Uma das principais angústias vividas por mães, pais e educadores neste momento em que atravessamos a pandemia de COVID-19 tem sido o sobreuso de dispositivos eletrônicos com acesso à internet por parte das crianças. Como cientista, orientadora e mentora de mulheres, especialmente de mães, são incontáveis as vezes em que me pedem orientações sobre como lidar com essa questão junto às crianças. Como ajudar a criança a bem administrar o tempo de uso? Como fazer a curadoria de conteúdo sem privar a criança da interação com seus amigos considerando que, para muitas, essa é a principal ou a única ferramenta de interação no momento? Como organizar o tempo, quanto tempo é o ideal, quais instrumentos temos à disposição para nos ajudar nesta tarefa inglória? Qual a melhor forma de construir acordos neste sentido? E tantas outras dúvidas.
Como mãe e pesquisadora em Saúde Coletiva, assim que percebi que o uso das telas pelas crianças aumentaria consideravelmente e que permaneceríamos assim por bastante tempo, fui estudar para bem orientar não apenas as mulheres que atendo, mas, também, minha própria filha. E fui estudar tudo: do impacto da exposição excessiva à neurobiologia das crianças, até estratégias de redução de danos e aplicativos de controle. Todos os livros, guias e orientações que tínhamos disponíveis com relação à temática se mostraram insuficientes frente à obrigatoriedade do uso imposta pela pandemia. De repente, vimos as telas se transformarem no único recurso para que crianças e jovens pudessem manter laços afetivos com quem amam. Não daria simplesmente para fazer como antes. Seria necessária uma grande dose adicional de inteligência emocional, diálogo e informação.
O que poucos perceberam de imediato é que havia algo muito mais importante do que apenas controlar o tempo de uso: manter as crianças seguras frente à existência de pedófilos que usam os jogos online e os comunicadores instantâneos para assediar as crianças.
Houve uma explosão no número de denúncias de abuso sexual infantil online em todo o mundo. Inúmeras ONGs e entidades voltadas à proteção das crianças estão emitindo alertas para que famílias estejam ainda mais atentas: das plataformas de videogames ao Whatsapp, pedófilos trancados em casa estão aproveitando este momento para assediar meninas e meninos, favorecidos também pela sobrecarga de trabalho das famílias, que tentam administrar trabalho, ensino online, casa, alimentação e não conseguem destinar atenção suficiente.
E se eu não estivesse alerta, teria acontecido com minha filha.
Alguns meses após o fechamento das escolas, e consciente de que iríamos assim por mais de um ano, comprei um tablet para que ela pudesse assistir às aulas e conversar com amigos e familiares. Ela tinha recém completado 10 anos, a idade que acordamos para que pudesse ter seu próprio dispositivo. Antes, conversamos muito e estabelecemos diversos acordos: tempo máximo, sites permitidos, sites perigosos, a importância de conversar sempre comigo em caso de dúvida, quais eram os sinais de alerta, não aceitar conversar com estranhos sob nenhum pretexto, não usar fotos em perfil de Whatsapp, não compartilhar informações pessoais, instalar aplicativo de controle de idade, entre tantos outros instrumentos. Todos os nossos acordos foram deixados em local visível e de fácil acesso, para que pudéssemos sempre consultar. O foco do uso seria: conversar com amigas e amigos próximos, com a família, assistir às aulas, fazer pesquisas, jogar aquilo que acordamos como seguro. E assim ela seguiu por quase um ano, sem ocorrências graves e comigo sempre vigilante.
Até que nesta última semana, pedi seu tablet emprestado para fazer um teste de outra coisa. Ela me emprestou e me ajudou a fazer o que eu precisava. Quando, surpreendentemente, uma notificação pulou na parte superior da tela. Era uma notificação de Whatsapp, com o remetente salvo como “MENINA”. Quando se é próximo das crianças, quando incentivamos o diálogo e valorizamos as relações construídas com base no respeito e na gentileza, é muito fácil perceber a mudança de comportamento. Assim que pulou a notificação, eu a senti tensa. Perguntei quem era e ela me deu uma resposta evasiva. Insisti. Ela respondeu: “Ai, mãe… Desculpa… É uma amiga da Mariana (nome fictício)… Ela estava passando por dificuldades e a Mariana achou que eu poderia ajudar… Eu não a conheço, sei que não deveria ter adicionado, desculpa”.
Perguntei a ela se poderia abrir a mensagem para ler o conteúdo e ela autorizou. Era uma conversa iniciada no dia anterior, ou seja, muito recente, para meu alívio. Na foto do perfil, a vocalista de uma banda muito popular entre crianças da idade dela (10 anos). Como ela sequer sabia o nome de quem estava ali, salvou apenas como “Menina”.
