Março se despede deixando um gosto desagradável de “mês do estranhamento” ou “mês do mal estar“. Inúmeras situações nos causaram imenso desconforto. Desconforto, estranhamento, mal estar, indignação, perplexidade e sentimento de incredulidade.

Porque, realmente, depois de tudo o que sofremos enquanto brasileiros, depois de todas as lutas, de todos os desafios ainda em superação, é pouco crível que ouçamos e leiamos manifestações como “Queremos os militares no poder novamente!“, ou “Enquanto vocês, mulheres, estão aqui reivindicando direitos, a roupa se acumula pra lavar, quem as vai lavar?!“. 
É quase inacreditável. 
No sentido de ser muito, muito difícil acreditar que consigamos desconsiderar a história de sofrimento de um povo na construção de sua nova biografia. Como alguém pode, em livre e sã consciência, manifestar esse tipo de pensamento servil?! 
Eis aí a questão primordial: consciência? Qual?
Somo um país de pessoas com pouca ou nenhuma consciência crítica. Que toma como sua a verdade massificadora das mídias. Que pouco ou nenhum esforço faz para manter viva a memória histórica do país. E que sistematicamente tenta legitimar a expressão presente no hino da (pseudo) independência: temor servil.
E ausência de senso crítico e memória histórica é porta aberta à manifestação da autocracia, da dominação e da opressão, velada ou explícita.
É à falta de historicidade e senso crítico que atribuo as manifestações do último mês.
Aqui em Florianópolis, vivemos a invasão da Universidade Federal de Santa Catarina por uma polícia despreparada, atrapalhada e sem qualquer tipo de inteligência, com a suposta justificativa de estar “combatendo o tráfico”. Balela. O resultado da operação: 5 baseados apreendidos, pancadaria, bombas de efeito moral, muito gás lacrimogênio, alunos, professores e funcionários sendo coagidos e violentados, crianças da creche universitária saindo com máscaras para não se intoxicarem, em completo estado de pânico. Para que? Para que um delegado com pretensões eleitoreiras – e base religiosa – fizesse seu meio de campo e despertasse a fúria conservadora e reacionária da comunidade universitária florianopolitana/catarinense. 
Na última semana, tivemos também a divulgação dos resultados da pesquisa sobre tolerância à violência contra a mulher pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: mais da metade da população cultiva – e cultua – crenças machistas e misóginas que culpabilizam a mulher pela violência sofrida e mostra-se tolerante – e conivente – com a agressão física, moral, emocional e com o estupro.
Ainda neste mês, tivemos também um lamentável episódio de ressurreição daquilo que deveria estar morto, enterrado e decomposto: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, uma vexatória tentativa de relembrar, com louvor, um episódio histórico profundamente lamentável do Brasil, a marcha anticomunista e de apoio ao golpe militar. Golpe que, em 31 de março e 01 de abril de 2014, completa 50 anos. Foi com sentimento de alívio que acompanhei a cobertura de algumas mídias sobre este recente episódio estilo walking dead brasileiro: 500 pessoas na maior capital brasileira, 15 pessoas ali, 5 acolá, 3 em Florianópolis, nenhuma em Salvador. Mas foi também com grande incômodo que encontrei dezenas de manifestações pró-marcha, pró-retorno da ditadura, pró-intervenção militar. Fiz uma pequena seleção de fotos. E é muito importante que você as veja atentamente, antes de acompanhar o texto de fundamental relevância que segue abaixo delas, de autoria de Ana Castro.

