Camila chegou à minha vida através de um gesto de total apoio e empatia: ela se voluntariou a nos ajudar, via fanpage da plataforma CIENTISTA QUE VIROU MÃE, em um momento decisivo para nós. Não nos conhecíamos pessoalmente, eu sequer sabia quem ela era mas, como acontece com as leitoras deste site, ela me conhecia. Com toda gentileza do mundo, ela ofereceu ajuda e nós aceitamos. E foi também graças ao esforço voluntário dela que conseguimos vencer a edição 2015 do Social Good Brasil Lab, que tornou esta plataforma colaborativa possível. Estava iniciada ali uma amizade. Vira e mexe vejo em minha timeline fotos de uma bebê incrível, com legendas repletas de amor, entrega e superação de desafios. Então um dia, Camila me contou a sua história. Na verdade, a história delas. Fiquei tão emocionada que a convidei a compartilhá-la aqui. E por que? Porque poucas vezes encontramos relatos de maternidade vinda de famílias homoafetivas contadas pelas próprias mulheres que os vivem. É preciso contar, é preciso falar. Crenças infundadas só reforçam o preconceito e a ignorância das pessoas. E nós acreditamos que nada tem maior poder de envolvimento, apoio e solidariedade do que palavras sinceras e cheias de amor.

Por isso hoje, quem conta aqui sua história é a Camila. Camila é bióloga com mestrado em comportamento animal e doutorado em fisiologia (neurociência), assessora em babywearing, é casada e ela e sua esposa têm uma bebezinha incrível. Como foi que a bebê chegou às suas vidas?  Como foi o planejamento? Quais os desafios que enfrentaram e que ainda precisam enfrentar? Hoje vocês vão ler mais uma história de maternidade. Tão real quanto todas as demais. Mas com o dobro de amor. Afinal, não é sempre que a gente pode contar com a força de duas mães, não é? Camila, faço agora um agradecimento público, tanto por seu apoio num momento tão importante quanto por confiar neste veículo como porta voz da sua história. Muito obrigada.

E é com alegria que a apresento também como a mais nova escritora da plataforma CIENTISTA QUE VIROU MÃE. A partir de agora, Camila vai escrever textos a serem financiados coletivamente sobre os desafios da maternidade em famílias homoafetivas. Se já é difícil ser mãe nos dias de hoje, se enfrentamos uma série de iniquidades, é ainda mais difícil ser mãe em uma sociedade preconceituosa que não aceita que as pessoas podem amar quem elas querem, e não quem querem que elas amem. Os próximos textos dela serão possíveis de serem produzidos mediante financiamento de todos nós, que acreditamos que o trabalho de mulheres mães precisa e deve ser valorizado.

 

MATERNIDADE EM UMA FAMÍLIA HOMOAFETIVA: sim, e aí?

Por Camila Mendonça N. Jobim

Planejar uma família não é das tarefas mais fáceis. No meu caso, como parte de uma família homoafetiva, talvez tenha sido um pouquinho mais complicado. Além de todas as dúvidas e incertezas sobre trazer mais um serzinho para esse planeta, nós precisamos nos preocupar com alguns detalhes que usualmente não são motivo de preocupação para a maior parte das famílias. E não estou nem falando em relação à aceitação das nossas famílias. Isso já foi superado por aqui, e daria um texto tão grande ou maior do que o que está por vir.

Para muitas mulheres a maternidade é encarada como natural e consequência do processo de amadurecimento e continuidade da vida: essa sou eu. E para outras tantas, não é uma etapa lógica nem natural, podendo ser considerada até como desnecessária: essa era a minha esposa. Então, pode-se concluir que houve uma certa tensão em relação a termos um bebê. Sim, tivemos. Mas em consideração ao nosso relacionamento, ela procurou ajuda na terapia para entender o porquê não querer ser mãe, e felizmente mudou de ideia. A terapia não iria mudar a vontade dela. Se fosse uma convicção e se ela não estivesse disposta à maternidade, haveria um impasse. Por sorte, começamos a pensar juntas em como seria ter um bebê em nossas vidas.

