Por Patrícia Cordeiro
Parece automático: basta falar que quer parir, ou que pariu, que a gente ganha um adjetivo de coragem, acompanhado de uma expressão de medo, dor ou compaixão. Desde pequena escuto das mulheres à minha volta o quanto o parto é um sofrimento. Que ninguém merece sentir aquela dor. Que dor é essa, eu me perguntava, que de tão insuportável deveria ser banida do mundo, da vida? Que sofrimento terrível deveria ser dar à luz uma criança! Por muito tempo acreditei na premissa de que a dor do parto trazia sofrimento. Um sofrimento inevitável, inesquecível, capaz de nos fazer pensar em nunca mais engravidar novamente. Como o castigo da Eva que mordeu a maçã e, agora, merece sofrer para purgar todo aquele pecado.
A PERCEPÇÃO DA DOR DURANTE O PARTO
“Uma mulher em trabalho de parto chega à maternidade. Seu primeiro contato com as parteiras é importante: o olhar amável da parteira, o sorriso, as palavras e gestos, todos têm efeito positivo no trabalho de parto”.
O trecho acima é a abertura do capítulo “Ajudando mulheres em trabalho de parto”, do livro “O Renascimento do Parto”, escrito pelo obstetra francês Michel Odent. Michel é uma figura reconhecida no movimento de humanização do parto por defender que o sucesso do trabalho de parto e do parto em si depende de que a mulher se sinta segura e confiante não só no processo, mas no ambiente e nas pessoas que a assistem durante todo o tempo.
Essa confiança está também diretamente relacionada a como a mulher percebe os momentos e as sensações ao ter um filho. E, consequentemente, como ela percebe a dor que sente. Paule Brung é uma parteira, também francesa, citada no livro “Quando o corpo consente” – recomendo muitíssimo a leitura para quem está grávida e, especialmente, a quem quer parir. Este livro é um diário, escrito por Marie Bertherat, filha de Thérèse Bertherat, que por sua vez é enfermeira. Nele, Marie detalha mês a mês a gravidez e como se preparou para o parto. Entre os escritos, Thérèse e Paule vão permeando o relato com informações técnicas sobre gravidez e parto.
“As mulheres não reagem da mesma maneira à dor do parto. Algumas se contorcem de dor, outras não sentem nada ou quase nada. Por diversas razões fisiológicas e psicológicas. Nosso corpo não está inerte diante da dor, ele tem suas defesas próprias”, diz Paule.
E por defesas ela cita os hormônios que são conhecidos e queridos por qualquer parturiente: ocitocina e endorfina. Ambos secretados durante o sexo e durante o trabalho de parto. Ambos responsáveis pelas sensações de prazer e de analgesia. São os hormônios do amor.
Qual a diferença, então, entre as mulheres que sentem mais ou menos dor durante o parto? Além das variações do quanto cada pessoa suporta a dor, há o aspecto fundamental do bom funcionamento dos hormônios do parto. A liberação desses hormônios acontece de forma natural, mas é estimulada se a mulher está se sentindo feliz e segura ao longo de todo o acontecimento. A percepção da dor durante o parto depende, portanto, do tipo de assistência que essa mulher recebe.
MÉDICOS, PARTEIRAS E SEXUALIDADE NO PARTO
Até o começo do século XX, os nascimentos aconteciam em casa, com parteiras, ou com enfermeiras nos hospitais. A presença do corpo médico era essencial apenas em casos de emergências e a cesariana ainda não era um meio comum de nascimento. A medicina avançou, e alguém decidiu que era preciso pôr um fim às dores do parto e acelerar o processo. Vieram a analgesia, a episiotomia, a manobra de Kristeller e todo o rol de intervenções que até hoje permeiam o ambiente obstétrico brasileiro. A mulher deixou de ser a protagonista do seu próprio parto. No lugar dela, era agora o médico que figurava na posição central – o médico passou a “fazer o parto”.
Pior: as mulheres passaram a acreditar que quem faz o parto é, de fato, o médico. Quando a mulher deixa de ser o personagem mais importante e aparece, ainda, a figura – masculina, em sua maioria – do médico nesta cena, a liberdade de escolha (seja da posição que quer ficar até se alimentar ou não, por exemplo) e a confiança daquela mulher parindo está comprometida. Enquanto o evento do parir estava restrito às casas, às parteiras e às mulheres da família, havia uma cumplicidade entre elas – que foi dissolvida nos hospitais. Quando o parto saiu do lar e ocupou as macas, perdeu-se, além da naturalidade, o conforto de lidar com o caráter sexual do parto.
“A mulher em trabalho de parto está em estado físico e emocional vulnerável e apta a se tornar dependente da sua assistente de parto pelo menos durante um tempo. As nuances sexuais que podem acompanhar tal contato com um assistente masculino poderiam trazer empecilhos para a mulher em trabalho de parto, impedindo que ela atue de forma aberta e espontânea como ela gostaria”, exemplifica Michel Odent.