De todas, a última é a que me causa maior desconforto. Talvez por reunir duas gerações. Ou talvez por ser uma mulher a segurar um dos cartazes. E porque sei, pelo menos a partir do que nos foi permitido saber, o que as mulheres viveram no período da ditadura militar no Brasil. Se hoje precisamos lutar a ferro e fogo contra as manifestações de misoginia, machismo, preconceito e discriminação, naquele período ser mulher representava ainda mais risco de ser violentada, torturada e humilhada de todas as formas. Especialmente se você era uma mulher em defesa da democracia e do respeito aos direitos. Se você era uma mulher mãe, então, seu horizonte tornava-se ainda mais temeroso.
Então, somente me resta crer que essas pessoas, especialmente mulheres, que permanecem em  defesa da ditadura tenham completa ignorância sobre o que outras mulheres viveram, sobre o que o Brasil passou, sobre toda a violenta e desumana luta que foi necessária para que reconquistássemos o direito de ter representatividade e sermos ouvidos. 
Neste 31 de março, completamos 50 anos dos eventos que tornaram possível o golpe militar que inaugurou um dos períodos mais terríveis da história do Brasil. O que esse período representou para mulheres em geral e, especialmente, para mulheres mães? Que
histórias ignoram ou denigrem aqueles que defendem a volta da ditadura e da intervenção militar? O que não estamos contando a nossos filhos, a fim de que permaneça viva a memória do que vivemos enquanto povo? O que estão defendendo aqueles que querem de volta a violência máxima legitimada?
O texto a seguir é de autoria de Ana Castro. A quem agradeço muito por ter considerado este blog digno de divulgá-lo.
Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.
Por Ana Castro*


“(…) O interrogando ouviu os gritos de sua esposa e, ao pedir aos policiais que não a maltratassem, uma vez que a mesma estava grávida, obteve como resposta uma risada; […] que ainda neste mesmo dia, teve o interrogando notícia de que sua esposa sofrera uma hemorragia, constatando-se posteriormente, que a mesma sofrera um aborto”

