Quando meu corpo me provou que podia: meu relato de VBAC.

Uma história de quanto a qualidade da assistência obstétrica importa.

 

 

Quando estava na primeira gravidez, como a maioria esmagadora das mulheres brasileiras, eu queria parir. Li, me informei, busquei ajuda. Mas enfrentei o pior inimigo de uma gestante: um diagnóstico de uma má formação fetal. Meu filho nasceria com fissura lábio palatina – uma má formação crânio-facial que atinge 1 a cada 650 nascimentos no mundo. Precisaria de cuidados especiais para mamar e se alimentar nos primeiros anos de vida. Uma cirurgia já nos primeiros três meses. Um baque emocional que minou minha confiança em qualquer circunstância de parto, embora a gravidez fosse saudável e sem nenhum indicativo de nascimento cirúrgico.

 

Na semana 38 ela, a GO, me olhou e soltou o “e aí, vamos marcar?”. Lembro que senti tanta indignação pela pergunta, mas me sentia tão desamparada e insegura que não tive coragem de mudar de médica. Hoje penso que naquele dia eu deveria ter virado as costas e nunca mais ter voltado.

 

Seguimos até a semana 40. A ansiedade era tanta que eu acordava no meio da noite sentindo contrações, e percebia que era sonho. Àquela altura, como a maioria das grávidas que chegam às 40 semanas, eu achava que nunca ia entrar em trabalho de parto. E eu estava certa.

 

Numa contagem de semanas que eu não sei como foi, no calendário da GO eu estava de 41 semanas. To-da-se-ma-na eu fazia uma ultrassom. Meu filho tinha tido déficit de crescimento no primeiro trimestre (porque só descobri a gravidez na semana 12) e eles queriam ter certeza de que o moleque continuava crescendo. Hoje eu sei, exames inúteis, ele já tinha alcancado o percentil desde a semana 23 e seguia firme na curva.

 

Naquela semana 41 (que era 40, na verdade) o ILA (Índice de Líquido Amniótico) estava baixo. Costumava ser 11, naquele dia era 6. Eu lembro que toda consulta eu lia aquelas letrinhas pequenas nos exames que diziam “índice mínimo de segurança: 4”. E naquele dia era 6. O ultrassonografista (também um GO de renome, diga-se) me mandou pra clínica da obstetra. Ela me atendeu depois de uma fila de espera longa, pelo menos uma hora e meia. E, dentro do consultório, olhou para meu marido (veja bem, não foi para mim que ela deu a notícia) e disse “é muito pouco liquido, vai ter que nascer”. Pronto. Meu marido e minha mãe, que me acompanhavam, não tiveram dúvidas. Vamos para o hospital. Eu? Bem, eu fiquei tentando digerir, sem reação.

 

Ela, a GO, passou a mão no telefone, marcou a sala de cirurgia para as 21h. Eram 18h e alguma coisa. Mas não era emergência? Achei que ia ter que sair de ambulância dali e chegar tipo de maca, correndo, no hospital. Sei lá. Naquela hora meu cérebro entrou em tilt. Em alfa. Saiu de mim. Não lembro mais. Lembro de ir ao hospital. De esperar. A médica ainda não chegou. Mas já são 21h30, não era emergência? Tira foto. Sorri pra foto, lá vem o bebê! Chama a família, festa. Vai nascer! Mas não era emergência? E eu, ali, fora de mim, sentindo uma tristeza que eu não sabia explicar.

 

Hoje eu sei: era frustração. Impotência. Vi-o-lên-cia.

 

Guilherme nasceu saudável com apgar 9/10 às 22h03 do dia 17 de setembro de 2012. Eu chorei o meu não parto por 3 anos, 6 meses e 3 dias. Hoje não choro mais. Mas ainda lembro daquele sentimento. E hoje sei exatamente qual foi a sensação que tiraram de mim.

 

– O nascimento de Bernardo

 

Uma amiga marcou a festa de celebração do doutorado dela com dois meses de antecedência. Brinquei: se Bernardo deixar, eu vou. E ainda vou expulsar ele aqui de dentro dançando! A DPP (Data Provável do Parto) tinha sido dia 15. Era dia 18 de março. Minha mãe tinha chegado desde o dia 15 para ficar conosco, e ficou com Guilherme enquanto eu e o Fábio fomos festejar. Comi, dancei. Dancei muito! Voltamos a pé, já era dia 19. Uns 2,5 quilômetros, talvez. Comprei um sorvete. Senti uma contração. E outra. Demoramos quase uma hora para chegar em casa. Eu parava. E pensava: eita, deu certo! Dancei o menino pra fora!

