Por Elisa Batalha

 

Hidróxido de Sódio. Tioglicolato de amônia. Guanidina. Formaldeído. Se você conhece esses termos, bem-vinda ao meu mundo e ao mundo de muitas mulheres que já utilizaram produtos para alisar ou alterar a textura dos cabelos crespos. Dos 12 até os 40 anos, eu não me lembrei de como era o meu cabelo totalmente natural. Nem durante a gravidez. Minha ficha só caiu bem depois, quando minha filha passou a me desenhar e me ter como modelo de beleza. “Quero ter um cabelo igual ao da mamãe!”. Passei por uma transformação quando entendi que aquilo que me disseram que era defeito, ponto fraco e “apesar de” no meu corpo era para ser amado e admirado também. Uma história de aceitação, um aprendizado sobre o que é o colorismo e sobre o que NÃO fazer nem dizer se a sua cria tem cabelos crespos.

Era uma vez uma menina filha de mãe negra – no Rio de Janeiro dos meados para o fim da década de 70, usava-se a expressão “mulata”, e ninguém, bem, pelo menos ninguém que ela conhecia, problematizava o termo – e de pai branco. Essa menina e sua irmã foram criadas como “aquelas que não deram sorte”, porque apesar de seu pai, descendente de italianos, ter madeixas negras e oleosas como as do Al Pacino com as quais as meninas gostavam de brincar, e depois ter ficado grisalho sem nenhum grau de calvície, com mechas grisalhas que lembram as do Richard Gere, esse atributo capilar não foi transmitido ao fenótipo das duas irmãs.

A mãe delas – que era muito bonita, mas não se parecia com as protagonistas dos filmes que elas costumavam assistir trabalhava fora em tempo integral, mas passava quase todas as tardes de sábado no salão de cabeleireiro alisando e secando os cabelos em grandes rolinhos – os famosos “bobes” -, num demoradíssimo ritual que a menina começou bem cedo a sonhar em repetir. Todo tipo de comentário era ouvido por seus ouvidos de criança dentro desse ambiente sobre “sorte”, “cabelo bom”, “cabelo ruim”, pessoas cujos cabelos tinham encrespado devido a uma mulher ter cortado seus fios durante uma lua não propícia, ou durante a menstruação.

Pessoas que se lamentavam porque diziam ter uma avó índia com os cabelos que batiam na cintura, mas “infelizmente” o outro lado da família era diferente e por isso “tinham” que alisar o cabelo. Alisar o cabelo era um fato da vida para aqueles “que não deram sorte de não precisar”, aprendeu a menina. Essa menina – a essa altura vocês já sacaram – era eu.

E ENTÃO, NASCEU MINHA FILHA…

Bem, dos 12 aos 40 anos, eu não cogitei deixar de usar algum tipo de produto químico que alterasse o formato dos cachos – ou melhor, que os desfizesse total ou parcialmente. Produtos que ardiam, que queimavam, horas e mais horas dentro de ambientes fechados com cheiros fortíssimos de amônia, de formaldeído, pequenas queimaduras, nada disso me intimidava ou reduzia a minha determinação.

Afinal, eu achava que cabelos lisos “combinavam mais com meu rosto” (muitos profissionais repetiam essa frase), que meus cabelos, além de crespos, volumosíssimos e com fios grossos (cabelos crespos não são todos iguais, ok?) não assentariam bem em nenhum corte, que eu jamais teria uma aparência “arrumada” e “bem tratada” e que poderia ter dificuldades no dia a dia e até no mercado de trabalho (e, na prática, há pessoas que efetivamente sofrem racismo por seu cabelo em ambiente de trabalho).

Tudo era “questão de gosto”, uma vez que há mulheres brancas de cabelos lisos que fazem “permanente” para promover cachos em seus cabelos quando essa é a moda. Discurso que eu repetia, mas que no fundo sabia: não era uma questão de estética. Era de autoaceitação. Claro que algumas pessoas gostam de variar o visual, e não há problema algum nisso, mas esse não era o meu caso. O fato é que meu cabelo parecia “errado” para mim. E, depois de alisado, escovado, eu, com o couro cabeludo dolorido, às vezes ainda chorava por continuar não achando que tinha finalmente atingido um padrão. Ou por saber que aquele padrão era uma forçação de barra que se desfaria na primeira lavagem – muitas vezes adiada.

Ainda não gosto de lembrar disso. Aí veio a revolução. Aos 32 anos, tive a minha filha, Leila, num processo bastante empode- rador e que deu início a uma série de desconstruções de crenças e conceitos em mim. Não parei de usar produtos químicos nem durante a gravidez, contei os dias para os três primeiros meses passarem rápido – época em que acreditava que poderia ser menos indicada qualquer aplicação – mas não perguntei a nenhum profissional de saúde porque não queria ouvir uma proibição radical. Aumentei o intervalo entre as aplicações e por isso reduzi muito o uso de produtos para permanente afro que usava na época.

