Por Raquel Marques
Provavelmente você, como eu, foi educada para arrumar um emprego. Desde pequenas nossos pais estavam atentos ao que poderiam nos oferecer quanto a educação, informação e socialização, de maneira a facilitar ao máximo nosso ingresso ao mundo do trabalho. A melhor escola possível, inglês, informática e até datilografia (eu fiz!). Alguns fizeram cursos técnicos, outros cursos livres e houve ainda quem começou a trabalhar muito cedo e aprendeu tudo na prática. Fazer currículos, saber se comportar em entrevistas, conquistar um emprego e mantê-lo era tudo o que precisávamos para garantir o sustento e nosso futuro.
Contudo, parece que este jogo já mudou. Com as alterações nas regras trabalhistas, novos requisitos para a aposentadoria e a própria mutação constante do ambiente de trabalho, para qual futuro devemos educar nossos filhos?
QUAL FUTURO NOS AGUARDA?
O estatístico e analista de riscos líbero-americano Nassim Nicholas Taleb, no livro “Antifrágil: Coisas que se Beneficiam com o Caos”, diz que um equívoco comum nos esforços de “futurologia” é adicionar coisas a partir de nossa perspectiva atual. O mundo muda tanto, e tão rápido, que é muito difícil imaginar o que será de fato criado.
Mas é possível, com muito mais assertividade, prever o que provavelmente se extinguirá. Trabalhos que possam ser substituídos por máquinas, pela inteligência artificial ou tarefas repetitivas, caminham rapidamente para o fim. Do mesmo modo, proteção trabalhista, carreiras estáveis e aposentadoria (tal como entendemos hoje) serão cada dia mais raros.
Qual o impacto que estas mudanças trarão para profissões tradicionais como medicina, engenharia ou direito? O quanto do trabalho hoje realizado por humanos será delegável à tecnologia e demandará muito menos pessoas para sua execução?
Um robô com inteligência artificial será capaz de julgar um processo ou escrever uma peça? Robôs já são excelentes auxiliares em cirurgias. Será que os teremos também atuando no diagnóstico? Projetos de engenharia poderão alcançar seu desenho ótimo através da informação dos requisitos por parte de uma pessoa e deixando a máquina decidir a solução? São realidades factíveis.
Segundo o sociólogo italiano Domenico de Masi, em “Ócio Criativo”, a fronteira mais dificilmente alcançada pela tecnologia é a criatividade. A criatividade que propicia as artes, as invenções, a criação do futuro que queremos. Domenico defende que a criatividade é o grande território humano e o que será verdadeiramente demandado cada vez mais no ambiente de trabalho. Além da criatividade, acrescento mais uma no cenário improvavelmente substituído pela máquina: o contato humano, o toque, a escuta, a acolhida. Até por questões biológicas, um humano olhando nos olhos, empatizando conosco ou tocando nossas mãos é algo imbatível.
Seja nos processos de cura, de educação ou entretenimento, ainda que mediada por computadores, a presença de outra pessoa faz toda a diferença. Da soma da criatividade com a sensibilidade humana, derivo que a política, a deliberação coletiva dos caminhos da humanidade, é algo intrinsecamente nosso. E se a máquina chegar perto vamos botar para correr, não?
Paralelo a isso, a expectativa de vida aumenta. Vamos viver muito e, talvez, consigamos vencer a morte. O documentário “Quanto Tempo o Tempo Tem”, disponível no Netflix, traz contribuições interessantes sobre as possibilidades atuais do transumanismo, os impactos disso na previdência, nas formas de organização social, na desigualdade (que talvez deixe de ser apenas de renda, mas que irá separar as pessoas entre as que morrem e as que possuem recursos para adiá-la indefinidamente) e na forma como ocuparemos nossos 300 anos de vida, ou mais!
Há dez anos não usávamos Facebook ou smartphones. Talvez fosse muito mágico acreditar que estaríamos com um aparelho de bolso, financeiramente acessível, que nos proporcionaria a qualquer momento ou lugar todo o conhecimento do mundo e a infinidade de aplicativos que facilitam nossas vidas. O que encontraremos nos próximos dez?
PARA QUAL FUTURO PREPARAMOS NOSSOS FILHOS?
Apesar das mudanças todas, alguns aspectos na educação das crianças permanecem os mesmos há décadas ou séculos. As escolas dedicam-se muito na transferência de conteúdos do passado, e pouco se preocupam com o desenvolvimento de competências; valorizam pouco a criatividade e as artes; estimulam insuficientemente o autodidatismo; exageram na expectativa de obediência e conformismo; incentivam pouco a iniciativa e busca por soluções.
