No mês passado, compartilhei na fan page do blog um vídeo muito especial.
Nele, Claire, uma menina de 5 anos, traduzia para a língua de sinais uma música natalina na festa de encerramento de sua escola, apenas para que seus pais, surdos, pudessem compreender o que ela cantava.
Mas não foi nada disso que escrevi quando compartilhei o vídeo por lá.
Na verdade, escrevi que Claire, filha de deficientes auditivos, havia cantando também em linguagem de sinais para que seus pais pudessem entender.
E porque a vida é uma imensa troca – e eu tenho o grande privilégio de ter pessoas muito bacanas entre meus leitores – algumas pessoas me explicaram que o correto não é “linguagem de sinais“, mas “língua de sinais“. E que pessoas surdas preferem que se refiram a elas como surdas, e não como “deficientes auditivos“.
Foi um grande aprendizado e gostei muito de participar daquele rico diálogo.
Entre as pessoas que dedicaram alguns minutos a conversar sobre o significado disso tudo estava Lucyenne Vieira-Machado.
Lucyenne contou que é filha de pai e mãe surdos. E que foi também isso que a inspirou a se tornar parte de quem é hoje: professora da Universidade Federal do Espírito Santo, lecionando no Centro de Ciências da Saúde, coordenando o Grupo de Pesquisa em Libras e Educação de Surdos e o Grupo de Estudos Surdos.
Fiquei muito emocionada com o pouco que ela compartilhou com a gente por lá. E então a convidei a compartilhar um pouco de sua vida não como mãe, mas como filha. Ela aceitou e logo me enviou seu texto. Um texto absolutamente rico, poético e emocionante, que tenho a alegria de compartilhar com todos agora.
Lucyenne, estou muito grata por tê-la aqui. Quero agradecer por seu carinho em me ensinar um pouco mais sobre o assunto e por ter dedicado algum tempo da sua vida a compartilhar com todos nós sua história. Uma história tão especial, narrada de maneira tão sensível.

Ser filha de surdos
Por Lucyenne Matos da Costa Vieira-Machado

Lucyenne e seus pais

Pensar em quem sou? 

Pergunta que me faço constantemente… 
Sou filha de pai e mãe surdos e isso me define imensamente. Define meu modo de pensar, meu modo de agir, meu modo de ver o mundo, de significar esse mesmo mundo… Minhas escolhas, minhas decisões. Minha profissão, minha carreira, minha maternidade… Ser filha de surdos é uma das coisas que me define, mas posso afirmar que é uma das mais sérias e profundas.
Cresci num lar bilíngue e bicultural. Cresci em meio a duas línguas: Língua Portuguesa e Língua de Sinais. Ambas fizeram parte do meu repertório linguístico. Quando uma palavra numa língua me faltava, a outra me supria. Sonhava e sonho com as duas línguas, conversava e converso com as duas línguas. Esse foi o maior legado que recebi dos meus pais surdos e tento passar para meu filho que é ouvinte e tem os avós surdos como referência.

Sim, meus pais são surdos (e não deficientes auditivos). Surdos na perspectiva cultural, parte de uma nação surda, de uma cultura surda, de um jeito de ser surdo. E nada preocupados em como definir o tipo ou qual perda auditiva. Isso nem nos passa.
O que nos passa é que nos comunicamos em Língua de Sinais e isso define nosso modo de ver, sentir e significar o mundo.
Quero trazer para refletir neste texto, que considero o primeiro, duas personagens da literatura infanto-juvenil: Alice e Dorothy.

Alice, de “Alice no País das Maravilhas”, é curiosa e impetuosa, insatisfeita com o conhecimento que a cerca. Entra na toca do coelho sem pestanejar só porque é interessante. E assim que se vê no País das Maravilhas, vai descobrindo esse novo mundo por meio das personagens, e consequentemente se descobrindo o tempo todo. Alice tem pressa… Alice não tem paciência porque parece que consegue perceber quando uma conversa dá caldo ou não. E se não, parte para outra imediatamente.
Dorothy, de “O Mágico de Oz”, é estável e foca
da. Caminha na estrada de tijolos amarelos com seus sapatinhos de rubi (ou de prata, como no original) agregando pessoas com diferentes objetivos que caminham ao seu lado em busca do Maravilhoso Mágico de Oz.

