porta do quarto dela, descendo as escadas e indo em direção à cadeira que foi do vovô, Sr. Coelho deixou um rastro. E embaixo da cadeira, deixou uma lembrancinha improvisada com amor, tule e fita de cetim (feita pela mamãe) e um potinho de amendoins doces (feitos pela amiga).
Nesta manhã de Páscoa, ela acordou e foi para minha cama. Dormimos mais um pouco juntinhas, enquanto o pai já estava acordado. Ao acordar, depois de muitos beijos e abraços, desceu da cama e foi em direção ao corredor. Levantei-me um pouco para ver a cena. Abriu a porta. E deu um gritinho:
– PEGADAS! Mãe, tem pegadas aqui! Meu deus do céu, acho que o coelho me visitou…
Ela não sabia quem era o coelho até esta semana, quando uma senhora perguntou a ela sobre e eu precisei explicar.
Levantei-me da cama e fui acompanhando sua descoberta.
O rostinho iluminado, os olhos pequenos e puxados arregalados.
Desceu as escadas. Deu de cara com o pai:
– Pai, pegadas! Pegadas!
Muito cautelosamente, viu que as pegadas iam até a cadeira vermelha. Olhou atrás e encontrou a lembrancinha:
– Mãe, o coelho me deixou uma Páscoa! Olha mãe! Uma Páscoa! Eu também ganhei uma Páscoa!
Então eu passei aqui neste blog hoje, bem rapidinho, antes de irmos almoçar, apenas para dizer que desejo sinceramente a todos o que desejo a mim mesma. Que a gente se lembre, sempre, que “o contexto é maior que o texto”.
Se existe mesmo um espírito de Páscoa, hoje ele esteve aqui. Em forma de dois olhos arregalados e brilhantes, cabelos despenteados, de pijama e pés descalços.
Uma feliz Páscoa a quem é de Páscoa.