Depoimento do professor Luiz Andréa Favero, então com 26 anos.
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 “(…) que foi ameaçada de ter seu filho ‘arrancado’ à ponta da faca”
Depoimento da vendedora Helena Mota Quintela, então com 28 anos.
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 “(…) sofreu violências sexuais na presença e na ausência do marido”
Depoimento da revisora gráfica Maria da Conceição Chaves Fernandes, então com 19 anos.
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“na tarde desse dia, por volta das 7 horas, foram trazidos seqüestrados, também para a Oban, meus dois filhos, Janaína de Almeida Teles, de 5 anos, e Edson Luiz de Almeida Teles, de 4 anos, quando fomos mostrados a eles com as vestes rasgadas, sujos, pálidos, cobertos de hematomas […]. Sofremos ameaças por algumas horas de que nossos filhos seriam molestados”.
Depoimento do motorista César Augusto Teles, então com 29 anos.
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Esses depoimentos que parecem ter saído de um filme de terror são trechos de relatos da violência sofrida por mães, pais e crianças durante a ditadura militar. Eles fazem parte do livro “Brasil Nunca Mais” lançado em 1985, que trazia pela primeira vez a confirmação de que o Estado usava da violência, da tortura, das ameaças como forma de ação cotidiana das polícias contra qualquer pessoa que fosse minimamente suspeita. 
O Nunca Mais do título tinha uma razão de ser. Dom Paulo Evaristo Arns e o pastor presbiteriano Jaime Wright acreditavam que publicar todos os horrores que aconteceram nos porões da ditadura faria com que aquilo nunca mais se repetisse: “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça” era o lema. Infelizmente, depois de 30 anos do lançamento do livro, o apelo do “nunca mais” não foi cumprido.
Quando decidi largar um trabalho estável para fazer doutorado e me aventurar por outros caminhos, escolhi falar sobre o “Brasil: Nunca Mais”. Ficava impressionada como uma história tão forte, cheia de denúncias, uma grande reportagem sobre as violações dos direitos humanos, tinha sido tão rapidamente esquecida. Perguntava para os amigos, familiares, e praticamente ninguém sabia o que era “Brasil: Nunca Mais”. Como não repetir os erros se nem conhecemos o nosso passado?
E com esse questionamento, além do doutorado, nasceu o documentário “Coratio”. Uma produção independente minha e de do também jornalista Gabriel Mitani. “Coratio” quer contar a história do “Brasil: Nunca Mais” e ir além. Queremos pensar e debater quais são as consequências que esse descaso com o apelo do “nunca mais” trouxe para nós hoje. Para mim e para você. Porque sabemos que em qualquer história, seja coletiva, seja individual, se não tivermos a coragem de olhar para trás, de remexer nas feridas que ainda sangram, de lembrar para não esquecer, estamos fadados a cometer os mesmos erros. Repetidamente.
Nesse mês de março, vivemos este triste marco: os 50 anos do golpe militar. E por mais que quiséssemos que esses depoimentos fossem um pedaço trágico e findado de nossa história, estamos longe disso. A ditadura acabou, há mais de duas décadas vivemos em uma democracia, mas parte
dos órgãos de segurança do Estado continua agindo da mesma forma
. Se antes o inimigo era o subversivo, o comunista, o guerrilheiro, qualquer pessoa que pensasse diferente da ordem imposta, hoje quem vive esse cotidiano na pele são crianças, jovens, homens e mulheres que vivem nas periferias, em geral negros e pobres, e muitos daqueles que decidiram ocupar as ruas para manifestar sua indignação nos últimos meses.
A continuidade desses crimes cometidos por quem deveria nos proteger deve-se muito à impunidade. O fim da ditadura veio com o sabor amargo de uma anistia que perdoou as vítimas(vejam só!) e também os algozes. Mesmo sabendo-se os nomes de torturadores, de médicos que forjaram atestados de óbito, de policiais e políticos que apoiaram a prática da tortura, esses criminosos nunca foram acusados, processados e julgados. Muitos, ainda vivos, se aposentaram e recebem pensão com o meu, o seu, o nosso dinheiro. 
A impunidade de antes deu carta branca para a violência de hoje. As forças policiais, muitas vezes sobre a justificativa de que no Brasil “não há justiça”, “ a gente prende o malandro e no dia seguinte ele tá solto”, “na rua somos nós ou eles” tornam-se a própria justiça: acusam, julgam e executam a seu bel prazer. E nesse ciclo de violência, de justiceiros, ninguém está a salvo, nem mesmo os próprios policiais. Não são poucas as notícias de policiais executados. E toda vida é uma vida inteira.
O que desejamos com o documentário não é defender um lado, numa hipotética batalha entre o bem e o mal (que muda conforme o lado em que você se coloca). O que queremos é mostrar como a ideologia da segurança pública, baseada no armamento, no enfrentamento bélico, a militarização das polícias, a impunidade do passado e de hoje, nos tornaram refém de uma história sem fim de tragédias, medo e insegurança. Temos o dever de cobrar do Estado a responsabilidade dele. A mudança tem que acontecer no sistema que alimenta esse ciclo.  
Não nos cabe discutir se as pessoas que estavam sob custódia da polícia eram culpadas de crimes ou não. Até porque muitas delas não foram nem presas formalmente, foram “sequestradas” de suas casas, torturadas e mantidas em cárcere privado sem nenhum tipo de mandado judicial, processo ou denúncia. Taí o caso do pedreiro Amarildo que não nos deixa mentir. Também não achamos que a violência do Estado justifica a morte e execução de policiais em uma vingança contínua. O que nos move é um direito básico, que deve ser garantido para todos, sem exceção: o respeito aos Direitos HumanosNinguém, sob hipótese alguma, seja criminoso, policial, jovem, criança, mãe, pai, deveria sofrer algum tipo de tortura. A tortura é o caminho mais curto para dobrar o espírito das pessoas, negar sua existência como um ser que mereça respeito, desfazer sua identidade humana. A tortura não traz à tona a verdade. Mas saber a verdade sobre a tortura pode nos trazer liberdade.
Até agora o documentário foi feito com recursos próprios, mas chegamos em uma fase em que precisamos de um aporte financeiro para finalizar as gravações e fazer um trabalho profissional. Optamos por um financiamento coletivo. Achamos que essa era a melhor maneira de conseguirmos o dinheiro, porque cada centavo depositado ali é resultado de uma escolha pessoal de alguém que embarcou no nosso projeto. E isso é muito legal. 

