Não sei se já havia ficado tantos dias sem postar nesse blog: mais de uma semana. Tanto pela grande demanda de tarefas quanto por grande número de descobertas, processamentos, reflexões e vivências. Uma semana bastante conturbada – mental e emocionalmente – e que de santa teve bem pouco.
Estou cursando três disciplinas que selecionei a dedo. Tenho uma imensa quantidade de créditos a cumprir e estou escolhendo, primeiro, as que podem contribuir imediatamente para minha pesquisa. Assim, estou cursando Bioética, Violência em Saúde e Metodologia de Pesquisa Qualitativa 2. A quantidade de material pra ler é algo tsunâmico que, felizmente, estou conseguindo administrar com um bom planejamento das madrugadas.
Coisas muito profundas e instigantes, que me estimulam mais a cada dia.
As aulas de Bioética têm acontecido formalmente às terças-feiras, mas tem estado nos meus pensamentos nos demais dias da semana. Tenho estado muito interessada no tema e não tenho conseguido – e nem tenho interesse em conseguir – deixar de pensar no assunto.
Assuntos fundamentais como: o que é ética? O que é moral? O que é bioética?
Foi na tentativa de explicar isso com os conceitos de que dispunha, e no aprendizado do que realmente é, que muitas reflexões me acabaram surgindo.
De repente, percebo como minha vida é simples, como ela é mediana, como ela é – de certa forma – corriqueira, tranquila, relativamente fácil, ainda que eu tenha – como todos – alguns pequenos desafios a vencer na normalidade do meu cotidiano. Sim, pequena. Sim, relativamente fácil. E é muito provável que a sua também seja. Quando levamos em consideração alguns sérios conflitos e situações vividos por outras pessoas, esses sim muito complexos, isso se torna ainda mais verdadeiro.
De repente, percebo como todos nós – ou quase – tendemos a interpretar as coisas a partir de nossa limitada opinião. Limitada. Limitadíssima. Ainda que tantos se considerem grandes conhecedores de tanta coisa (esses podem ser os mais limitados porque, como dizia o Millôr, “Saber cada vez mais sobre cada vez menos até se saber tudo sobre nada“)… E, ainda que tenhamos essa limitada visão das coisas, temos a arrogância, a insensatez e o disparate de sair por aí emitindo opinião e julgando as decisões alheias. Principalmente aquelas que se situam no limite entre a racionalidade e a emocionalidade, aquelas que fogem do rotineiro, do que é mais frequentemente visto, aquilo que é considerado extremo, polêmico, delicado.
Já parou pra perceber que o maior número de opiniões emitidas e manifestações individuais se dá justamente sobre assuntos limítrofes, sobre assuntos polêmicos? Faça o teste: poste por aí alguma notícia sobre a importância da leitura e observe quantos se manifestam. Depois, poste algo sobre ABORTO. Ou sobre  EUTANÁSIA. Ou qualquer coisa que envolva conflitos de diferentes naturezas. Os egos se inflamam, o número de pessoas com sólidas opiniões sobre o assunto aumenta e começa a luta. Luta, geralmente, entre o que sabe pouco e o que sabe menos ainda, com raras exceções. Luta que se dá, com grande frequência, desconsiderando a questão ética, que deveria ser norteadora.
Quando falamos sobre ética, falamos obrigatoriamente sobre refletir com clareza sobre um assunto; com profundidade; saindo da superficialidade que nos permite chegar a conclusões equivocadas e distorcidas; analisando as coisas considerando todos os seus elementos, não aqueles que selecionamos porque nos são interessantes, já que vêm ao encontro dos nossos interesses. Analisar eticamente um assunto envolve abrangência e profundidade mas, principalmente, a disposição de rever seus próprios caminhos, sua própria prática. E quem está disposto a mudar de padrão de comportamento e de opinião sobre algo?
Ética: uma forma de reflexão que reconduz a prática, que transforma a realidade, que transforma o olhar. É poder tornar estranho aquilo que se tornou natural. É poder enxergar a banalização com tal estranhamento que você consiga pensar que não deveria ser assim. Leva, obrigatoriamente, à recondução de valores e à modificação deles. E é uma construção pra sempre. É a grande herança a ser deixada – anotação que fui fazendo em aula a partir do que debatíamos em grupo.
