“Algumas pessoas parecem considerar uma criança como o barro saído das mãos de um oleiro. Começam a modelar a criança e sentem-se responsáveis pela obra acabada. Isso é um grande erro. Se é assim que você se sente, então você andará curvada ao peso de uma responsabilidade que não há razão alguma para aceitar. Se você aceitar essa ideia de um bebê como organização em marcha, estará então livre para se interessar bastante pela observação do que acontece no desenvolvimento do bebê, enquanto desfruta o prazer de reagir às suas necessidades”1
No começo do ano, meu filho ganhou um body do Harry Potter. Ele é um grande fã e ficou muito feliz com o presente. Estava ansioso em poder usar a nova roupa na creche para mostrar a seus colegas, mas já na primeira vez, o entusiasmo do Daniel com seu personagem favorito foi ficando cada vez mais contido. Ele parou de catar galhos no meio do caminho para me desafiar a uma luta de magias, por exemplo. E também deixou de querer vestir a roupinha. No primeiro momento, eu não relacionei os dois eventos e achei que a “febre” pelo bruxo estava passando.
Foi então que, num dia de correria, enquanto eu o arrumava para ir à creche, vesti o body do Harry Potter e ele demorou uns minutos para perceber. Quando viu, disse que iria trocar, porque, com aquela roupa, ele não iria. Perguntei o motivo e ele me disse que Harry Potter era coisa de bebê. Insisti, perguntando se havia sido os colegas que afirmaram aquilo, ele assentiu. Troquei a sua roupa enquanto falava que não havia relação entre essas coisas.
Foi então que me dei conta do que aconteceu. O body é realmente uma vestimenta de bebê. É daqueles que têm uma abertura no ombro para facilitar a troca e que prendem embaixo. É para crianças de 24 meses, mas ainda cabia no meu filho de 4 anos. O que aconteceu foi que as crianças falaram do body, mas ele entendeu que o problema estava no símbolo do Harry Potter.
Além disso, a confusão piorou porque em algum momento ele entendeu que ser bebê era ruim. E não só ele, os colegas da creche também, já que se “xingam” de bebê.
Esse episódio me levou a uma reflexão sobre a forma como as crianças criam conceitos e sobre como as mensagens podem ser entendidas de diversas formas.
O que falamos aos nossos filhos é processado à maneira deles. E não há controle sobre isso: “Você pode saber o que disse, mas nunca o que o outro escutou2”. Podemos nos responsabilizar pelo que dizemos, mas não pelo que é interpretado. Isso com qualquer pessoa, seja ela adulta ou criança. A grande diferença é que as crianças estão formando conceitos que servirão de base para entender ideias mais complexas. Ou seja, um conceito básico mal compreendido poderá gerar equívocos que vão se acumulando ao longo do tempo. Como se na infância fôssemos assentando a pedra fundamental e, sobre ela, depositamos todos os outros conceitos. Um dia, nos damos conta de que há algo errado, de que algo não faz sentido. E é preciso um trabalho de escavação, de modo a encontrar o mal-entendido que acabou gerando uma série de equívocos.
Toda pessoa desenvolve um mundo interior subjetivo, que determina significativamente suas ações no futuro. Estas impressões são tão fortes que novas experiências se incorporam a essa estrutura constituída. Elas não alteram necessariamente a estrutura, mas reforçam o mundo subjetivo e disso constituem a verdade pessoal.
Não é à toa que a psicanálise faz da infância sua morada e que a figura da mãe esteja sempre rondando as sessões de análise, afinal dentro de um contexto em que as mães são solitariamente as cuidadoras primárias de seus filhos, é através do discurso delas que se formam os primeiros conceitos.
Para além da necessidade de se incluir outros atores nos cuidados com as crianças, para que elas possam ter um repertório maior de discursos a fim de formarem seus conceitos, é necessário também que se tenha atenção com o que se faz e o que se diz às crianças. E, mais importante ainda, é preciso estar aberta a ouvir o que elas têm a dizer sobre o mundo, sobre suas ideias e sobre as pessoas que as cercam.