O que ambas têm em comum é a necessidade de voltar para casa. Enquanto Alice faz de sua estada conturbada no País das Maravilhas um retorno ao lar, Dorothy sempre procura na Terra de Oz, pela estrada de tijolos amarelos, seu objetivo de voltar para casa e não permite que ninguém a tire do foco. Mesmo agregando pessoas a sua caminhada, os convence a caminhar consigo, não permitindo que a distraiam.

As duas, a meu ver, representam um pouco do que sou como filha de surdos. Não sei se posso afirmar que TODOS os filhos de surdos são assim, porque experiência é aquilo que nos passa, e não o que se passa (Larosa, 2004).

Mas o que é voltar para casa? Para mim, filha de surdos é algo que sempre me perguntei: onde é meu lar?

Não a casa física, mas aquele lugar em que você encontra seus pares. Sempre achei que tinha meu espaço no mundo dos surdos, pois como filha de surdos sempre quis ser uma surda. Não ser surda me entristecia, já que o modelo de meus pais era forte o suficiente para me dizer o quanto era legal ser surdo, mas eu não era. Não era como minha mãe, nem como meu pai. Era como minha avó, meus tios. Então onde era meu lar?

Minha avó, linda como sempre, deixava as portas abertas com os biscoitos e o chá na porta para que sempre eu pudesse adentrar quando quisesse (o Chapeleiro e a Lebre de Março?). Já minha mãe, com sua casa simples no cinzento Kansas, me deixava claro que ali na fazenda era o meu lar, o lar que me acolheu (lembrando que Dorothy morava com os tios e não com seus pais). Então, “onde era meu lar?”, perguntava eu sempre curiosa (como Alice), mas ao mesmo tempo sempre resignada (como Dorothy).
Ao viver sempre nesse “entre-lugar” aprendi a conviver com as diferenças de ambas as casas: dos

meus pais e dos meus avós, Inglaterra/País das Maravilhas e Kansas/Terra de Oz, as coisas boas e as coisas ruins.


Pra finalizar esse texto, quero contar como via meus pais que exerceram tão bem seu papel. 
Esse trecho eu tirei do meu livro: “Os surdos, os ouvintes e a escola: traduções, narrativas e histórias capixabas” (VIEIRA-MACHADO, L. M. da C. Os surdos, os ouvintes e a escola: traduções, narrativas e histórias capixabas. Vitória: Edufes, 2010), onde conto um pouco da pesquisa que fiz no mestrado que é a história que os surdos contam sobre a escola e consequentemente da minha trajetória como filha de surdos e pesquisadora, pois esse lugar justifica minhas escolhas teóricas e filosóficas.