Em tempos anteriores, já havíamos conversado sobre como seria quando quiséssemos ter filhos, como seria o método e quem engravidaria. Pela breve descrição acima, é fácil saber quem engravidaria… O método também foi fácil decidir: nosso relacionamento é estritamente monogâmico; assim, só seria possível que eu engravidasse através de técnica de reprodução assistida. Durante uma breve pesquisa sobre casais de lésbicas que engravidaram, vimos várias possibilidades, dentre elas algumas em que há um homem que doa voluntariamente esperma para a inseminação – seja natural, com coito, ou artificial, mas feita de forma caseira. Nestes casos, o “pai” da criança a ser gerada é conhecido e, mesmo ele optando por não fazer parte da criação, há complicações jurídicas que só fomos descobrir mais adiante. Para nós, na época, era inimaginável compartilhar as responsabilidades e prazeres da maternidade com alguém que estivesse fora do nosso relacionamento, vivendo de maneira diferente daquela que escolhemos para nós e nossa família.

Chegado o momento de darmos uma sequência mais concreta aos nossos planos, fomos a uma consulta com um médico ginecologista especializado em reprodução assistida. Ele nos explicou os dois diferentes métodos, fertilização in vitro (FIV) e inseminação intrauterina (IIU), esta última mais conhecida como inseminação artificial. Na fertilização in vitro, há o estímulo hormonal para que a mulher tenha mais óvulos maduros que o usual, a fim de que estes sejam captados e fecundados por um espermatozoide em uma placa de petri e, após o terceiro dia do desenvolvimento embrionário (pode ser após o quinto dia também), o embrião é transferido para o útero e lá se desenvolverá em feto e bebê. A inseminação intrauterina é feita sem tanto estímulo hormonal para a ovulação, e o sêmen é inserido dentro da cavidade uterina da mulher, simulando uma ejaculação, para que o óvulo seja fecundado naturalmente e a partir daí se desenvolva. As duas técnicas têm seus prós e contras. A FIV tem o custo mais alto, a mulher recebe altas doses de hormônios sintéticos e a taxa de sucesso (gravidez confirmada) é maior. A IIU tem o custo menor, a mulher recebe baixas doses de hormônios sintéticos, algumas podem até não receber, porém a taxa de sucesso é menor se comparada à FIV.

Também fomos informadas sobre a escolha do doador de sêmen. No Brasil a doação é anônima e voluntária, não havendo pagamento aos doadores. E só há um banco de sêmen em todo o Brasil, que fica em São Paulo. Há critérios para que não haja sobreposição de doador, existindo uma quantidade limitada de vezes que o material deste doador é fornecido, respeitando um limite por número de habitantes. Segundo o Conselho Federal de Medicina e a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), cada doador poderá ter uma gestação de criança de sexo diferente numa área de 1 milhão de habitantes. Para a escolha do doador, a clínica fornece uma tabela com algumas características físicas dos doadores e a gente escolhe dentre poucas opções (cerca de três possíveis doadores) e eles verificam a disponibilidade. Além das características físicas básicas, também são fornecidas informações como profissão, religião e hobby.

Com estas informações, fomos para casa com algumas páginas de pedidos de exames. Pois é… Além de termos que escolher métodos e doadores, ainda teríamos que fazer exames de sangue, ultrassonografias e histerossalpingografia (esse exame de nome complicado tem como objetivo investigar o formato do útero e das tubas uterinas). Digo “teríamos”, assim no plural, porque fizemos uma escolha: nós duas faríamos a estimulação ovariana. Essa foi uma decisão importantíssima para nós. Eu gestaria um ou dois embriões nossos, tanto emocionalmente quanto geneticamente. Neste momento, decidimos que nosso bebê poderia ser biologicamente filho de qualquer uma de nós.

Passamos pela fase das muitas injeções de hormônios na barriga e um certo descontrole emocional até o dia da captação dos óvulos e, dias depois,  passamos pela transferência dos embriões. Em função da minha idade e de ter um histórico sem problemas que pudessem dificultar a gravidez, o código de ética do Conselho de Medicina permitiria que eu recebesse dois embriões. E assim foi feito: um com os meus genes e outro com os genes da minha esposa. Duas semanas depois da transferência, fiz o exame de sangue (antes fizemos o da farmácia). Quatro semanas depois, fizemos a ultrassonografia de confirmação.