 

Não consegui mais dormir. Tomei um banho, fui pra sala. O Fábio foi pra cama, tinha bebido, precisava descansar. Falei pra ele “dorme que vou precisar de você”. Mandei uma mensagem pra doula. “It might be today”, eu disse. Pode ser. Eram 3h40. Ela chegou às 5h, contrações já estavam ritimando. Às 10h eu pedi para ir ao hospital. Tínhamos contrações de 3 em 3 minutos, com durações de 50, 60 segundos. Fomos. Monitora o bebe, coração vai bem. Ai! Ta doendo muito. A enfermeira que nos atendeu da primeira vez não era gentil, não era delicada. Fez o toque, uma cara de desânimo, e me disse: não tem nada aqui. Nem um centímetro direito. Você não está relaxada, precisa relaxar! Toma aqui um analgésico e vai para casa, tenta dormir.

 

E foi assim que, se estivesse no Brasil, eu teria ido para uma cesárea por motivos de “não ter passagem”.

 

Paracetamol, morfina, cama. Não funcionou. Não consegui dormir. Contrações regrediram, iam e vinham, desritmou tudo. Eu fiquei muito, muito frustrada. Pensei comigo mesma que era um sinal. Não ia dar certo. Mas eu tinha, TINHA que tentar. Precisava descansar, meu corpo estava cansado, não respondia às contrações porque não tinha forças. Meu corpo pedia arrego, minha cabeça não conseguia relaxar. Quem disse que era só se deixar levar? Porra nenhuma! Aquilo era difícil, muito difícil. Lembrei de Carol. Uma pessoa muito querida que a formação de doula me trouxe. Carol me disse muito, mas na hora eu só lembrava do tom calmo da voz dela pela mensagem gravada no celular. Ao mesmo tempo agarrava o aparelho esperando que Rosário me respondesse. Rosário era meu norte, minha doula à brasileira, lá do outro lado do oceano, acalentando a mim e ao Fábio durante todo o processo.

 

Na cena real eu tinha o Fábio. Tinha Åsa, minha doula querida, que nem falava português mas fez questão de aprender palavras para usar quando a coisa apertasse. E tinha meu filho e minha mãe. Esses dois saíram de casa durante quase todo o processo – ele precisava gastar energia, brincar. Tudo estava demorando muito. Mas eu olhava para ele e pensava que eu tinha que parir. Por mim, por ele, por Bernardo. Ele sorria. Me abracava e pulava de alegria: o irmãozinho estava chegando! Aquilo era meu alimento. E minha mãe, a minha segurança, o meu conforto. Meu filho estava bem cuidado, amparado, e eu podia me concentrar no que estava fazendo sem preocupações.

 

Acabou o dia 19. Madrugada a dentro e vimos o dia 20 chegar. Era aniversário do Fábio. Tinha nevado o sábado inteiro, o domingo amanheceu com as árvores brancas. Eu fiz um bolo. Era fim de inverno mas a neve veio receber o meu brasileirinho nascido em terras suecas, só pra fazer graça. A temperatura caiu de novo a -5C. E o dia inteiro as contrações iam e vinham. Fortes, mas ainda ineficientes. Eram umas 14h, 15h quando chegamos no hospital de novo. Eu implorei, vamos. Não aguento mais. Eu estava num nível de cansaço que nem sei explicar. Já eram 36 horas de TP.

 

Chegamos ao hospital e uma equipe maravilhosa nos atendeu. Afinidade instantânea. Mas a tal da passagem, que era bom, nada ainda. Três centímetros, a enfermeira sorriu meio sem graça. Ela já tinha visto minha ficha e sabia que era minha segunda entrada. Chorei. De raiva, de desespero, de frustração, de medo. Não era possivel, não era possivel. Mas doía tanto! Como não tinha nada ainda? O Fábio comemorava. Eu me boicotava. E chorava por dentro.

 

E foi assim que, se estivesse no Brasil, eu teria ido pra cesárea por motivos de “TP de mais de 24h sem progressão de 1 cm por hora”.

 

O bebê foi monitorado, as contrações também. Me deram um quarto. Me sugeriram o que me parecia a coisa mais louca naquele momento: vamos parar tudo. Eu precisava dormir. Aceitei, me sentindo quase derrotada. Me deram uma medicação que, ao longo de duas horas, foi parando aos poucos as contrações até que elas cessaram completamente. Vejam só, eu finalmente estava em TP, depois de mais de três anos de espera, e agora esse povo louco dessa terra fria tinha feito tudo parar! Nem consigo explicar a minha decepção. Dormi. O Fábio dormiu abraçado comigo na cama do hospital. Dormi profundamente por duas, três horas. Talvez mais, não lembro. Quando acordei, a enfermeira me trouxe uma bola de pilates. Me disse que quando engatasse de novo eu desceria para a sala de parto, mas que podia ficar ali, por enquanto. O quarto tinha visto pro Castelo. A cidade estava coberta de neve. O dia estava lindo.