E não é sobre as crianças serem esponjas ou serem caixas vazias as quais vamos alimentando. Absolutamente não. Crianças são sujeitos capazes de entender, de elaborar e de formar ideias. A diferença é que nós, adultos, estamos subindo paredes, enquanto elas estão trabalhando na fundação da casa. Os discursos são os materiais fornecidos a essa construção, mas a forma como a casa é construída diz respeito a cada criança na sua constituição enquanto sujeito. Não há duas casas iguais. Cada criança é um universo em si mesma. O discurso é o objeto, mas o pensamento é formado pela subjetividade do sujeito, pela forma como ele assimila aquele objeto.
Certa vez escrevi um texto, que foi publicado aqui na plataforma Cientista Que Virou Mãe, sobre os limites do cuidar. Nele, eu defendi que ainda mais importante do que criar sem violência, era conseguir se desculpar perante o ato violento. Porque quando há o pedido de desculpa, há também a validação do sentimento ruim gerado no outro. Além disso, reconhece-se a violência do ato e, portanto, que houve uma falha. Assim, não deixamos espaço para que se gere a ideia de que a culpada pela situação foi a criança, e de que ela, de alguma forma, foi merecedora daquilo. Evitamos, então, que a criança forme uma ideia valorativa negativa sobre si mesma, visto que se deixou claro que a falha veio de quem cometeu a violência e não dela. Reconhece-se o sofrimento.
Neste mesmo sentido, penso ser necessário estar atenta a toda a dinâmica de relacionamento. Não podemos evitar que em algum momento falemos algo que possa gerar um mal-entendido. Mas podemos estar atentas ao que os nossos filhos criam a partir das experiências que vivem. Para isso, é preciso dar voz às crianças e vê-las como sujeitos capazes que são.
Comemoramos os marcos de desenvolvimento e dizemos: “Como você está crescido!” e não percebemos que a mensagem que chega junto é a de que ser bebê não é tão legal. Pedimos para que eles digam “Por favor, obrigado, de nada” e não percebemos que esvaziamos seu significado. Que este pedido acaba sendo entendido como um código social e não como um signo de reconhecimento e gratidão. Pedimos para que eles beijem e abracem, por querermos que eles sejam amáveis. Mas acabamos ensinando que os seus corpos têm que estar disponíveis.
No relato presente no início do texto, o mal-entendido não teria acontecido caso o conceito de que ser bebê é ruim não tivesse sido estabelecido. Isso foi acontecendo gradualmente. Ele foi ouvindo repetidas vezes como já estava crescido, que fazia coisas que apenas meninos grandes conseguiam. E foi sendo repetido não apenas por nós, pais, mas também entre familiares e a escola. Tanto que as outras crianças da creche já tinham formado o mesmo conceito.
E a questão não é de se gerar culpa. Repito: nós continuaremos a emitir mensagens que serão entendidas de maneira diversa daquela que queremos comunicar. Contudo, é preciso se assumir responsável pelo material que fornecemos às crianças. Nós somos responsáveis pelo discurso que emitimos; então, precisamos também procurar entender como esses conceitos estão chegando até nossos filhos.
O relacionamento deve ser entendido como uma troca. Não há relacionamento se vemos as crianças como caixas vazias, onde apenas depositamos coisas e não pegamos nada.
E dar voz presume escutar e não apenas ouvir. Aquele que apenas ouve, conversa com o espelho, pois espera ouvir aquilo que já sabe. Escutar é abrir mão de si mesmo e olhar para o outro. Para isso, é preciso entender o outro como sujeito capaz de elaboração. As crianças processam as ideias à sua maneira e, portanto, ainda que o discurso tenha sido originalmente emitido por nós (pais), a ideia assimilada por elas é algo totalmente particular. Sendo assim, quando nós nos dispomos a ouvir o que nossos filhos têm a dizer, temos que estar abertos a escutar algo novo e não presumir o que eles irão falar.
Escutar é ter a chance de conhecer o outro podendo percorrer o caminho de mãos de dadas. É na escuta que a relação é construída, é onde o vínculo se fortalece. Não tome nunca como bobagens conclusões que seus filhos compartilham. Se a consideração parecer carente de sentido, escute e se deixe percorrer o caminho que ele traçou.
A possibilidade de falar sobre algo é muito importante no processo de elaboração. À medida que falamos sobre o que pensamos, a ideia toma forma e corpo. É através da linguagem que se desfaz o mal-entendido. Tanto para quem fala, como para quem escuta. A fala é como um jogo de ping-pong. Você recebe uma ideia, formula e traduz em palavras na intenção de que o outro te entenda. Ela pressupõe o outro, precisa da comunicação. A linguagem é troca.