Positivo.

Na ultrassonografia pudemos ver um embrião. Eu estava grávida de um bebê, o nosso bebê.

E fomos contar para as famílias que estávamos grávidas.

No começo, foi uma surpresa para todo mundo. Nós não havíamos contado sobre o tratamento… Já seria muita incerteza durante todo o processo, não queríamos muita pressão nem ficar contando os detalhes enquanto acontecia. Eram momentos de muita ansiedade e quisemos nos resguardar de tudo que pudesse aumentar a tensão. Apesar da surpresa, nossas famílias acolheram bem a ideia de serem avós, tios, bisavós e tios-avós. E foi aí que nos surpreendemos com o quanto um bebê pode trazer amor para a convivência das pessoas.

Nós convivíamos bem como casal dentro de cada uma das famílias. Em alguns momentos tivemos nossas dificuldades, mas estas já estavam superadas. Com a gravidez, vivemos uma grande melhoria na relação com as nossas famílias. O bebê chegaria ao mundo recebendo amor de todas as partes, superando até os nossos mais utópicos pensamentos. Onde havia resistência e um certo distanciamento, os laços se estreitaram um pouco mais a cada centímetro que a minha barriga crescia. E isso foi espetacularmente bom. Houve um período de nossa vida como casal que imaginávamos que talvez nossos filhos não chamariam nossos pais de avós.

E os centímetros da barriga aumentavam, o amor da nossa família ficava cada vez mais evidente e nós começávamos a nos sentir um pouco mais seguras em criar um bebê numa família com duas mães. Esse amor e acolhimento foram e são imprescindíveis para nos fortalecer para lutar contra qualquer tipo de discriminação em relação a nós. Somos privilegiadas, sabemos disso.

Durante a gravidez, tivemos que cuidar de questões burocráticas em relação ao registro da nossa filha. Sim, esqueci de falar: estávamos esperando uma menina. Eu procurei a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual do Rio de Janeiro e me informei sobre como deveríamos proceder para ter o registro dela nos nossos nomes. Lá, os advogados me orientaram a procurar o Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual da defensoria pública do Estado do Rio de Janeiro. E, assim feito, fomos orientadas a marcar um horário no núcleo com toda a documentação que tínhamos sobre o nosso relacionamento, assim como do tratamento. No dia marcado, levamos toda a documentação e a advogada nos disse que nosso processo seria tranquilo, era apenas solicitar o registro de dupla maternidade. O método que optamos para engravidar nos favoreceu. Quando há um terceiro envolvido ou quando não há documentação em relação ao tratamento, esse processo se torna mais complicado e foge do registro de dupla maternidade, passa a ser um pedido de adoção, acrescentando morosidade ao processo.

Nossa filha nasceu. E foi um parto lindo, diga-se de passagem. Mas não tínhamos em mãos a decisão do juiz da vara de família sobre nosso pedido. Ela foi registrada apenas no meu nome e o nosso maior receio era o plano de saúde não a aceitar como dependente da minha esposa. Surpreendentemente não tivemos impasse e, como o plano de saúde é pela empresa em que minha esposa trabalha, o pedido foi feito por eles e correu tudo bem. Alguns meses depois, acompanhando on-line o processo, vimos que ele tinha sido encaminhado para o parecer de uma assistente social. Fomos ao fórum para uma entrevista e ela veio fazer uma visita em nossa casa. Segundo esta assistente, isso são normas do Ministério Público para qualquer processo da vara de família. Passados mais alguns meses, finalmente foi expedido o mandato para a “correção” da certidão de nascimento dela.