“O fato de ser filha de surdos já me rendeu muitas histórias. Era a menininha do grupo de surdos. Era aquela ouvinte que sabia sinais. Era aquela que podia interpretar também, já que saber língua de sinais e ser ouvinte era ser uma “ouvinte – quase – surda”, que poderia ser surda ou ouvinte!
Ir às festas da escola oralista (acho que ia desde os 2 ou 3 anos de idade) era a oportunidade perfeita para as demonstrações públicas da inteligência desta “ouvinte – quase – surda”: “Olha, tão pequena e como sabe sinais! E vocês, já velhas, não sabem nada de sinais. Como pode?”. Era essa a fala de meu pai, orgulhoso da sua pequena quase surda, mas também ouvinte. 
O que era ser surdo para mim? Demorei a compreender essa palavra. Era normal ser surdo. E o que era ser ouvinte? Não percebia a diferença entre esses dois mundos.
 Se bem me recordo, numa visita à escola, me vem uma pergunta incômoda: “Por que você fala em sinais com seu pai? Ele sabe falar”. Puxa, eu estava lá conversando tranquilamente com meu pai em sinais, quando a professora me indagou. Eu respondi na “inocência” dos meus sete anos: “Mas por que você não conversa em sinais com
meu pai? Ele fala tudo errado e tão mal…”
Eu falava muitas palavras erradas na escola. Eu não sabia que meu pai falava errado.
Mas depois fui percebendo que não poderia repetir o que ele falava. Meus coleguinhas riam de mim. E aí? Perguntei a minha avó: “Vó, por que papai fala errado? Os meninos riem de mim”. E ela me respondeu: “Porque ele é surdo-mudo[1]minha filha, os surdos-mudos não sabem falar certo”.
O que era “surdo-mudo”? Quem era meu pai? Quem era minha mãe? Meus tios? A minha babá? Eram aqueles que não falavam certo? Será que eu era “surda-muda”? Já que meu pai e minha mãe eram… “Acho que não”, pensei. “Eu falo certo”. Claro que percebia a diferença dos meus pais. Mas não sabia que essa diferença era tema de tantas discussões. O que era isso? Compreendi melhor, quando percebi que não poderia falar como meu pai falava. Vovó, então, passou a ser aquela que decifrava as palavras de papai:
 – Vó, que palavra é essa?
– Que palavra?
– Essa, com este sinal… eu sei que papai fala errado. Então, como é o certo?
– Fala como ele, fala que vou decifrar para você.
 E assim eram todos os dias. Percebi, então, o que era o “surdo-mudo” e que eu não era “surda-muda” e que o “surdo-mudo” falava errado e precisava que falássemos por ele para decifrar suas palavras erradas. Eu, na verdade, era aquela que ouvia, aquela que traduzia, aquela que decifrava, aquela que transmitia. Eu era o orgulho do meu pai, por ter uma intérprete própria, sem precisar de pegar os filhos de seus amigos para interpretar. O orgulho do meu pai, segundo ele, por ter uma filha faladeira nas duas línguas e que sabia exatamente tudo o que eles conversavam. […]
Então os surdos são surdos e ouvintes são ouvintes. Descobri que os ouvintes eram maus, de acordo com a fala do meu tio. “Eles mandam na gente e nos discriminam.Pensam que nós somos burros. Não podemos aceitar!”.
[…] eu prestava muita atenção às falas indignadas recorrentes.
Lembro-me bem delas: “Os professores batem nas mãos”, “Eles obrigam a falar”, “Inimigos dos sinais” etc. E eu perguntava aos meus pais: “Mas como bate nas mãos? É errado… Pai, por que não pode usar sinais?”
“Claro que pode usar os sinais. Eu sei que é errado o que os ouvintes falam. Eles dizem que os sinais são dos macacos. Mas não são dos macacos. São dos surdos. Por um acaso, os surdos são macacos?” 
Claro que surdos não são macacos. Nem surdos-mudos, nem mudinhos. Claro que sinais não são dos macacos. São dos surdos. E meus também, que sou filha de surdos, e de todos que os aprenderem, mesmo que não sejam filhos de surdos. Mas parecia
quase impossível. Não era, como outrora pensara, uma ouvinte que decifrava o que o “surdo-mudo” falava “errado”, mas aquela que participava das lutas e que entendia que, quando o surdo fala em Libras, ele fala “certo”. Agora, ouvintes aprenderem sinais?
Nunca vislumbramos momentos como os que vivemos hoje. Nunca imaginamos, naquela época, que teríamos uma lei! Mas nunca desanimamos. Eles, com suas falas reclamantes, e eu como intérprete. E ainda pensava: Impossível isso ser certo. Não podia ser certo bater nas mãos dos surdos. Não podia ser certo obrigar alguém a ser o que não é. Não podia. (VIEIRA-MACHADO, 2010, p. 20-23)

Termino assim esse texto. 
São muitas coisas pra contar e por isso não dá pra encerrar. Compartilho várias dessas histórias com outros filhos de surdos. Nos encontramos constantemente para conversar sobre nossas histórias, nossas vidas. Como disse uma grande parceira de histórias de vida como filhas de surdos: somos uma geração única. Nossos filhos não são filhos de surdos. Somos ligados por nossas vidas, histórias e paixões: a Língua de Sinais e nossos pais que nos deram essa identidade e esse nosso lar… essa nossa vida tão diferente, tão peculiar, tão multicultural.

 Este termo surdo-mudo utilizado aqui é, na verdade, em referência à história que está sendo contada.
Utilizo o termo surdo em todo o trabalho como referência às pessoas surdas

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