Meu aniversário e o aniversário da minha filha estão chegando. Semana que vem celebramos 5 anos de caminho conjunto, construído sobre a superação de desafios, aprendizados mil, revoluções pessoais e uma dose cavalar de amor. É inevitável que eu me lembre de todo nosso percurso, das coisas que vivemos juntas, do quanto a experiência da maternidade me transformou, da revolução que aconteceu em mim, de quantos ciclos consegui romper – às custas do enfrentamento de processos bastante dolorosos, mas de fundamental importância, não posso mentir. Então me lembrei de duas situações que vivi há 3 anos e meio e de um texto que escrevi sobre elas… Naquela época, eu não imaginava que escreveria um livro sobre criar filhos sem palmadas, eu não imaginava que perderia meu pai tão cedo, não imaginava que aquele acolhimento que sem querer ofereci a uma menina e à sua mãe seria, de certa forma, o meu caminho de vida. Ontem, eu e Clara estávamos conversando e eu disse que ela era uma menina muito valiosa para mim. Isso não é novidade. Todos os dias desta vida conjunta, sem exceções, dos mais tranquilos aos mais difíceis, eu faço questão de dizer a ela o quão importante, especial e amada ela é para mim e por mim. Isso acontece há 5 anos. Todos os dias. O que aconteceu? Aquilo que naturalmente acontece: ela introjetou esse discurso. E quando eu perguntei se ela sabia o que era algo valioso, ela respondeu: “Sei. É algo especial. Tipo eu, que sou muito especial. Sou a filha mais especial do mundo”. Eu jamais disse isso a ela, pois não trabalho com comparações. Mas é assim que ela se sente. E é uma grande e profunda tristeza saber que tantas crianças e tantos adultos seguem pela vida se achando péssimos e imprestáveis. Talvez porque tenha sido somente isso que ouviram durante toda sua vida…
Lembrei deste texto, escrito há 3 anos e meio. Da discrepância de formas de cuidado. Das diferenças de concepção de mundo. De como tantas pessoas escolhem o caminho da dor quando poderiam escolher o do amor. E, sem que percebam, estão pavimentando o caminho de suas vidas. Com dor. Ou com amor.
*********
A vida cotidiana é um pote farto de histórias. Ontem, acompanhei meu pai em uma pequena cirurgia em um hospital público aqui em Florianópolis, um procedimento relativamente simples com duração estimada em cerca de 1 hora e meia. Chegamos ao hospital às 11:30 e saímos às 18 horas, um interminável chá de espera que me permitiu vivenciar diferentes experiências. Sobre a cirurgia em si, excelente: equipe atenciosa, cuidadosa e que deixou a mim e a ele – principalmente – tranquilos sobre todo o procedimento, gente bacana que arrancou diversos elogios de todos. Saímos de lá também elogiando o atendimento recebido e felizes pelo fato de que muitas pessoas receberam, ao longo de todo o dia, atendimento realmente condizente com sua condição de fragilidade momentânea que um problema de saúde traz. Aproveitei a longuíssima espera para colocar minha leitura de coisas úteis e fundamentais (ironia, por favor) em dia: devorei dois livros de tirinhas dos insubstituíveis Calvin e Haroldo. E muito do que eu ia lendo, ia vendo ao vivo nesse livro de crônicas que é o cotidiano. E, como não poderia deixar de ser, vão aqui alguns esquetes desse emocionante stand up tragicomedy da vida real.
Cena 1 – Os Bem Criados
Estou eu imersa na leitura fascinante de Calvin e Haroldo, enquanto meu pai fazia amizade com metade da população flutuante do hospital, sentada ao lado de uma senhora que ora costurava uma linda colcha de patchwork para o natal, ora cochilava com a agulha na mão. Eis que, logo à nossa frente, uma menininha linda com a idade aproximada da Clara, começa a chorar sentidamente, e do choro passa aos berros, obviamente acordando a senhora ao lado do sono que ela nem percebeu que estava tendo.
– Ah essa lei da palmada… Agora não pode bater e dá nisso – diz em minha direção, olhando por cima dos óculos. Obviamente, mantive o silêncio, pensando “Minha Nossa Senhora da Militância, me impeça do ativismo. Grata”. Não conseguindo comentário adicional de minha parte, a senhora continua.
– Pense se eu tive filhos que choraram assim em público. Mas nunca! Foram sempre muito bem criados. Porque educação a gente dá assim, no dia-a-dia. Imagine, chorar assim. Isso aí é falta de laço!
Então comecei a conversar com ela.
– Então a senhora tem filhos bem criados, bem educados, é? Que coisa boa!
– Eu, imagine! Gente da melhor qualidade, disciplinada, muito bem educada. Nunca fizeram esse papel aí.
– E como a senhora os educou? Eu tenho uma filhinha de 1 ano, é sempre bom compartilhar experiência.
– Ah, minha filha. Era um olho na criança, um olho na cinta. Que criança a gente tem que manter ali, na ponta da vara. Pensa se eles fizeram esse escândalo público aí alguma vez?!
E a pequenininha chorava cada vez mais forte, aquele chorinho sentido que dá até soluço. Eu já estava quase me levantando pra tentar ajudar, de repente oferecer o sling que eu sempre levo na bolsa mesmo quando minha cria não está comigo, quando uma moça sentada ao lado dela fez exatamente isso: levantou-se com um sling de argolas, ofereceu para a avó da guriazinha, que aceitou na mesma hora, pegou a guria dos braços da mãe, que já não sabia mais o que fazer e, com a ajuda da moça desconhecida, a colocou no sling e saiu passeando como uma grande novidade, me deixando ali com a cara de boba ocitocinada mais feliz do pedaço. Aqui em Floripa isso é muito comum, muita gente usa sling e é bem frequente encontrarmos bebês sendo slingados. E lá vem ela, a senhora:
– Ah lá, a frescura. Se passou o choro, era frescura. Vê se no meu tempo tinha esses trecos esquisitos aí. Esse povo é muito cheio de nove horas.