 

Estava tudo parecendo se ajeitar. Eu olhava pela janela num suspiro de descanso quando as contrações começaram. Caramba! Cacete! Todos os palavrões da face da Terra! Eram 20h. Elas já vieram de 3 em 3 minutos, de cara, na paulada. Mais fortes do que quando tinham sido interrompidas. Um minuto inteirinho. O Fábio tinha saído. A doula ainda não tinha voltado. Eu estava sozinha. Segurei na barra do pé da cama com as duas mãos e apertava com força enquanto me jogava para trás e me agachava quando as contrações vinham. Liguei pro Fábio. Liguei pra Åsa. Pelamordedeus venham embora!! Dóia muito, muito! Chorei. Chorei porque achava que não ia conseguir, que aquilo não ia ter fim. Mais um dia inteiro disso? Não dá. Não consigo. Naquela hora eu já nem lembrava que TP’s acabam, pra mim ia ser um infinito de tempo com a dor mais forte que já senti na vida. Veja bem, eu disse mais forte. Forte. Não pior. Forte.

 

Perdi o controle. Eu, que passei a gravidez inteira dizendo ao Fábio “se eu pedir anestesia não deixe que me dêem!” olhei pro relógio às 21h e surtei. Só uma hora? Ah! Não! Me leva daqui quero o gás!* Me leva pro gás, por favor! Foi a meia hora mais longa da minha vida. Pacientemente, a enfermeira ia e vinha tentando me acalmar. “O quarto está quase pronto, você já vai descer”. Como assim, quase? Será que ela não via que era urgente? Pra mim, aquilo era uma emergência. Me levaram às 21h30.

 

No caminho pra sala de parto parei sei lá quantas vezes pra gritar durante as contrações. Me segurava no Fabio, nas paredes, sei lá mais aonde. Agachava, urrava.  Imagine você a louca descontrolada gritando num hospital sueco, onde mal se ouvia os choros dos bebês. Quando chegamos na sala, eu lembro de ver uma mulher pequena, loira e muito sorridente. Ela me recebeu com piadas leves e risadas sinceras. O próximo frame do qual lembro era ela sentada no chão com meu marido discutindo meu plano de parto. Vou repetir: a enfermeira obstétrica que ia assistir ao meu parto estava sentada com meu marido discutindo meu plano de parto.

 

Uma pausa importante. O atendimento nas maternidades suecas é feito por enfermeiras obstétricas. Elas têm protocolos de atendimentos que costumam cumprir relacionados a uso de ocitocina para expulsão de placenta, tempo de espera para nascimento da placenta, uso de anestesia etc. Mas elas discutem tudo isso caso seu plano de parto esteja pedindo o contrário. Negociam. Argumentam. E, pelo menos no meu caso, respeitam suas decisões.

 

O tempo pra mim parou. Eu sentia muita dor. Uma dor que tomava conta não só do meu útero, das minhas costas, mas do meu corpo inteiro. Eu tremia. Apertava os dentes, as mãos. O gás…não funcionou. Tentei uma, duas, três vezes. Não dava tempo! As dores vinham sem espaço quase para respirar. Joguei a máscara longe. A Åsa tinha ficado tão orgulhosa porque eu aprendi a usar o gás rapidinho, e quando descartei a máscara lembro da carinha dela de “ai, e agora?”. Eu já não era gente. Ali eu entendi quando lia nos relatos que a gente vira bicho pra parir. Vira mesmo. E urra. Berra. Chora. Grita. Xinga.

 

Agora vem a parte engraçada. Um dos maiores medos de quase toda mulher que quer parir é fazer cocô na hora H. Eu? Eu pedia para fazer cocô e soltar pum. Me dá alguma coisa, por favor! Pra mim, eu estava entupida e isso fazia doer mais. Eu não lembro se as enfermeiras riram disso, mas se eu fosse a enfermeira, eu teria rido. Porque era tragicômico o negócio. Metade do tempo eu gritava, a outra metade dizia que pre-ci-sa-va fazer cocô. Mas olha, isso me parecia muito importante na hora, tá? Me julguem.

 

Enquanto isso elas tentavam ouvir o coração do bebê. Colocavam o monitor e nas contrações os batimentos dele caíam muito. A menos de 40, se me lembro direito (só que não lembro). Ficaram preocupadas. Me disseram que isso era perigoso, que eu precisava mudar de posição para que elas tentassem de novo. Eu estava agachada na cama, agarrada na cabeceira levantada. Fiquei de pé. Batimentos continuavam ruins. Fábio fechou a cara. Enfermeira parou de brincar. Eu senti o clima no ar. Não tive dúvidas: pedi para ir para cirurgia.