E eis que, depois do nascimento da Leila, começaram os meus estranhamentos e as ressignificações. Do mundo, sobre a vida, sobre a cidadania e os direitos das mulheres e, sim, sobre padrões estéticos que importam também e que são construídos social e historicamente. A menina se parecia muito com o pai nos primeiros meses e seu cabelo castanho claro não lembrava em nada o meu. Aos poucos foram surgindo ondas e cachos, em fios muitos mais finos e em ondas muito mais abertas do que as minhas.

Mas de repente, isso não se parecia com “sorte” na minha visão. Não se parecia com uma diferença tão grande assim. Era apenas uma das simples variações genéticas tão comuns nos seres humanos. De qualquer maneira que ela tivesse nascido ou qualquer textura que seus cabelos assumissem da noite para o dia ao longo de seu crescimento, eu ficaria maravilhada igualmente, pensei.

COLORISMO

“Por que você se importa tanto com seus cabelos? São os cabelos da sua etnia!”, repetia sempre o pai da minha filha para mim, sem compreender os traumas e falta de representatividade em que cresceram as crianças negras do país na minha geração, tenham elas a pele um pouco mais clara, como a minha, ou mais escura. Hoje em dia eu sei que se chama colorismo quando alguém diz “Mas você não é assim neeeeeeegra!” ou “Nossa, você tem traços bem finos, esse cabelo não combina com o seu rosto”.

Essa escala que ignora a ancestralidade e hierarquiza as pessoas pela cor da pele ou por estar mais próximo ou mais afastado de um padrão eurocêntrico, do estilo Barbie, é uma forma em que se apresenta o racismo e esse termo é pouco conhecido ainda aqui no país dos “pardos”. Mas foi, sim, a partir da maternidade e de todo esse jogo de reconhecimento que ela produziu em mim que minha conscientização tanto como feminista quanto como mulher negra num país racista veio à tona.

Minha filha começou a me representar nos seus desenhos com cabelos bem volumosos, jogar os cabelos para cima ao me ver acordar e dizer: – Quero ficar com os cabelos iguais aos da mamãe. Tudo em mim que eu via como “ponto fraco”, que fugia de um padrão idealizado, para ela era apenas eu. E eu não iria reproduzir e eternizar um roteiro de baixa aceitação para ela, ah não iria! Minhas fichas foram caindo e ao longo de dois anos eu usei zero produtos químicos – exceto coloração – pela primeira vez na idade adulta.

A correria da vida de mãe e profissional ajudaram de uma forma indireta nessa transição, porque já não dispunha de tempo muitas vezes sequer para me preocupar com o tamanho da raiz aparente dos meus cabelos. Não acompanhei blogs e tutoriais como algumas amigas, não segui calendário capilar (de jeito nenhum eu iria voltar a ter dia certo para lavar o cabelo novamente!), não virei uma exímia penteadora dos meus próprios cachos, compro vários cremes para hidratação e nem sempre me dou bem com eles, mas o que importa é que eu fui passando a ficar como estou agora.

Gosto mais de ler sobre feminismo e interseccionalidade do que de assistir vídeos sobre cabelos. E agora uso um black power misto em algumas mechas, com texturas diferentes dentro da mesma cabeça que são produto da minha mestiçagem AFRO – com maiúsculas imensas de autoafirmação.  De repente, o espelho fez incríveis pazes comigo, me dei o direito de fazer selfies menos preocupados e elogios inesperados e bem vindos, mas não ansiados, surgiram!

ALGUNS CONSELHOS

Pela minha trajetória e pelas muitas histórias sobre filhos e miscigenação que conheço de perto e com as quais convivo, tenho alguns conselhos para dar, mas vou resumir em poucas palavras, porque acho que minha história, assim como a história de cada uma, fala mais do que cartilhas de comportamento. Vejo crianças muito pequenas que já procuram “espontaneamente” andar sempre com cabelos cacheados presos com elásticos e isso já me deixa triste.

Fique muito atenta a qualquer sinal de rejeição que seu filho ou filha apresente em relação a algum traço da sua própria aparência e converse amorosamente, aberta a ouvir. Reveja em você, primeiro, seus conceitos estéticos para não impor ou reproduzir preconceitos nos seus filhos ou filhas. Representatividade, reforço de autoestima, respeito à diversidade são essenciais. Não trate nem deixe que ninguém seja tratado diferente por nenhuma característica física no seu círculo social.

Não faça comentários hierarquizantes em termos de beleza ou traços comparando irmãos ou pessoas dentro da mesma família por critérios étnico/raciais. Repense, e converse com outras pessoas sobre como você aprendeu o que é ou não bonito sobre os corpos. Ser você mesma é a melhor forma de mostrar às crianças o valor da autenticidade.