Mulheres são impedidas de entrar ou de permanecer em diferentes espaços por meio de inúmeros artifícios. Um deles, e que encontrou grande força na Ciência, especialmente a partir da época histórica do Iluminismo, é a atribuição de características diferenciais a homens e mulheres. Exemplos: aos homens, o sustento; às mulheres, o cuidado. Aos homens, as ciências exatas; às mulheres, as humanidades. Aos homens, a razão; às mulheres, a emoção. E embora já tenhamos avançado muito nos debates de gênero, nosso contexto social atual ainda é extremamente marcado por esse estereótipo que atribui às mulheres características emotivas/emocionais e, aos homens, o predomínio da razão e da mentalidade analítica. Tanto é assim que todas sabemos como somos criticadas quando olhamos e organizamos a vida a partir da razão, como se não fosse nosso direito, como se só fôssemos capazes de “sentir”, nascidas para isso. Obviamente que não estou aqui defendendo a abolição das ações guiadas pelas emoções, muito pelo contrário – inclusive, acredito que está aí uma das receitas mais eficazes para a tragédia humana, a negação de nossas próprias emoções, por mais difíceis que sejam. Meu contraponto é específico: parem de exigir e esperar das mulheres que não racionalizem as coisas, que não se guiem pela razão.

Como mulher cientista, perdi as contas de quantas vezes frases como as seguintes foram ditas para mim, fato que também se repete com outras profissionais: “Você racionaliza muito”. “Tudo para você é interpretado do ponto de vista racional”. “Deixa a vida te levar, é melhor”. Assim como também noto que essas mesmas recomendações não são feitas aos homens. Dos homens é exigido o oposto: que sejam dotados de razão e a dominem plenamente. Esse tipo de visão bipartida do mundo traz sofrimento generalizado, aos homens, às mulheres e às pessoas que não se veem nem como um, nem como outro, pois parte da expectativa de que as pessoas performem no mundo aquilo que esperam delas e não quem de fato são.

“Deixar a vida levar” é algo utópico. E desconsidera a realidade da imensa maioria das mulheres. Simplesmente porque para imensa parte de nós é simplesmente impossível deixar a vida levar sem que isso nos coloque em vulnerabilidade. E fato é que é muito mais fácil deixar a vida levar quando há uma retaguarda financeira, familiar e social que independe de você, que torne isso possível. Então se é seu marido, sua família, seus pais, a mega-sena da virada ou qualquer outra fonte de sustento financeiro que mantém sua estrutura de vida, até dá para acreditar que é possível deixar a vida te levar – o que também não nega sua possibilidade de frustrações outras. Mas quando se é uma mulher trabalhadora, quando se é mãe solo, quando se é a única responsável pelas crianças da família, quando de você depende toda uma estrutura de vida que vai para além da sua própria, tenhamos calma: nem sempre vai dar para deixar a vida levar… Parem de exigir isso das mulheres.

Isso não significa que é preciso racionalizar sobre tudo, muito pelo contrário. Significa que é importante, eu diria fundamental, que você racionalize sim, que planeje, que estruture, que tenha metas, planos, objetivos. Que construa seu plano A, seu plano B, seu plano C e, se sua saúde mental ainda permitir, também seu plano D. Porque isso reduz em muito algo que pode te afetar de maneira muito forte: sua vulnerabilidade, qualquer que seja ela. Nós não temos controle de tudo e nunca teremos, e querer ter pode custar muito caro à nossa saúde mental. Porém, há pontos da vida de uma mulher em que a racionalização, o planejamento, a estruturação precisa acontecer porque é preventiva – e como vou trabalhar com saúde coletiva se não falar de prevenção? Para todo o resto, a imensa maioria da vida, não tem jeito, a vida vai arrastar mesmo e paciência. Mas se nesses momentos de vendaval pudermos nos segurar naquilo que está sendo ou que foi bem estruturado, pode ser o que realmente nos salvará – e às crianças.

Quando as mulheres que oriento academicamente ou em mentoria e apoio materno me dizem que são criticadas porque são racionais, porque gostam de planejar a vida, porque querem viver mais com os dois pés no chão do que com a cabeça nas nuvens, sempre digo uma coisa: eu acho é ótimo.  Num mundo em que mulheres são exigidas e cobradas para que sejam apenas emotivas, ser racional e ter um pensamento estratégico pode garantir sua sobrevivência. E aí entra também desenvolver a sabedoria de dosar as coisas, permitindo soltar para a vida aquilo do qual não temos o menor controle, segurar com cuidado aquilo que nos é possível planejar e racionalizar e, o mais importante, diferenciar uma coisa da outra. Por exemplo: não dá para garantir que você estará para sempre no emprego que paga as suas contas, porque pode ser demitida, pode chegar uma pandemia e te impedir de exercer seu trabalho ou qualquer outra coisa totalmente incontrolável. Mas dá para olhar para essas possibilidades, ter consciência delas, racionalizar e, assim, construir uma estratégia que te permita sobreviver caso isso tudo aconteça.

E, definitivamente, se você é dessas pessoas que exigem das mulheres que elas sempre soltem, que apenas acreditem no fluxo da vida, que sintam mais do que pensem, reveja sua postura. Isso não dialoga nem perto da realidade da imensa maioria das mulheres. Que estejamos conectadas à mágica da vida, mas que logo na sequência possamos fazer nossos planejamentos, que possamos estruturar nossas vidas na prática, abrirmos nossas planilhas, nossas anotações, analisemos como podemos fazer para ampliarmos nossa renda, como planeja a vida para sair de um relacionamento abusivo, como entrar no mestrado e no doutorado que são o sonho de nossas vidas, como fazer para romper um ciclo de violência contra as crianças. Pés no chão, mulheres. Ainda que o coração permaneça nas nuvens.

Não vamos cair aqui no erro de achar que racionalização é sinônimo de progresso, porque quem faz isso é essa sociedade capitalista perturbadora. Mas ainda mais tóxico e problemático é achar que, por este motivo, é melhor que as mulheres se mantenham atreladas ao ideal patriarcal de moças emocionais e irracionais incapazes de racionalizar sobre a vida. A solução? Encontrar o meio termo. O que, para um grupo social – as mulheres – cujo pêndulo pendia 100% para a emocionalidade, significa vir caminhando em direção à racionalização, até encontrar o meio do caminho.

Silvia Federici fala, em um dos seus livros, sobre o reencantamento do mundo, um conceito fantástico e uma necessidade urgente. Mas, antes, ela fala sobre o ponto zero da revolução, sobre a ainda existente caça às bruxas e sobre a retirada das mulheres dos meios de subsistência. Vamos reencantar o mundo? Vamos. Mas vamos fazer isso pelo reposicionamento da luta e do entendimento de onde vem a acumulação. Que também vem da retirada da mulher dos meios de planejamento.

Sinta, chore, fique abalada, permita-se sofrer, cuide de seu sofrimento, de suas emoções, olhe para elas. Mas, na sequência, assim que estiver pronta, levante-se. Endireite essa coluna. Levante essa cabeça. Planeje-se. Dedique tempo a isso. Há toda uma estrutura se beneficiando da divisão “mulheres emocionais/irracionais”, “homens racionais”. E isso não se sustenta.

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Meu trabalho é orientar e apoiar mulheres nas diversas dimensões de suas vidas – maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico – além da popularização da Ciência e da divulgação científica. Se você precisa de apoio e orientação individualizados, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br ou nos chame pelo WhatsApp que te explicamos como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO. Você também pode se inscrever no Clube de Leitura e nos cursos online que ministro, é só entrar em contato. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Será um prazer poder te ajudar.