Honrar pai e mãe. Honre seus antepassados. Inspire-se em seus ancestrais. Valorize as tradições. É feito assim desde sempre, por que haveria de mudar agora? O que é tradicional é sempre sábio. Minha bisavó fez assim, minha avó fez assim, minha mãe fez assim, porque eu haveria de fazer diferente?
Há um certo tempo essas frases me incomodam, desde que passei a estudar mais sobre questões sociais e históricas, partindo de nossa própria história enquanto indivíduos e indo até nossa história coletiva, enquanto seres que estão atravessando os tempos juntos. Até que, lendo o livro Sonho Manifesto, do também neurocientista Sidarta Ribeiro, encontrei uma frase que sintetizou com perfeição minha angústia com tais generalizações:
“Só porque algo é antigo não significa que valha a pena ser mantido, pois o tempo tanto pode depurar como apodrecer as coisas. Precisamos de cura”.
Esse é um livro necessário de ser lido porque fala exatamente sobre isso: a urgência de fazermos a curadoria de nossas ancestralidades. Enxergar aquilo que vem sendo feito desde muito tempo e que tem nos ferido, individual e coletivamente. Assim como enxergar o que foi feito desde muito tempo e que representa possibilidade de cura.
E trago aqui a mulher ao centro do debate, nossas vidas, nossos trabalhos, nossas solidões, nossa forma de educar as crianças, frequentemente em meio a toda a sobrecarga. E faço a seguinte pergunta: quanto de nossa sobrecarga é uma forma de perpetuar padrões de nossos antepassados que precisam ser deixados para trás? Muito. O fato de termos sido relegadas ao lar por muito tempo, tendo os espaços públicos sido proibidos a nós, perpetuou uma herança cujos efeitos vemos até hoje: praticamente todas as atividades relacionadas à casa, à manutenção do espaço privado – crianças incluídas – foram deixadas para nós. Antes, isso era ostensivamente explícito. Hoje é tão ostensivo quanto, mas pintado de empoderamento. Praticamente todas as atividades relacionadas ao cuidado também foram deixadas a nós, a ponto de o cuidado, o cuidar, ter um claro viés de gênero que, ao contrário do que tentam nos convencer, não está associado a nenhum padrão intrinsicamente feminino. Todos somos humanos, todos precisamos cuidar. E se não estão cuidando, não é porque são homens. É porque houve uma escolha, sua ou ancestral.
Venho colecionando histórias de ausência de cuidado – e antes fosse comigo mesma, apenas, porque quando se trata de um fato individual, conseguimos empreender esforços para a resolução de maneira mais fácil. Mas é uma ausência coletiva de cuidado. As pessoas escolheram não cuidar e há muito tempo. Nós olhamos para as imagens dos indígenas Yanomami deixados para morrer por ausência de cuidado e nos indignamos, afinal os extremos ainda nos trazem indignação, pelo menos para uma parte de nós, felizmente. Mas indignar-se com veemência com a explícita ausência de cuidado é simples, talvez esteja na massa corpulenta de nossa humanidade. Mas e a massa sutil? Aquele cuidado sutil do dia a dia? Como você está? O que posso fazer por você? Gostaria de sair para um drink e conversar? Vamos à praia juntas? Vamos passar uma tarde juntas trabalhando, já que ambas temos que trabalhar? Posso levar um feijão que fiz? Posso ir aí te ajudar na faxina? Quantas vezes esse cuidado se apresenta para nós, todos os dias? Quantas vezes esse cuidado parte de nós em direção ao outro todos os dias? Quanto estamos abertos ou fechados para esse cuidado? Quanta desproporção de gênero há nisso? Que tipo de padrão de cuidado, ou a mais completa ausência dele, você está passando adiante?
Cuidar ou não cuidar também foi ensinado. Por mães e pais que cuidaram ou não cuidaram. Por gerações que cuidaram ou não cuidaram. Por ancestrais que cuidaram ou ancestrais que abandonaram e exterminaram. Por uma tradição cuidadosa ou por uma aniquiladora. E aqui entra a necessidade urgente de qualificar o cuidado: se houve, como foi? Um cuidado violento ou compassivo? O cuidado não existe de forma única, ele é variável, nele estão impregnadas as nuances do contexto social atual ou também antepassado. A pessoa cuida, mas chantageia. A pessoa cuida, mas ameaça. A pessoa cuida, mas é aquele cuidado atrelado à sobrevivência, ao básico, deixando escapar a gentileza, a empatia, o colo, a não violência. Cuidar batendo? Cuidar chantageando? Cuidar manipulando? Isso é cuidado? Eu gostaria que, na prática, cuidado fosse a antítese da não violência e excluísse todas essas práticas, mas o cotidiano me mostra que infelizmente há mais diversidade no estilo do cuidado que se oferece e se recebe do que pode imaginar a nossa vã ilusão.
