Não entendo! Primeiro, dizem que não pode bater.
E agora, que não pode por de castigo, não pode gritar, ser rude. Afinal de contas, como vou educar? Todo mundo sabe que precisamos ensinar as crianças a serem bem comportadas.
Elas precisam de disciplina!
Muito se fala sobre castigos físicos em crianças. Seus efeitos já têm sido estudados por um bom tempo (1). Vários países implementaram legislações para proibir o uso de castigos corporais e organizações internacionais têm debatido a eliminação dessa prática (2).
Porém, não é incomum que pais e cuidadores considerem castigos psicológicos como uma alternativa plausível para os castigos físicos.
Mas serão os castigos psicológicos realmente uma alternativa para os castigos físicos? Será isso que prega a disciplina positiva?
Humilhar/envergonhar/constranger crianças é um hábito muito antigo. Na Idade Média, o ritual de batismo incluía o exorcismo do demônio do corpo da criança. Alguns padres diziam que, se o bebê chorasse um pouco mais do que era considerado normal, ele estava cometendo um pecado. No século XVII, achava-se que os bebês nasciam cheios de sujeiras de pecados herdados dos pais.
Portanto, é uma antiga tradição culpar a criança pelos inúmeros desafios e dificuldades encontrados pelos pais. Infelizmente, esse jeito de pensar persiste até hoje (embora de modo menos extremo). Por exemplo, é comum taxar uma criança que está tendo um ataque de birra (ou tendo explosões emocionais, como preferimos chamar) de mimada, ou falar que ela está desafiando seus pais, ou acusá-la de só fazer isso para chamar atenção…
Nesse artigo vamos discutir um pouco sobre castigos psicológicos. Discutiremos a vergonha (o que é, quais possíveis efeitos de envergonhar/constranger a criança na tentativa de ensiná-la alguma coisa), e discutiremos um grande estudo epidemiológico sobre traumas de infância e efeitos a longo prazo. Finalmente, discutiremos algumas alternativas mais saudáveis a usar castigos psicológicos na educação.
A vergonha
Nas punições físicas, o fator limitador é a dor: a criança é machucada fisicamente para parar de fazer o que estava fazendo. Já nos castigos psicológicos, o fator limitador é a vergonha/constrangimento ou humilhação que a criança sente.
Ridicularizar, envergonhar, humilhar ou constranger a criança é uma tática poderosa para modificar o seu comportamento. É fácil: é só fazer a criança sentir que não tem valor, não tem poder, não tem amor, ou não tem controle sobre seu ambiente. Então, quando a criança se sente assim, ela rapidamente tentará ganhar a atenção, o amor de seus pais. E quando isso acontecer, voilá! Os pais terão a ilusão de que a tática funcionou! E é por isso que envergonhar as crianças é tão comum.
Os insultos: "Seu menino safado!", "Você está sendo infantil!", "Sua menina mimada!", "Bebê chorão!"
As comparações: "Por que você não pode ser mais assim, ou assado?", "Nenhuma outra criança age como você!", "Seu irmão jamais faria isso, ele é muito melhor que você".
As desmoralizações: "Bons meninos não fazem isso", "Menina ruim!", "Sua estúpida, burra!"
As expectativas de maturidade precoce: "Cresça!", "Pare de se comportar como um bebê!", "Engole esse choro, seja forte", "Meninos grandes não choram", "Grande assim e ainda usa fralda?".
As expectativas baseadas no gênero: "Aja como homem!", "Não seja uma menininha!", "Não está parecendo um menino, mas uma mariquinha!"
As expectativas baseadas em competências: "Você não tem jeito!", "Seu desastrado!" “Tinha que ser o/a fulano/a que fez isso!”
Mensagens de vergonha e humilhação (sejam verbais, ou conseguidas através de desdenhar, ignorar, mostrar desgosto) são significativamente difíceis de apagar. Poucas coisas podem ser mais destrutivas do que comparar um irmão ao outro ou uma criança a outra para ridicularizá-la, para afirmar que suas aptidões são escassas, para apontar falhas e pouca iniciativa. Isso gera sentimentos negativos que podem resultar não apenas em ódio em relação aos pais, mas em sentimentos de inferioridade e outros efeitos a longo prazo.
Quero conversar muito sério aqui: a verdade é que esses sentimentos de desvalorização e depreciação (causados pelos castigos psicológicos) podem causar cicatrizes profundas que podem demorar muito tempo para sarar (isso se um dia sarar). Isso porque as crianças são mais vulneráveis.
Vamos a seguir analisar porque essas atitudes têm potenciais efeitos danosos a curto e longo prazo e não são educativas.