No final da apresentação do livro, Dom Paulo Evaristo Arns e Jaime Wright fazem um pedido: 

“que ninguém termine a leitura deste livro sem se comprometer, em juramento sagrado com a própria consciência, a engajar-se numa luta sem tréguas, num mutirão sem limites, para varrer da face da Terra a prática das torturas. Para eliminar do seio da humanidade o flagelo das torturas, de qualquer tipo, por qualquer delito, sob qualquer razão”.

Se você tiver estômago, leia o depoimento da jornalista Rose Nogueira. Ela foi presa em 1969, quando vivia um dos momentos mais lindos e difíceis da vida, o puerpério. Já tinha sofrido violência no parto, que foi a fórceps e rompeu uma parede da bexiga, por isso ficou 20 dias internada. Seu filho tinha um mês de vida quando ela foi levada. Na prisão era chamada de Miss Brasil, nome de uma vaca que havia ganhado um concurso leiteiro. Isso porque de seus seios ainda jorrava leite. Leia aqui

Se você quiser se engajar nessa luta e saber mais sobre nosso projeto, visite a nossa página: www.catarse.me/coratio.


*Ana Caroline Castro, jornalista, doutoranda em comunicação e, principalmente, mãe da pequena Tarsila que me encoraja a lutar por um mundo melhor.
Desde criança, eu, Ana Castro, escutava histórias na família sobre o avô materno, comunista, que ficou desaparecido alguns dias durante a ditadura militar e quando voltou para casa queimou alguns livros e escondeu outros tantos debaixo do assoalho. Jornalista há quase 15 anos, já trabalhei na Revista Época, TV Globo, Agência Pública de Jornalismo e Reportagem Investigativa. Ganhei mais de sete prêmios e tive a honra de participar do livro “Amazônia Pública”, lançado em 2013. Também faço doutorado na ECAUSP e, o mais importante, sou mãe da pequena Tarsila, menina corajosa que me inspira a lutar por um Brasil mais justo.
Além disso, posso dizer que desde a gestação e parto da Tarsila, eu mudei muito. O empoderamento do parto natural, de saber-se capaz de dar à vida, de testemunhar o desenvolvimento da minha pequena, me deram muita força para mudar completamente de vida. 
Eu trabalhava há 12 anos como produtora e editora na TV Globo. Estava em um momento muito bom da carreira profissional, mas não estava trabalhando com o que eu sonhava. Eu sabia que poderia fazer mais. Mais pela Tarsila, mais por mim e mais pelos outros. Então pedi demissão. Agora fico mais com a minha filha, faço doutorado na USP e estou produzindo este documentário. Hoje faço exatamente o que gostaria de estar fazendo. Trabalho com o que eu acredito e tento fazer a minha parte por um mundo mais humano, justo e amoroso. 
Depoimentos da historiadora Dulce Pandolfi e da cineasta Lucia Murat sobre as torturas que sofreram, para a Comissão Estadual da Verdade, no Rio de Janeiro, em março de 2013.
Mais de vinte depoimentos de mulheres torturadas na ditadura militar.
Depoimentos de Ieda sobre o que ela, sua irmã Iara e sua mãe Fanny viveram no centro de tortura em São Paulo.
“O martírio da jovem Nilda Carvalho Cunha, 17 anos, nos porões da ditadura”
– Estreou no dia 27 deste mês o documentário “Em busca de Iara”, que conta a história de Iara Iavelberg, psicóloga, professora, que foi assassinada pela ditadura em agosto de 1971 em Salvador. A morte de Iara foi dada como “suicídio” pelos militares, mas a família questionou desde sempre. Iara foi companheira de Carlos Lacerda. Assista ao trailer.

– Abaixo, o documentário “Que bom te ver viva“, produzido por Lucia Murat, que retrata a situação da tortura vivenciada durante a ditadura militar por mulheres que lutaram pela democracia.

Se manter viva na memória essa parte tão triste da história do Brasil também for importante para você, sugiro que contribua para a produção de Coratio. Não deixar que a sociedade brasileira se esqueça do que representa um regime ditatorial, violento e cruel, é dever de todos nós.
Para que não nos esqueçamos.
Para que nunca mais aconteça.

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