 

E foi assim que, se eu estivesse no Brasil, teria ido parar na sala de cirurgia por motivos de “seu bebê vai morrer, não consigo monitorar os batimentos”. Mas eu não estava no Brasil.

 

A enfermeira fez mais um toque. Sete centímetros. Juro que pensei que ia surtar. “Ainda? Sete?” Xinguei a mim mesma. “Ainda vai demorar! Não aguento! Me dá essa merda de anestesia”! A anestesiologista tinha sido chamada. A despeito do Fábio e da Åsa terem cumprido o combinado e tentado me dissuadir da ideia, eu estava em desespero. E com a notícia do coração, o desespero virou pânico. Ali, naquela hora em que eu pedia a anestesia e a cesárea ao mesmo tempo, em que me disseram que meu bebê poderia estar em risco, eu desisti. De tudo. Do parto, do sonho. Tinha me conformado. “Vai ser cesárea, pronto. Já passei por isso uma vez, passo de novo. E eu nunca vou parir”. Não planejamos ter outros filhos, então essa era minha chance. Talvez a única, talvez a última. “Eu não vou parir”, eu repetia para mim mesma.

 

E aí eu me dei conta. Eles. Os famosos. Os puxos. Eles tinham chegado. Com tudo! Avisei: preciso empurrar. PRECISO! A enfermeira pedia para eu segurar porque ela precisava ouvir o bebê, saber se ele estava bem. “Segurar? Cê deve estar louca! Como se faz isso?”. Que coisa poderosa são os puxos! A doula e o Fábio seguraram minhas mãos. E começaram a respirar comigo. Eu tentava, mas na terceira respirada meu corpo inteiro empurrava por dentro. A enfermeira esturou a bolsa (que ainda estava intacta!) para colocar um eletrodo na cabeça do bebê e checar os batimentos. Dai pra frente foi um susto. Ela colocou o eletrodo e já disse: não dá tempo, lá vem ele!

 

Olhei para ela e perguntei “pode empurrar agora?”. Pode. Respirei. Empurrei. Uma vez. Ele coroou. Lembrei de todas as doulandas que tive na vida, e daquele momento em que pergunto se elas querem sentir a cabeça para ganhar ânimo depois de horas cansativas. Coloquei a mão e senti os cabelos dele, a cabecinha molhada, parada ali, saindo de dentro de mim. Ela perguntou se eu queria aparar. Respondi que não tinha forças. O Fábio ficou com medo de derrubá-lo, preferiu ficar ao meu lado. Mais um empurrão. E pronto.

 

Ela o colocou em cima da minha barriga. Ele chorou. Eu chorei. Eu consegui. Nós conseguimos.

 

Meu cordão era curto e ele ficou ali na minha barriga até que a placenta nasceu, uns 40 minutos depois. Ainda ligado a ela, ele mamou. Estava faminto, chorava de fome! Pudera, dois dias inteiros trabalhando, tentando nascer. Só podia ter a fome do mundo inteiro.

 

Depois de ouvir uma aula sobre placentas, sentir a textura e analisar ela inteira, o Fábio cortou o cordão. Só aí, quase duas horas depois de nascer, ele foi pesado e medido. Mediram a glicose, estava baixa. Pediatra mandou dar fórmula. “Nunca!” Enfermeira argumentava. Negociava. “Nos dê uma hora e venha medir de novo, vou amamentar”.  Uma hora. Mediu. Normal. “Viu? Ele só gastou energia demais para nascer!”.

 

Bernardo nasceu no dia 20 de março de 2016, às 23h20, na ala de maternidade de um hospital público de Uppsala, na Suécia. Ali eu pari meu filho, meu sonho, minhas dores, meus medos e toda a construção de um parto desejado e idealizado. Ali eu aprendi que não importa o quanto a mulher se prepara, se o sistema quiser ele a derruba. E se ele não quiser, ele a ajuda. Como deveria ser no mundo inteiro. Ali eu finalmente entendi porque o meu não parto doía tanto.

 

Hoje não doi mais.

 

Patrícia Cordeiro

Uppsala, 21 de junho de 2016.

 

*Aqui na Suécia eles usam o “gás do riso” como opção de analgesia. Apesar disso, em média 70% dos partos são realizados com uso de epidural.

 

Nota da autora: costumo dizer às minhas doulandas que o parto é um processo 70% psicológico. Que se a cabeça está bem, o corpo trabalha tranquilo. Mas, muitas vezes, as mulheres não conseguem relaxar. Têm dores que vão além das físicas. Como eu. E isso causa o que chamamos de distócia emocional. Acredito que foi o que aconteceu comigo: eu tinha tanto medo e tanta mágoa que não deixei meu corpo trabalhar. Eu tinha tanto trauma que não confiei de fato que podia. E, como disse no título, meu corpo provou que podia. Mas só porque deram a ele a oportunidade de fazer isso.

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