O que é envergonhar?
A vergonha tem como função fazer com que a criança modifique seu comportamento através de sentimentos negativos sobre si mesmas. Geralmente envolve um comentário (direto ou indireto) sobre o que a criança é, fazendo com que ela se sinta mal, inferior. Ou seja, envergonhar dá à criança uma imagem negativa sobre o que ela é, não sobre o que ela fez (seu comportamento). E quando focamos em tratar só o comportamento, rapidamente pensamos em usar castigos ou táticas de envergonhar a criança, para que ela faça o que queremos.
Como pais, tendemos a usar a vergonha quando nos sentimos exaustos, irritados, frustrados, e quando sentimos a necessidade de controlar nossos filhos. Ou seja, atos que envergonham funcionam como válvula de escape para frustação dos pais: envergonhar libera raiva, e faz o envergonhador se sentir melhor – mas só temporariamente.
Embora seres humanos nasçam com a capacidade de sentir vergonha, ninguém nasce envergonhado. A vergonha é uma emoção aprendida, que começa a se manifestar por volta dos 2 anos de idade, quando a criança aprende uma linguagem e percebe sua própria imagem. A propensão de se envergonhar numa situação específica é aprendida, ou seja, sempre que há vergonha, há um envergonhador. Nós aprendemos a nos envergonhar porque alguém que nos é importante nos envergonhou. Mensagens de humilhação são muito mais poderosas se vierem de quem é próximo, de quem amamos, admiramos, e é por isso que o seu uso pelos pais pode ter efeitos muito profundos nas crianças (embora mensagens humilhantes de professores, irmãos e colegas possam também machucar a autoestima da criança).
Se consideramos que as punições verbais ‘funcionam’ porque mudam o comportamento da criança, estamos limitando perigosamente nossa visão da criança ao que conseguimos ver. Só vemos (e tratamos) a ponta do iceberg e ignoramos o interior da criança: as emoções que estão por trás de seu comportamento e o sofrimento causado pela vergonha.
Mas não há espaço para a vergonha?
John Bradshaw, em seu livro ‘Healing The Shame That Binds You’ (3) sugere que uma vergonha saudável venha do impacto claro de nossas ações nas nossa relações. Ela não vem de outras pessoas nos chamando de safados ou ruins.
A vergonha pode ter um papel saudável para os que têm maturidade suficiente para serem totalmente responsáveis por suas ações. Por exemplo, adolescentes ou adultos que cometam ofensas não podem ser reabilitados ao menos que sintam uma vergonha genuína por suas ofensas. Então, a vergonha não é sempre indesejável.
O problema é que envergonhar tem sido usado muito frequentemente e inapropriadamente, o que pode ser chamado de vergonha tóxica. Bradshaw diz que a vergonha tóxica é induzida nas crianças em todas as formas de abuso infantil, sendo que o incesto e outras formas de abuso sexual podem causar uma vergonha tóxica particularmente grave.
O custo da vergonha – o que dizem os estudos científicos?
Até bem recentemente, pouca consideração era dada aos possíveis efeitos danosos dos castigos emocionais e verbais, como envergonhar/constranger as crianças. Atualmente, psicólogos e cientistas têm se esforçado para estudar a vergonha em vários aspectos, incluindo como ela afeta as relações pessoais e a sociedade em geral (4).
Um estudo encontrou uma correlação entre agressões verbais e menor autoestima e desenvolvimento escolar em crianças (5). Um estudo recente (6) correlaciona a vergonha com desejo de punição. Os indivíduos que foram envergonhados têm mais chances de serem agressivos e de exibirem comportamentos autodestrutivos (7,8). Outros estudos mostram que a vergonha faz com que as pessoas se fechem para relacionamentos, se isolem, que tentem compensar esses sentimentos profundos com atitudes de superioridade, bullying, autodepreciação, perfecionismo obsessivo, e em alguns casos com comportamentos hostis e de fúria (9). Em casos severos, sentimentos de vergonha obsessivos podem contribuir para desenvolvimento de distúrbios mentais, uma possibilidade até recentemente ignorada. Nesse sentido, pesquisadores estão descobrindo conexões entre uma infância de humilhações e vergonha e condições como depressão (10), ansiedade (11), vício em drogas e comportamentos arriscados (12), distúrbios de personalidade, transtorno de obsessão compulsiva, distúrbios alimentares, fobias e disfunções sexuais (13).