Apesar do mundo ter mudado muito, a espinha dorsal dos processos educativos continua a ser a formação de um adulto dócil e mecanicamente produtivo. Dentro de casa, a maior parte das famílias ainda sobrevaloriza a apreensão dos conteúdos formais, as notas altas, as crianças que acatam sem questionar, que não sujam, que não inventam, que não expressam seus desejos e sentimentos. Continuamos a premiar as pessoas que apenas se encaixam.
A questão que fica é: neste mundo amorfo que vivemos e que aparentemente vai piorar, talvez não existam mais caixinhas para se encaixar. Cada um precisará criar a sua. Você e seus filhos serão capazes de lidar com tanta liberdade e vazio?
ALGUMAS AÇÕES TALVEZ AJUDEM A COLOCARMOS NOSSAS CRIANÇAS EM UMA POSIÇÃO MAIS FAVORÁVEL EM MEIO A TANTAS MUDANÇAS
Foco em comunicação
Ajude as crianças a se expressarem. Saber dizer com clareza o que quer e o que precisa. Ser capaz de fazer esta comunicação pessoalmente, por escrito ou através de novas mídias, como o vídeo. Todas estas são competências aparentemente fundamentais. Mais do que nunca, quem não é visto, quem não se expressa, não é lembrado ou considerado.
Simplicidade
Tão importante quanto saber ganhar dinheiro talvez seja saber o que é, de fato, imprescindível para viver. Ser capaz de postergar gratificações, controlar desejos, não confundir consumo com entretenimento ou posses com valor pessoal pode ser algo muito libertador. Quem precisa de pouco para viver talvez seja o que está mais próximo de ser verdadeiramente rico.
Iniciativa e solução de problemas
Qual espaço damos em nossas rotinas para que nossos filhos possam dirigir seu tempo, observar as demandas e propor soluções? Tudo é treino e, quanto antes começarmos, mais hábeis eles estarão quando adultos. Incentivá-los a aprender fazendo e escolher possibilidades nunca testadas é fundamental. Se parece trabalhoso e amedrontador em pequena escala e sob nossa supervisão, quando os danos são controláveis, imagine depois! É importante eles se acostumarem a assumir riscos, fazer escolhas e dar conta de suas consequências. Do corte de cabelo à receita nova de bolo; do copo que quebra no chão a ter que explicar para a professora que não fez a lição.
Negociação e vendas
Perceber o mercado, identificar oportunidades, saber comprar, vender, negociar, divulgar. Seja atuando diretamente no comércio, oferecendo serviços ou negociando seu talento e sua força de trabalho, as competências ligadas à negociação e vendas serão cada dia mais preciosas. Como veterinário, cantor, advogado, médico, operário, cabeleireiro ou professor de ioga, as habilidades comerciais podem ser um diferencial imprescindível para a realização profissional. Participar de feira de trocas de brinquedos, vender limonada na porta de casa ou ajudar os pais no comércio podem ser experiências bastante úteis por toda a vida.
Além disso, conviver na diversidade, ser autoconfiante e independente, desenvolver a persistência e o comprometimento, também são experiências úteis neste intuito de tornar nossos filhos adaptáveis a um futuro mutável.
Precisamos descobrir o equilíbrio entre o autocuidado, o trabalho e o descanso. Com a expectativa de vida cada vez maior e a possibilidade de aposentadoria formal em ameaça, é preciso traçar planos para que estejamos ativos e funcionais mesmo na velhice avançada, capazes de produzir e se autossustentar. Não é mais razoável esperar chegar aos 60 anos para viver, nem ter a expectativa que teremos uma renda após uma certa idade.
Devemos nos preparar para trabalhar por muitos anos, por isso precisamos aprender e ensinar o equilíbrio, vivendo a vida aqui e agora, e sem descuidar do futuro. Apesar do medo que as mudanças trazem, o fim do modo industrial de trabalho, que aprisiona corpos e mentes em tarefas burocráticas e repetitivas, pode ser uma boa oportunidade para quem souber e conseguir viver de maneira criativa.
Por fim, vamos permanecer atentas ao risco de precarização do trabalho, gritando sempre por direitos que garantam o mínimo aos trabalhadores. Contudo, o futuro talvez guarde formas alternativas de distribuição de renda, com a renda básica de cidadania. Onde estaremos em dez, vinte ou cem anos? Tudo depende de como aplicarmos nossas habilidades mais humanas: a criatividade, a sensibilidade e a política.