Dos pareceres emitidos para a sentença final, ficamos um tanto aliviadas. Estamos em tempos onde o fanatismo e a privação de direitos emerge, mas pelas palavras do Judiciário, podemos ter esperanças. O Ministério Público se manifestou: “O arranjo familiar apresentado pelas requerentes ainda sofre fortes preconceitos por parte da sociedade e pela ausência de previsão legal, mas já há decisões judiciais favoráveis a adoção de criança por casal homossexual, portanto igualmente razoável o reconhecimento de dupla maternidade nos casos de reprodução assistida por casal homossexual, sendo a parentalidade daquela que não geriu, reconhecida pelo afeto. (…) O não reconhecimento desta entidade familiar consistiria em afronta aos princípios constitucionais da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa”. A Juíza também: “A decorrência óbvia do reconhecimento da união homoafetiva como família é a noção de homoparentalidade, pois, se pessoas do mesmo sexo podem constituir família, o exercício desse direto passa, inexoravelmente, pela possibilidade de formação de vínculo de filiação em que figurem, como pais, os dois companheiros; ou, como mães, as duas companheiras homoafetivas”.

De posse do registro de nascimento da nossa filha em mãos já corrigido, a primeira sensação que nos veio era de que nada poderia nos atingir. Éramos uma família de fato e nada tiraria nossa tranquilidade. Ok, somos uma família de fato, e isso não é motivo de dúvidas, mas que nada tirará nossa tranquilidade… Bom… Isso já não me parece ser tão verdade assim. Em alguns momentos nos perguntam do pai da nossa filha ou mencionam o doador com o termo pai, e sempre que isso acontece eu repito: “Ela não tem pai, ela tem duas mães!”, ou corrijo, dependendo do contexto. Isso agora não é um grande transtorno, só um incômodo, e espero não ser quando ela crescer e tivermos que ficar repetindo várias e várias vezes. O fato de repetir não é tão incomodo quanto as caras que por vezes vemos como reação à nossa fala. Mas também vemos caras sorrindo, e isso é importante.

Além de sempre respondermos que ela tem duas mães quando surge o assunto, sempre respondemos com “É nossa” quando alguém pergunta para uma das duas: “É sua filha?”. Acreditamos que agir de forma natural em relação à família que formamos pode mostrar para outras pessoas que nossa família é normal. Para mim, esconder nunca foi uma opção. Sempre pareceu que o que é escondido é errado, e estamos longe de estarmos erradas em nos amar e formar uma família baseada nesse amor. Além disso, dar visibilidade à nossa família pode ajudar a desmistificar os estereótipos que ficam no imaginário das pessoas. Somos normais, felizes e vez ou outra temos um problema que buscamos resolver. Além disso, nossa filha é linda, simpática, saudável e visivelmente feliz, as pessoas se encantam por ela. Confesso que pode ter uma pitada de exagero de mãe, mas é só uma pitada. E ao se depararem com essa garotinha, não tem como dizer que uma família de duas mães não é um ambiente adequado para se criar um filho.

Dos desafios que encontramos pelo caminho, o que mais dói é quando há quem não dê os devidos créditos de mãe à minha esposa. Por ela não ter gerado nossa filha, algumas pessoas se comportam e exigem dela comportamentos não condizentes com os de mãe. Para alguns, ela é como se fosse o pai. Como se o pai não tivesse as mesmas obrigações da mãe. No nosso entendimento, o que nos difere em relação ao cuidado com a nossa filha é que eu gestei e amamento, mas isso não me torna mais ou menos mãe. Eu apenas fiz por nossa pequena coisas diferentes que minha esposa. E nós nunca seremos iguais, não agiremos iguais, mas seremos mães. E estamos juntas para sempre no que diz respeito à criação, educação, carinho e compreensão por nossa filha. Então, se algum dia vc se deparar com duas mães, nunca pergunte e nem espere que uma seja mãe e a outra pai. Sempre serão duas mães.

O futuro nos reserva muitas surpresas. Criar uma filha em uma família dita não tradicional pode ser um desafio e tanto. Mas também entendo que este não é só um desafio nosso, muitas famílias estão sendo desafiadas e vencendo dia a dia, e conosco não será diferente. Acreditamos que o amor é alicerce para qualquer construção, e aqui alimentamos esse fortalecimento a cada dia e temos contribuições de várias outras partes.

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MATERNIDADE E FEMINISMO – É possível exercer uma maternidade que não nos aprisione

– PEQUENO GUIA PARA A MULHER QUE PRECISA SE DIVORCIAR

– DESFRALDE COM RESPEITO – Entre fraldas, calcinhas e cuecas

– AMAMENTAÇÃO E CÁRIES NO BEBÊ – Quebrando paradigmas

 

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