Além disso, castigos verbais que envolvem frequentemente um constrangimento da criança são extremamente frequentes, ocorrendo em quase todas as casas e escolas. Um estudo canadense descobriu que somente 4% das crianças não tinham sido alvos de comentários de vergonha de seus pais, incluindo rejeições, diminuições, terrorismo, críticas destrutivas ou insultos (14). Esse estudo mostra claramente que envergonhar a criança é comum não só em famílias abusivas, como também é aceitável e comum em famílias gente boa.
Vergonha, auto-estima e ciclo vicioso
A imagem que temos de nós mesmos (nossas habilidades, qualidades, nossa natureza) é construída desde a primeira infância, através do que ouvimos sobre nós de quem amamos, de que se importam conosco. Então, as crianças se percebem da maneira que são percebidas pelos pais e cuidadores. Se estão constantemente recebendo mensagens de que são más, não valem nada, são burras; elas acabam correspondendo às expectativas, resultando na internalização da mensagem de que são inerentemente más. Ou seja: a autoestima determina o comportamento da pessoa, de modo que as crianças vão agir conforme se sentem interiormente. Se se sentem mal, se acreditam que são más (porque ouviram isso repetidamente), se comportarão mal. Infelizmente isso pode resultar num ciclo vicioso de humilhações. A criança se comporta mal, então ouve que é má, e corresponde à expectativa, se comportando mal novamente. Esse ciclo pode perpetuar até que os pais mudem de atitude.
Como exemplo, uma menina de 10 anos derruba seu suco e imediatamente começa a respirar ofegante até hiperventilar de tanta ansiedade, e exclama em voz alta: "Eu sou estúpida, muito estúpida!" Claro, essas foram as mesmíssimas palavras que ouviu de seus pais, repetidamente. Como ela vivia com medo do julgamento de seus pais, aprendeu a envergonhar a si mesma do mesmo jeito que foi envergonhada.
No entanto, às vezes, as crianças viram a mesa de forma negativa: elas reclamam que perderam todo o controle sobre suas vidas e acham então outra pessoa para controlar – geralmente alguém menor e mais vulnerável que eles (15, 16).
A vergonha inibe a expressão de todas as emoções – com uma exceção ocasional – da raiva. Pessoas que se sentem envergonhadas tendem a se expressar nos extremos: paralisar e inibir as emoções, ou com explosões de hostilidade e raiva, algumas vão trocando de um extremo a outro (14). Não há uma expressão corporal definida da vergonha, que permite que nos dissipemos dela. E essa é a razão pela qual os efeitos da vergonha duram por um longo tempo.
Vergonha e empatia
Com tudo isso, concluímos que a vergonha tem o poder de controlar o comportamento, mas não ensina empatia. Quando rotulamos uma criança frequentemente de safada ou algo parecido, ela rapidamente se preocupa consigo mesma e com a falha de agradar, aprende a se rotular, mas não aprende nada sobre como se relacionar, sobre como considerar ou compreender os sentimentos dos outros.
Para que a empatia se desenvolva, crianças precisam que nós mostremos como os outros se sentem. Ao chamar crianças de safadas, por exemplo, não indicamos nada à criança sobre como nós nos sentimos em resposta ao seu comportamento. As crianças não conseguem aprender a se importar com os sentimentos dos outros, ou como seu comportamento afeta os outros, enquanto estão pensando: ‘há algo de errado comigo’.
A única base verdadeira para moralidade é um sentimento profundo de empatia para o sentimento dos outros. Empatia não é necessariamente o que motiva o bom comportamento. Somos muito ingênuos de confundir obediência baseada na vergonha com comportamento motivado pela moralidade, e, inclusive, estudos recentes discutem essa questão e propõem que punições (físicas e psicológicas) diminuem a autoestima e enfraquecem as habilidades de resistir a tentações (17, 18).
Na melhor das hipóteses, envergonhar repetidamente leva ao conformismo superficial, baseado em desaprovação de escape e busca por recompensas. A criança aprende a evitar a punição ao se tornar submissa e obediente (e o mesmo é verdadeiro para as crianças submetidas a castigos físicos). Esse jogo de ‘boas maneiras’ não foi necessariamente baseado em respeito real e interpessoal.
O estudo ACE- o impacto dos traumas de infância a longo prazo
Um grande estudo visou entender as associações entre traumas de infância e consequências sociais e saúde a longo prazo. Guarde esse nome, esse é um dos maiores e mais importantes estudos da atualidade sobre o tema (que aliás ainda está em andamento pois ainda há muito o que se compreender), o ACE (Adverse Childhood Effects, em português Efeitos Adversos na Infância).
*Material sobre os estudos ACE (em inglês) pode ser encontrado na referência (19).