O MODELO DE ASSISTÊNCIA E A SATISFAÇÃO COM O PARTO
Considerando que é preciso segurança e conforto para que o parto aconteça da forma mais natural e tranquila possível, basta uma olhada rápida no modelo de assistência obstétrica que existe no Brasil para entender os motivos de termos tanto medo de parir. Há uma vulgarização do parto como simplesmente um ato médico, técnico e sem particularidades. “Se você não dilatar um centímetro por hora, vamos dar um sorinho”, dizem, como se houvesse uma régua com cronômetro para que o bebê possa vir ao mundo. E, dentro desse modelo, episódios de distócias emocionais são corriqueiros. Como doula, é frequente ouvir histórias de mulheres que querem entender melhor o motivo de não lembrarem de seus partos com carinho, que acreditam que tiveram riscos reais e sérios problemas “resolvidos” com intervenção médica e medicamentosa, ou mesmo cirúrgica. Mas é só observar com cuidado para ver que os relatos são cheios de violência obstétrica. A falta de evolução em trabalhos de parto de gravidezes de baixo risco costuma estar associada ao medo do desconhecido, ou à sensação de ser subjugada e tratada como ignorante no evento fisiológico que se desenrola no seu próprio corpo. A distócia emocional é um desequilíbrio emocional, um desconforto, causado geralmente por estresse. Ela pode gerar o prolongamento do trabalho de parto e, com isso, aumentar a sensação de dor.
Mulheres que não estão confortáveis no ambiente onde estão parindo, que não se sentem seguras com a equipe que as assiste ou que sofreram violência psicológica durante a gravidez estão mais suscetíveis a trabalhos de parto mais longos e dolorosos. O medo e a falta de informação são os fatores mais contundentes para que, no fim de tudo, a mulher não se sinta feliz com o parto. A violência obstétrica provoca o sofrimento do parto. Não é a lembrança da dor que nos faz sofrer. Por trás dela há a lembrança da forma como fomos tratadas, desacreditadas, humilhadas, renegadas à condição de ser ignorante e inferior. Está aí, portanto, o nosso sofrimento.
O parto dói. Mas o sofrimento está totalmente relacionado com o quanto (não) nos deixaram ser felizes (e livres) durante ele.
Eu costumo dizer para as mulheres que assisto como doula que o parto começa na nossa cabeça. Há um tanto de biologia, um pouco de sorte e um muito de empoderamento. No fundo, eu gostaria que não precisasse ser assim. Que vivêssemos em uma sociedade onde parir fosse tão natural quanto…o é de fato. Que as mulheres não sofressem violência de gênero e não precisassem estar constantemente se reafirmando como seres capazes de lidar com algo tão sublime quanto o próprio corpo. Que tivéssemos a serenidade de esperar pelos nossos bebês como esperaram tantas gerações de mulheres antes de nós. O esperar, simplesmente.
Eu tive distócia emocional no parto do meu segundo filho. Eu tinha medo de não conseguir parir. De não aguentar a dor. De acabar numa cirurgia, como da primeira vez. E acredito que as lembranças que tenho dos momentos mais difíceis são adocicadas pela imagem da minha doula e do meu marido me apoiando, além da equipe que tive a sorte de ter naquele plantão. Então, como se não bastasse a necessidade do exercício do empoderamento para sermos felizes nos nossos partos, acredito que precisamos também do exercício da dissociação: dor e sofrimento não precisam andar juntos. A gente sente dor ao parir, sim. Natural, fisiológico, necessário. A dor tem um papel fundamental na regulação hormonal também nessa hora tão intensa. E por isso mesmo ela não precisa ser lembrada como algo ruim. Até porque a divina deusa Ocitocina vai dar aquela forcinha para que as lembranças sejam amenas e menos responsivas.
Há um quê de holístico nesse papo. Eu sei. De boa vontade. Mas, principalmente, de reconhecimento da nossa capacidade de parir. Como um mantra. Como uma lição que precisamos reaprender para sairmos do círculo vicioso em que nos colocaram ao nos fazerem acreditar que parir é sofrer.
Parir é renascer.
Renasçamos com alegria, então.
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Para quem quer saber mais sobre violência obstétrica e o modelo de assistência brasileiro, sugiro a leitura da tese de doutorado de Ligia Moreiras Sena, “Ameaçada e sem voz, como num campo de concentração. A medicalização do parto como porta e palco para a violência obstétrica”. Assista também aos filmes “O Renascimento do Parto 1 e 2” e ao documentário “Violência Obstétrica – A voz das brasileiras”, disponível no Youtube.
Referências literárias:
• Quando o corpo consente – Marie Bertherat, Thérèse Bertherat e Paule Brung
• O Renascimento do Parto – Michel Odent
• Guia para o nascimento – Ina May Gaskin