Andar de maneira ética por um caminho significa olhar o caminho, estranhá-lo, criticá-lo, entender sua razão, com profundidade. E se perguntar: qual a razão disso? Por que está acontecendo? Problematizando. Mas quem quer problematizar, hoje em dia? Dá trabalho, cansa e exige preparo – mental e emocional. É muito mais fácil parar de pensar e ir ali fazer uma fofoquinha ou falar sobre uma banalidade qualquer.
E moral? O que é moral? Difícil de definir… Tente fazer a sua própria definição e experimente a dificuldade disso.
Moral: conjunto de valores que geram normas que são consideradas corretas por uma sociedade. Muda a sociedade, muda a moralidade dela. O que é imoral aqui, não o é em outro lugar, e vice-versa. Os valores não são questionados, há imposição de valores e há castigo para quem vai contra esses valores do grupo – ainda que não sejam os seus próprios.
Qual sua opinião sobre o aborto? E qual sua opinião sobre a descriminalização do aborto?
Qual sua opinião sobre o suicídio? E qual sua opinião sobre eutanásia?
Qual sua opinião sobre as cacotanásias? Pra responder isso, você tem que saber que cacotanásia é aquela morte que ocorre como efeito colateral de algo. Por exemplo: morrer de fome (efeito colateral de más políticas públicas); morrer de acidente de trânsito (efeito colateral de irresponsabilidade, e/ou falta de programas educativos; e/ou um monte de outras coisas); morrer de malária (efeito colateral de não se ter pesquisa em quantidade relevante sobre isso, ou de políticas públicas, e mais um tanto de coisa) e tantos outros exemplos. Cacotanásias: más mortes. E aí, qual sua opinião sobre isso?
Se você conseguiu dar uma resposta imediata e monossilábica a essas perguntas, é muito provável que não esteja sendo muito ético, considerando o que foi dito sobre ética ali em cima. O que significa dizer que, ainda que nos consideremos certos ou éticos em algumas situações, podemos estar sendo, apenas, moralistas. Duas coisas diferentes, embora interligadas.
Todo mundo que tem filho pequeno sabe como é difícil conseguir assistir a um filme inteiro quando eles são muito bebezinhos. Passei meses sem conseguir assistir um, ou porque ela precisava dos meus cuidados no meio do filme ou porque eu morria de sono e precisava aproveitar o pouco tempo disponível pra dormir e me recuperar. Aqui em casa essa fase felizmente passou e estou feliz por estar recuperando um pouco dos meus hábitos cinéfilos.
Então para a Páscoa, aceitei a sugestão dos meus colegas da disciplina de Bioética e peguei “Você não conhece Jack“. Estrelado por Al Pacino, John Goodman e Susan Sarandon, esse filme (bárbaro) conta a história verídica de Jack Kevorkian, um médico norte-americano que dedicou sua vida à luta pela legalização da eutanásia, tendo auxiliado mais de 130 pacientes terminais a morrerem. Um filme pra se assistir pronto a ter diferentes emoções despertadas e disposto a pensar bastante sobre o assunto, sem pré-julgamentos ou certezas absolutas, seja pra qual lado elas estiverem direcionadas.
Como o feriado é prolongado, aproveitei pra pegar mais um.
Sou apaixonada pelo argentino Ricardo Darin. Perguntei na locadora: “O que tem aí do Darin?”. Ela foi falando os títulos e vi que não tinha assistido dois ainda. Então escolhi um deles, “XXY“, sem ler a sinopse. Assisti e me espantei com a sincronicidade. O filme: a adolescente Alex, tendo nascida intersexo, foi criada em uma pequena cidade litorânea por seus pais, que optaram por esperar que ela crescesse para que, ela própria, pudesse decidir o que gostaria de fazer quanto à sua condição. Os pais rejeitaram as recomendações médicas de inúmeras cirurgias e se mudaram de Buenos Aires para uma cidade litorânea pacata para que o direito de escolha da filha fosse respeitado.
Um filme excelente sobre o respeito incondicional à decisão de um ser humano. Sobre diferentes formas de se construir, ou destruir, a autoestima e a autoconfiança de um filho. Sobre formas de se criar um ser humano frágil ou forte. Um filme que trabalha a questão do respeito às escolhas, os padrões de discriminação, de “pré-conceitos” e de pré-julgamentos que são feitos a todo instante sobre questões tão sérias, tão delicadas, tão limítrofes. Filme que recomendo a todos os pais. Principalmente àqueles mais preconceituosos e presos a tabus e moralismos. Filmaço.
É desse filme, também, que tirei os seguintes trechos:

– E se eu me enganei? (pergunta o pai, se referindo à possibilidade de ter se engando sobre ter esperado que a filha crescesse para que ela mesma fizesse suas escolhas)
– Por deixá-la escolher? (responde o rapaz também intersexo que, criado como mulher até os 16 anos, escolheu seguir sua vida como homem após essa idade). Sabe quais foram minhas primeiras lembranças? Exames médicos. Eu achava que tinha nascido horrível, pois tiveram de me operar 5 vezes antes de completar 1 ano. É o que eles chamam de “normalização”. Não são cirurgias, é uma castração. Se ela tivesse sido operada, teria ficado com medo de seu corpo. É o pior que se pode fazer com um filho.

E,

– Desconfiaram antes dela nascer. Queriam uma autorização para filmar o parto, por “interesses médicos” e pra informar ao conselho de ética. Dissemos não para tudo. Alex nasceu azul. Demorou 40 segundos pra respirar. Dois dias depois queriam operá-la. Disseram que não se lembraria de nada, só das cicatrizes. Suli (a mãe) estava assustada. Eu a convenci pra não fazer nada. Ela era perfeita. Desde o primeiro momento em que a vi. Perfeita.

Foi o debate, ocorrido nas muitas horas de aula que tenho tido semanalmente, sobre assuntos tão delicados como esses últimos, que me levou a considerar a minha vida – e a da grande maioria das pessoas – como sendo simples, mediana, tranquila e relativamente fácil. Quem de nós vive ou viveu o dilema da eutanásia? Quem de nós vive ou viveu o dilema do aborto? Quem de nós vive ou viveu o conflito de tantas situações limítrofes? Poucos. Embora tantos se considerem no direito de julgar e decidir por quem realmente vive essas situações. Quantas pessoas sentindo-se preparadas para julgar, impregnadas de moralismo, assuntos sérios como esses… Enquanto tantos outros assuntos, menos extremos e muito mais corriqueiros, relacionados à ética e bioética, passam por nós como transeuntes numa rua e os tratamos como se não existissem…
Estamos na Páscoa.
Momento de refletir sobre julgamentos e crucificações. Sobre preconceitos e totalitarismos. Sobre renovação e renascimento. Não apenas de Cristo – pra quem é Cristão – mas de nós mesmos. Momento de refletir sobre como temos nos portado diante de situações que envolvem uma postura ética, não superficialista e reflexiva. Sobre o que tem tido realmente valor para nós: fazer parte de um contexto maior, de maneira atuante, em prol não somente do nosso umbigo e fazendo com que outros também sejam beneficiados por nossa ação, ou permanecer preso na superficialidade do cotidiano, trocando o importante pelo fácil, o relevante pelo banal, o diálogo pelo mexerico e a compreensão pelo julgamento.

Todo mundo é livre para fazer suas escolhas. Mas no caso de se escolher a última opção, não há muito sentido em se comemorar a Páscoa. É, inclusive, mais barato comprar 300 gramas de chocolate em barra do que a mesma quantidade de chocolate em forma de ovo…
Feliz Páscoa!
No sentido de: feliz reflexão sobre sua prática e ação no mundo, à luz do que essa data realmente significa, para além dos ovos de chocolate que coelho nenhum põe.

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