Certa vez, atravessei uma fase muito dolorosa da vida. O único antídoto ou analgésico para toda aquela dor era a oferta urgente de cuidado. Esse cuidado chegou trazido nos braços de pessoas amorosas com seus próprios abraços, ou convites para cervejas, ou que lavaram minhas roupas no meio da madrugada para que eu pudesse viajar no dia seguinte. Mas a humanidade que existe e persiste em nós ainda espera que o cuidado venha de quem a gente ama, com quem construímos laços, porque afinal de contas o amor e o cuidado precisam dialogar para que cheguem a um caminho saudável. E o que ouvi naquele momento foi: “Você quer que eu cuide e eu não quero cuidar. Não sou um cuidador”. Ausência de cuidado piora em muitas vezes qualquer tipo de dor ou sofrimento que venhamos a atravessar e só não sente isso quem já está morto por dentro. E o pior é que pessoas assim, mortas em vida, tendem a espalhar mais dor justamente através da ausência de cuidado ou do cuidado adoecido. E o que é pior, fazem mais que espalhar a dor: ensinam.
Um pai ou uma mãe não precisam ser honrados por decreto, porque está em alguma lei cósmica. Ancestrais não representam uma entidade única e inequivocamente sábia. A tradição com frequência é violenta, castradora e assassina. Pais, mães, ancestrais, antepassados, tradições, os que vieram antes de nós erraram muito, bateram, machucaram, mataram, exterminaram, feriram, aniquilaram. Pais, mães, ancestrais, antepassados, tradições, os que vieram antes de nós, também acertaram muito. E o que ainda resta em mim de confiança na espécie humana – e ainda resta – me faz crer que acertos foram maiores que erros, ou não estaríamos aqui hoje, tentando, de alguma forma, o resgate daquilo que garantiu o cuidado amoroso de nós. Então eu, particularmente, tomei uma decisão há treze anos que, naquela época, não pude elaborar com a desenvoltura com que consigo hoje, mas que vejo como acertada: para mim, não apenas como pessoa única mas especialmente como parte de um coletivo, mais que honrar antepassados, importa-me honrar meus descendentes. Porque é a única coisa que posso fazer, que está sob meu controle, e ainda assim de maneira bastante frágil. Quero honrar meus descendentes e esse grupo vai para além da minha filha, engloba todos os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos e toda a vida que segue. E talvez esteja aí a motivação para meu esforço de transformação, que abraçou quase todos os campos da minha vida – e digo “quase” porque ainda me alimento de seres sencientes. Se eu sou a ancestral de alguém, preciso aprender a transformar a forma de cuidar que me foi passada por quem veio antes de mim, de maneira próxima ou ao longo das eras. Isso não significa que não considere e respeite o que veio antes, afinal quem não olha para sua própria história não tem perspectiva de futuro. Mas olhar apenas para o passado e o que fizeram de nós me torna refém, olhar para o futuro me responsabiliza pelos meus atos e é isso o que eu quero. Sim, me machucaram. Sim, nos machucaram. Mas está em nossas mãos passarmos isso adiante ou nos construirmos como uma nova ancestralidade, honrando a nossa descendência.
Para além da descendente dos meus ancestrais, sou uma jovem antepassada de alguém, atual ser vivente, educando uma pessoa, trocando vivências e conhecimentos com meus contemporâneos, consumindo recursos naturais deste lugar comunal em que vivemos. Sei poucas coisas nessa existência, mas algo eu sei: nossa cura está no cuidado. No cuidar, no como cuidamos. E se nos abstemos de refletir sobre a qualidade do cuidado que oferecemos, da palavra à ação, ou mesmo se oferecemos, talvez já estejamos mortos. Por escolha. Nossos descendentes não têm obrigação de nos honrar, se assim for.
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Meu trabalho é orientar e apoiar mulheres nas diversas dimensões de suas vidas – maternidade, educação sem violência, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico – além da popularização da Ciência e da divulgação científica. Se você precisa de apoio e orientação individualizados, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br ou nos chame pelo WhatsApp que te explicamos como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO. Você também pode se inscrever no Clube de Leitura e nos cursos online que ministro, é só entrar em contato. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Será um prazer poder te ajudar.