O site Cientista Que Virou Mãe começou quando, há 5 anos, eu decidi deixar para trás 15 anos de formação em neurociência e psicobiologia para estudar a violência que as mulheres sofrem no momento do parto, e que há cerca de 5 anos chamamos de violência obstétrica aqui no Brasil. E isso porque não consegui passar batido pelo conhecimento de que mulheres eram violentadas no momento do nascimento dos seus filhos. Passei noites sem dormir imaginando o que seria isso, porque isso aconteceria, porque não se discutia isso, o que estava havendo. Decidi interromper um pós-doutorado em outra área de pesquisa e começar tudo de novo, prestar prova, ser selecionada, voltar a ser aluna, abrir mão da renda que eu gerava e aceitar a inconstância, começar uma pesquisa numa área que eu não conhecia – a Saúde Coletiva – e ler relatos de mulheres que haviam sido violentadas nos nascimentos dos filhos. Minha filha tinha poucos meses de vida. Hoje ela vai fazer 6 anos. Foram portanto 5 anos exposta a leituras horrorosas. Todas as madrugadas ou a maioria delas. Sobre violência, sobre banalização da condição humana, sobre mulheres que tinham suas vidas dilaceradas, porque não é possível compreender a violência obstétrica sem compreender a violência contras as mulheres de maneira ampla. Junto a isso, meu envolvimento com o ativismo, minha transformação em mulher feminista, permitiu que eu fosse aprendendo junto a outras mulheres. Aprendi coisas que jamais havia problematizado, coisas que eu não imaginava, fiz o doloroso exercício de olhar para meus privilégios e me ver egoísta tantas vezes para, só a partir de então, lutar contra isso em mim mesma. Chorei muito por ter sido atacada pelas próprias mulheres, até que eu entendesse que dói mas é assim, é assim que a gente aprende que por mais que tenhamos dor e esteja doendo, sempre haverá uma mulher cuja dor é maior, é negligenciada, não é ouvida. Aprendi a fazer a autocrítica e continuo todos os dias a aprender. Sofri muito nesse caminho e esse sofrimento não tem importância nenhuma, sinceramente, porque há muitas outras mulheres sofrendo infinitamente mais que eu. É um caminho muito árduo, muito duro, muito doloroso, que eu aceitei percorrer e do qual não sairei simplesmente porque não tem volta.

Desde que soube da notícia do estupro coletivo da moça, dessa menina que teve sua vida transformada pra sempre, estou me sentindo mal. Fisica e emocionalmente. Porque eu sei que não são 33 homens. Eles não moram só nas favelas, como essa mídia nojenta tenta pintar, marginalizando a violência que está inserida em todos os lugares. Eles não são só traficantes ou envolvidos com o tráfico. Eles também são brancos, eles também vestem jalecos, eles também são graduados, também são pós-graduados, também são chefes de departamento, também são ministros recebendo estupradores auto-declarados, também são pais de família, também são o vizinho lavando o carro, também são o avô que dá colo ao neto, também são o feministo desconstruidão, também são o cara que manda o vídeo da moça com quem saiu ontem, nua, pros amigos, também é o ciclissta que defende ciclovias mas objetifica mulheres que pedalam, também é o cara de boa família que se faz de bacana e sacaneia duas, também é o esquerdista que critica a lei do feminicídio porque acha exagero. Eles são muito mais que 33. Eles vivem com a gente. Estão  nas nossas mesas. Nas nossas vidas. E dizem que não são.

Essa dor toda me toma, me invade, me despersonaliza, me fere há 5 anos. E ainda assim ela é ínfima porque sou privilegiada por ser uma branca de ascendência indígena, graduada, pós-graduada, com acesso a meios de geração de renda e informação. Estou terminando meu segundo doutorado, defendo até o final do mês de julho/2016, e esse doutorado me dilacerou. Não sou mais quem fui quando comecei nem nunca mais serei. Pedi duas prorrogações porque não conseguia escrever. Passei incontáveis noites em frente ao computador lendo relatos de moças violentadas durante o parto e chorando. Não sei dizer quantas vezes vomitei lendo relato. Não sei dizer quantas vezes tive crises sérias de choro no meio da madrugada. Tapa, corte, amaração, toque retal, apalpação, xingamento, laceração induzida, costela quebrada, insinuação sexual. Isso sem falar na violência contra o bebê e focando só na mulher. E tudo isso naturalizado, invisibilizado, visto como normal. E tudo isso sendo questionado como "será que foi violência mesmo?" ainda que em termos academicistas vindos de avaliadores de revistas. Tive que lutar com todas as forças para que um estado de depressão clínica não me tomasse. E ainda assim a dor é diária e não passa. Culpo-me por meus privilégios, sinto-me impotente, sei que por mais que eu faça, não dará conta, não será suficiente. 

Estou terminando essa tese com muita dor. Ter que dar ares acadêmicos e interpretar toda essa violência, toda essa bestialidade, toda essa barbárie contra nós do ponto de vista de muitos autores, a maioria homens, acabou comigo. Especialmente porque sei que é apenas uma tese e não ajudará a mudar muita coisa… Do ponto de vista acadêmico, não haverá mudança. Do ponto de vista das mulheres, talvez, porque sei que ter falado sobre isso foi o ponto de transformação para muitas delas. E é muito difícil escrever formalmente sabendo que talvez aquilo não ajude muita coisa, e abrir parêntese, e citar alguém, e colocar um ano, e fechar parêntese, se quiser que minha manifestação de indignação seja legitimada. Porque eu, (Sena, 2016), não sou ninguém se não citar autores, a maioria homens.

Eu sei que não foram 33. Eu leio sobre eles. Sei os nomes de muitos, espalhados pelo Brasil, porque as mulheres falam, elas contam sobre suas dores. Não são 33.

São milhares.

Não é só uma moça de 16 anos. Somos todas. 

E pode ser que muito em breve, nem acesso a coquetéis medicamentosos ou direito à interrupção de uma gravidez fruto de estupros nós tenhamos. E a responsabilidade não será dos 33. Será de todos aqueles que banalizam todo esse mal. 

Não são 33.

São milhares.

Estão entre nós.

Talvez durmamos com eles.

Não são 33.

Não deixem que eles se escondam.

 

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