Entendo também que não é nada fácil se propor ao diálogo quando estamos falando de crianças, porque elas ainda estão em processo de aprendizagem de comunicação através das palavras. Infância vem de “infant”, que por sua vez, significa sem fala. Todavia, crianças se comunicam de outras formas. Inclusive, a pedagogia Reggio Emilia3 trabalha em torno de um conceito provocativo que eu gosto muito: as cem linguagens da criança. Cem linguagens porque a criança comunica sempre, ainda que sua fala não tenha corpo de palavra.
Estabelecer uma relação de escuta com nossos filhos é fundamental para reconhecer neles alguém diferente de nós. Quando escutamos, ou seja, quando estamos abertos a ouvir algo que não vem de nós, estamos reconhecendo o sujeito que fala conosco. Estamos possibilitando um exercício de alteridade. Gosto muito de como essa palavra é dita em alemão: anderssein, que poderia ser literalmente traduzida por “ser o outro”.
Conseguir tirar o meu “eu” do foco faz com que o outro se torne visível, porque somente assim eu consigo deixar de me ver para ver quem eu quero entender. A grande diferença entre a empatia e o exercício da alteridade é que para aquela é necessário se pôr no lugar do outro, enquanto nesta é preciso se deixar de lado para que as ideias do outro sejam, de fato, entendidas.
Não estou dizendo que a empatia seja algo ineficaz ou inválido. Se colocar no lugar do outro é algo que deveríamos prezar em todas as relações, seja com um desconhecido até com pessoas próximas e amadas. O que afirmo é que a alteridade está um passo à frente da empatia. Para se colocar no lugar do outro, não deixamos de lado nossas histórias, ideias e conceitos. Apenas “vestimos os sapatos alheios”, mas com os nossos pés. Alteridade é reconhecer que aqueles pés que vestem aqueles sapatos percorreram caminhos muitos diversos dos meus e, portanto, lhes trouxeram ideias que eu não conseguiria conceber.
A empatia faz com que nos liguemos pela semelhança, e a alteridade é o reconhecimento da diferença, é saber que existe o outro além de mim.
A criança está passando pelo processo de formação do eu e, segundo as teorias psicanalíticas, essa formação vai se dar a partir do outro. O sujeito se constitui a partir do outro. E nós, enquanto “outros” neste processo de formação do sujeito, devemos reconhecer a criança como sujeito autônomo e não a tratar enquanto uma massa a ser modelada. Enquanto pais, devemos sempre estar atentos a proporcionar um ambiente favorável ao desenvolvimento de todas as potencialidades de nossos filhos. A potencialidade é deles, nós apenas facilitamos o processo.
Entender a criança como sujeito capaz, que muito se difere de uma massa de modelar, é tirá-la da condição alienante de objeto. A escuta e a validação do desejo são ferramentas indispensáveis quando nós, enquanto outro na relação, damos valor àquele que está em processo de constituição do eu.
A idealização dos filhos é muito importante no período de gestação para que possamos nos preparar para sermos mães. É preciso fantasiar a relação para que possamos assumir um papel novo em nossas vidas. Mas, com o nascimento, é preciso também que a fantasia dê lugar à realidade para que a relação entre sujeitos possa ser construída. E para que ela possa ser de fato uma relação entre duas pessoas diferentes, e não apenas de pessoas falando com seus reflexos.
Portanto, exercer a alteridade com os filhos é ver neles pessoas diferentes daquelas que somos. Pessoas que, ainda que possuam muito do que somos, têm formas de pensar e desejos diferentes dos nossos. O reconhecimento dessa diferença vem através da escuta. É assim que nos abrimos à diferença, que reconhecemos neles o sujeito e que somos capazes de desfazer mal-entendidos. Ao escutar, passamos a entender a maneira como nossos filhos processam e elaboram suas ideias. É desta forma que o discurso materno deixa de ser a verdade absoluta e passa a ser mais um discurso. Um discurso bem forte e importante, é verdade, mas um discurso que se reconhece falho e que aceita a interferência alheia é também um discurso menos opressor e libertador.
