*Este texto é uma resposta e um contraponto fundamental ao texto "Quando as crianças saírem de férias", de Alberto Villas, publicado em Carta Capital em julho de 2016
Tenho certeza absoluta de que em momento algum jamais passou pela cabeça das mães de antigamente reclamar em público. Deixar todos saberem que aqueles dias de férias significavam, na verdade, o dobro do trabalho que ela tinha no dia a dia. O dobro de comida para fazer, de roupas para lavar, de sujeira para limpar. Significava, também, a falta completa de tempo para ela mesma. Aqueles vinte minutos roubados no sofá sem que ninguém estivesse olhando para julgar (“mas você não tem o que fazer?”) porque sempre teria alguém dentro de casa para lhe pedir comida, remédio ou solicitando uma das suas habilidades maternas.
Sabe, quando o primeiro dia de férias chegava, as mães de antigamente recolhiam os uniformes dos armários e providenciavam que estivessem limpos ao fim daquelas semanas de ócio porque era o que se esperava delas. Ou melhor, o que se exigia. Se os filhos fossem para a escola de uniforme sujo, ou amassado, ou rasgado, era sobre elas que recairia a culpa. E elas deveriam preferir pagar a lavanderia e garantir que as crianças chegassem impecáveis a arriscar comentários maldosos sobre como elas lidavam com roupas tão importantes para a família.
Quando vejo nos telejornais mil dicas de como distrair os filhos quando as férias chegam, percebo que não teria coragem de deixar os meus filhos curtirem férias como eu curti: soltos na rua, sem telefone, confiando no “vou ali brincar com as vizinhas e volto já”. Vejo que os tempos mudaram e brincar no quintal hoje é privilégio de poucos – com segurança mesmo só daqueles que moram em condomínios fechados ou talvez em casas com aquelas grandes cercas elétricas que deixam o que está dentro seguro e o que está fora, inalcançável.
As mães de hoje, libertas do sistema de patriarcado que oprimia as mães de ontem, reclamam. Deixam claro que não está tudo bem a quantidade de carga que recai sobre elas na criação dos filhos, nas responsabilidades da casa. Têm, muitas vezes, seu tempo dividido entre o emprego que quase nunca dá férias junto com as férias escolares e as tarefas maternas. Quando têm sorte, contam com um pai ativo ou um companheiro ou companheira presente, que divide não só o trabalho e as contas mas a criação e os cuidados com as crianças. Então sim, descabelamo-nos em busca não de distração, mas de possibilidades de oferecê-las em segurança aos nossos filhos que já não podem mais correr nas ruas como nós corríamos, como corriam nossos pais. Além disso, quem vai cuidar dos filhos enquanto nós mesmas não estamos de férias?
O dia das mães de antigamente deveria começar cedo. Assim como começa o meu. Antes das crias acordarem, o café da manhã – mesmo que seja aquele pão com manteiga – já tinha que estar na mesa. Enquanto as crianças brincavam no quintal, ela provavelmente estava dentro de casa num ritmo non stop de arrumar-limpar-guardar-cozinhar tudo antes que desse a hora de chamar os cinco filhos para o jantar. Porque se eu, que tenho apenas dois, sei que com criança em casa tudo fica mais demorado e difícil de fazer, imagine quem tem três, quatro ou mais. A mãe de antigamente fazia tudo o que eu faço, vezes 3, pelo menos. A diferença é que ninguém notava, ningém percebia. As coisas só estavam lá, prontas. Como o jantar quando ela gritava “está na mesa!”.
Barriga cheia e enquanto as crianças voltavam para o quintal, era hora de lavar a louça. Preparar a roupa para lavar, planejar o almoço do dia seguinte, organizar a casa para a hora de dormir. Não, não era só ficar olhando os filhos brincarem. Embaixo daquela janela que dava pro quintal sempre tinha uma pia cheia de louça. E abaixo daquele rosto sorridente que se via na janela, mãos inquietas lavando, cortando, cozinhando, cuidando.
Se você acha que nenhuma preocupação passava na cabeça das mães de antes é porque você não conhece direito uma mãe. E, talvez, porque o mundo de antes era tão diferente do de hoje. Mais seguro, menos perigoso.
Há tantos problemas em se comparar a infância de décadas atrás com a de hoje. Volte cinco casas e perceba: quem eram essas mães de ontem? Por que elas estavam sempre em casa? Se trabalhavam, que tempo tinham de cuidar da casa e dos afazeres domésticos? E, mais fundamental, elas eram todas mães solo? Onde estavam (e, honestamente, ainda estão) os pais?
É sintomático ver um homem estereotipando mães de qualquer época que seja, e romantizado a maternidade como se nada mais fosse necessário analisar além das horas de brincadeiras gastas no quintal de casa. As mães de décadas atrás estavam presas neste sistema machista e patriarcal, recolhidas às suas obrigações femininas de cuidadoras e empregadas domésticas. Muitas vezes, até mesmo a maternidade tinha lhes sido imposta. E elas não viam saída.
Chamar as mães de hoje de “descabeladas” demonstra tamanha falta de empatia e conhecimento sobre o que é ser mãe nos dias de sempre. E, ora, que mães são essas que têm tanto dinheiro para Hopi Hari, Mc Donalds e afins em todos os dias de férias escolares? Devem receber pensões justas e pagas em dia para os filhos. E estou assumindo que são separadas porque, afinal, se casadas fossem, alguém teria, em algum momento, mencionado ali aquele ser que tem METADE dos genes de um filho: o mitológico pai. Não, pera.
Faça um favor ao mundo, não romantize a maternidade. Não descontextualize social e economicamente o período em que sua mãe e tantas outras como ela exerceram a maternidade. Não crie estereótipos de maternagem baseados em uma realidade que sequer atinge 50% das mães brasileiras. E lembre-se de que por trás de toda mãe “descabelada” há um pai ausente e um sistema social injusto com ela.
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