– O que a senhora fazia quando seus filhos choravam assim?
– Eles NÃO choravam assim, minha filha – diz a senhora bem enfaticamente – ou era couro no lombo.
– Sei.
Silêncio.
– A senhora está aguardando algum procedimento?
– Sim, vou fazer uma cirurgia das vistas. E tu?
– Eu estou acompanhando meu pai. Ele também vai fazer essa cirurgia.
– Ah, ó lá. Isso é que é filho. Larga o que tá fazendo pra acompanhar um pai ou uma mãe.
– A senhora tá sem acompanhante?
– É, filha, tô sozinha. Diz que alguém vem aí mais tarde, mas duvido.
– Mas e os filhos da senhora, os bem criados?
– Ah, esses… esses aí mal falam comigo. Depois que cresceram ganharam asa, minha filha, mal lembram que têm mãe. Pra tu vê, né? A gente se esforça pra dar o de melhor pra eles e quando crescem nem te recompensam.
– Ô essa lei da palmada, né?
– Ô, minha filha! Se eu tivesse boa, era couro no lombo de novo.
Cena 2 – Amábiles
E eu lá nas minhas tirinhas Calvinistas. E percebo um rostinho bem por cima do meu ombro direito. Olho pra trás e tem uma menininha linda espiando as folhas do livro que eu estava lendo. Me viu olhando, e ficou toda sem graça.
– Oi – digo eu.
– Oi – diz ela.
– Tudo bem?
– Tudo.
– Como é seu nome?
– É Amábile.
– Amábile?! Que nome lindo! Como o da Madre Paulina!
– Isso mesmo! – diz a mãe dela, feliz por alguém ter reconhecido a intenção – Você conhece o Santuário da Madre Paulina?
– Sim, conheço. Estive lá esse ano com minha família.
– Você é católica? – pergunta a mãe.
– Não.
– É. Eu também não sou. Dei o nome Amábile em homenagem a uma enfermeira que me atendeu quando ela nasceu – apontou pra menina -, que chamava Amábile em homenagem à Madre Paulina.
– Ai que lindo! Ela deve ter sido ótima pra você, né?
– Ótima?! Ela me salvou!
Silêncio. Imagine minha cara.
– Essas coisas é que valem a pena, né? Saber que não importa o que estejamos vivendo, sempre tem alguém que pode estar disposto a nos ajudar.
– Foi uma santa, aquela mulher. Foi ela que me ajudou o tempo inteiro. Muito amável mesmo, como o nome.
Eu toda emocionada, enquanto a pequena Amábile folheava o livro que eu havia emprestado.
– Por que você está lendo história de criança se você é adulta? – pergunta a pequena Amábile.
– Porque eu sou uma adulta que gosta muito de criança.
– Vai ver que você é uma criança disfarçada de adulta né?
– Eu acho que sou mesmo, Amábile.
– E o que você vai pedir pro Papai Noel?
– Sabe que eu não sei?
– Pede então pra minha mãe ficar boa?
Soco no estômago.
– Sua mãe está doente?
E a mãe começando a chorar ali atrás…
– Está.
– O que ela tem?
– Não sei, ela não me diz. Pra mim ela finge que não está, mas eu sei que está.
– Pode deixar, Amábile, esse vai ser o meu pedido pro Papai Noel. Vou fazer uma cartinha hoje.
– E junto você pede um fantoche? Pra mim, esse.
– Peço sim. Vou pedir um pra você e outro pra minha filha.
– Você tem filha?
– Eu tenho, bem pequeninha, menor que você.
– Tem uma foto?
Mostro pra ela uma foto no meu celular.
– Que linda que ela é, né? – ela diz.
– Eu acho, muito fofinha.
E ela:
– Olha, não fica doente. Se não ela vai perceber e vai ficar muito triste.
– Mas sabe, Amábile, se eu ficar doente, vou fazer de tudo pra melhorar, pra poder cuidar dela muito tempo. E eu tenho certeza que, ela estando junto de mim, vou melhorar mais rápido.
– Isso! É assim que tem que pensar – diz Amábile. E vira pra trás – Viu, mãe? Não precisa se preocupar. Vamos fazer TUUUUDO pra melhorar. E eu já estou com você, vai ser rápido.
E nessa hora eu recebi dessa mãe o olhar mais cúmplice que eu já recebi até agora nessa experiência como mãe.
Mães existem de todos os tipos, de todos os credos, saudáveis ou doentes, amáveis ou agressivas, felizes ou tristes, realizadas ou frustradas, que deixam a vida de mãe passar como um simples e corriqueiro evento ou que se dedicam ativamente a isso. O importante é lembrar sempre que o caminho que se percorre numa vida como mãe é a gente mesmo que pavimenta. Esse chão pode ser ladrilhado de pedacinhos coloridos ou pode ser, simplesmente, um grosso, cinza e impermeável asfalto. Quem escolhe e constrói o chão do caminho somos nós, essas mulheres que viraram mães. Mas quem percorre o caminho que vamos ladrilhando são eles, essas pessoas que nos foram emprestadas para serem amadas e cuidadas, os filhos. E se lá na frente, percebermos que o nosso caminho se tornou também o caminho dos nossos filhos, é porque fizemos um bom trabalho. Mas isso só se saberá lá adiante.
Enquanto isso, ser mãe é essa coisa que se aprende sendo.
Todos os dias.