Quando há o reconhecimento do sujeito e também há validação do desejo é possível que a criança cresça segura de quem ela é sem ter que cumprir constantemente a expectativa dos pais. As crianças têm consciência de sua situação de dependência em relação aos cuidadores e de como o amor deles por elas é fundamental para o seu desenvolvimento. Quando esse amor está condicionado à expectativa do outro, a criança pode passar a exercer a função de espelho, refletindo o que se espera dela. Alice Miller chamava isso de falso self, descrito no comovente livro traduzido por “O Drama da Criança Bem Dotada”, que no original em alemão (Das Drama Des Begabten Kindes), entende-se mais por criança sensível emocionalmente do que dotada de capacidades cognitivas.
“As dificuldades de vivenciar e desenvolver os próprios sentimentos, genuínos, levam a uma permanência do vínculo, que não permite a individuação. Os próprios pais encontraram no falso self do filho a confirmação que buscavam, um substituto para sua própria estrutura inexistente; a criança, incapaz de construir sua própria estrutura, é dependente dos pais, primeiro de maneira consciente, depois inconsciente. Não pode confiar nos seus próprios sentimentos, não chegou a experimentá-los, não conhece suas reais necessidades, é um completo estranho para si mesmo. Nessas circunstâncias, não pode se separar dos pais, e mesmo como adulto estará sempre dependente da aceitação de pessoas que representam seus pais: parceiros, grupos e, principalmente, os próprios filhos. O legado dos pais são as lembranças inconscientes, reprimidas, que nos impelem a esconder o verdadeiro self de nós mesmos muito profundamente. À solidão no lar dos pais segue-se, mais tarde, o isolamento dentro de nós mesmos”.
Filhos idealizados são aqueles que correspondem a expectativas criadas por nós. Portanto, são um reflexo de nós mesmos. Mas filhos idealizados só existem na fantasia. As crianças são sujeitos que, ainda que tenham muito de nós, possuem sua própria maneira de ver o mundo e de se pôr nele. Por isso, mais importante que conseguir se colocar no lugar dos nossos filhos, é aprender a estar aberto para conhecer quem eles são de fato, é deixar de procurar a semelhança e passar a celebrar a diferença.
Acredito que a grande maioria dos pais consiga, um dia, enxergar os filhos reais. Contudo, abandonar a fantasia criada por eles mesmos pode ser tão difícil que demore muito tempo a acontecer e só aconteça depois de muita insistência do próprio filho em se fazer enxergar tal como ele realmente é. A desilusão em relação à idealização que criamos de nossos filhos é libertadora tanto para eles como para nós. E a escuta atenta é uma ferramenta indispensável no processo de se conhecer e de dar voz aos filhos reais, aqueles que estão muito além da nossa fantasia.
Desiluda-se, acolha o filho que vive fora de você!
Agradecimentos à Andressa D’Ávila pela revisão.
1 WINNICOTT, D. W. A criança e seu mundo. Trad. Álvaro Cabral. 6ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2015. P. 30.
2 Frase atribuída ao psicanalista francês Jacques Lacan.
3 Loris Malaguzzi foi um italiano que desenvolveu a pedagogia conhecida como Reggio Emilia. Ele é autor do seguinte poema: “A criança é feita de cem./ A criança tem cem mãos/ cem pensamentos/ cem modos de pensar/ de jogar e de falar./ Cem sempre cem modos de escutar/ de maravilhar e de amar./ Cem alegrias para cantar e compreender./ Cem mundos para descobrir. /Cem mundos para inventar/ Cem mundos para sonhar./ A criança tem cem linguagens/ (e depois cem cem cem)/ mas roubam-lhe noventa e nove./ A escola e a cultura lhe separam a cabeça do corpo./ Dizem-lhe: de pensar sem mãos/ de fazer sem a cabeça/ de escutar e de não falar/ de compreender em alegrias/ de amar e de maravilhar-se só na Páscoa e no Natal./ Dizem-lhe: de descobrir um mundo que já existe/ e de cem roubaram-lhe noventa e nove./ Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho/ a realidade e a fantasia/ a ciência e a imaginação/ o céu e a terra/ a razão e o sonho/ são coisas que não estão juntas./ Dizem-lhe enfim: que as cem não existem./ A criança diz: ao contrário, as cem existem.
4 MILLER, Alice. O drama da criança bem dotada: como os pais podem formar (e deformar) a vida emocional dos filhos. Tradução de Claudia Abeling. Ed. e rev. e atual. – São Paulo: Summus, 1997. Pg. 24.