Em pouco tempo de leitura percebi: não se tratava de uma criança. São 11 anos estudando a violência contra a mulher e a criança, há muitas nuances que não passam despercebidas por mim de forma alguma. Assim que li, precisei respirar fundo muitas vezes e me acalmar para, antes de qualquer coisa, conversar com minha filha. E então disse que era exatamente por isso que tínhamos feito nossos acordos, para que ela não estivesse em risco como estava naquele momento. Mostrei que aquelas frases não eram de criança, que era um comportamento altamente reprovável e especialmente, que ela jamais deveria ter conversado com alguém que não sabia quem era e que isso violava nossos acordos. Ela concordou do início ao fim, não tentou se justificar, apenas se desculpou repetidas vezes. Eu disse que ela não precisava se desculpar, que o que precisava era não se colocar mais em risco assim porque, desta vez, eu havia conseguido pegar e defendê-la, mas que não conseguiria fazer isso sempre. Ela ficou muito chateada por ter desrespeitado o acordo e entendeu claramente o risco que correu. Abri com ela algumas matérias na internet, mostrei que é algo muito comum e que eles são perspicazes. No caso dela, seu ponto de vulnerabilidade foi justamente a empatia: ela vê a mãe acolher mulheres todos os dias; assim que soube que havia uma criança supostamente em risco, se dispôs a ajudar. Orientei para que, numa próxima vez, me procurasse para pedir aconselhamento sobre como ajudar uma criança, que nunca poderia fazer isso sozinha.
Tendo entendido tudo, solicitei a ajuda dela para tentar proteger as outras meninas. Então apaguei a minha própria foto do Whatsapp, meu nome e outros dados disponíveis, salvei aquele número no meu celular e enviei uma mensagem me passando por uma criança, a mesma mensagem que minha filha havia enviado: “Oi, sou amiga da Mariana, ela disse que você está precisando de ajuda, tá tudo bem?”. Minha filha me ajudou a digitar, para garantir que a linguagem não parecesse a de uma pessoa adulta. Imediatamente ele me respondeu. Disse que não estava bem e perguntou se eu tinha outras amiguinhas para apresentar. Eu disse que sim, que tinha. Então me perguntou se eu não tinha fotos minhas para mandar. Eu disse que tinha, mas que estava preocupada, perguntei se podia ajudar, ele respondeu que eu ajudaria passando outros contatos de outras amiguinhas e as fotos. Então telefonei. E, obviamente, a pessoa recusou a chamada. Então mandei uma mensagem dizendo que eu era uma mulher adulta, mãe de uma das crianças que ele havia assediado, que estava entrando em contato com as demais meninas naquele mesmo momento para avisá-las e que, na sequência, registraria um boletim de ocorrência na Polícia Civil e que nós chegaríamos até ele. Em poucos segundos, fui bloqueada.
Foi difícil manter a calma e o sangue frio com o perigo bem à nossa frente. Expliquei muito bem a ela o que tinha acontecido, ela entendeu. Conversei com Mariana, expliquei a gravidade do que tinha acontecido e seguimos alertando as outras meninas e suas famílias. Liguei para a Polícia Civil, pedi as orientações para me certificar de que era aquilo mesmo e, sim, era. Registrei o Boletim de Ocorrência online com todos os dados que consegui coletar.
Não sei o que acontecerá a partir disso. Sabemos que, provavelmente, nada de muito especial. Porém, é desse enfrentamento que precisamos, especialmente na frente das crianças. Elas precisam nos ver fazer isso, no lugar de serem ameaçadas porque fizeram algo errado. Ela ficou muito sensibilizada ao me ver confrontando o violador, dialogando com sua amiga, registrando a queixa. Entendeu que é dever dela manter os acordos para, além de não se colocar em risco, também ajudar a proteger as demais crianças. Como ela vive em dois lares, aproveitei para conversar pessoalmente com o pai dela, que também se colocou alerta.
Não se trata de desenvolvermos comportamentos paranoicos que mais atrapalham que ajudam. Trata-se de estarmos atentas, vigilantes, dialogarmos abertamente com as crianças, colocarmo-nos como parceiras ao lado delas, estabelecermos acordos que elas possam entender que são seguros para elas e agir de maneira assertiva.
Se isso acontecer na sua família, primeiro: tenha calma. Não aja de maneira que, numa próxima vez, a criança tenha medo de te contar. Deixe as portas da confiança sempre abertas. Coloque-se incondicionalmente ao lado dela. Avise as pessoas próximas, outras crianças, outras famílias. Não basta protegermos nossas filhas e filhos. É preciso tentar proteger todas as crianças.
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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.