Sabe esse papo de que o mundo é outro, de que os conceitos mudaram, de que a revolução feminista mudou radicalmente a forma como as pessoas enxergam as mulheres?  Você sabe que isso é engodo e não procede, não é? Você sabe que isso é uma grande falácia, não sabe?
É possível ver com cada vez mais clareza que o levante feminista da década de 60 foi somente um preâmbulo, um fortíssimo sinal de alarme para que aqueles que escancaravam seus modos machistas de viver passassem a dissimulá-los, passassem a se recolher um pouco, a disfarçar sua conduta, esconder seus reais pontos de vista por trás da pinta da “modernidade”. Não mudou as pessoas nem o que elas pensam sobre as mulheres. Apenas as fez agirem de maneira hipócrita, numa suposta e falaciosa aceitação de que “mulher também é gente”. Afinal, ser machista se tornou demodê, dizer-se “homem feminista” (para já com isso, amigo, para agora) virou isca para desavisadas, se tornou moderninho, hype e descolado, e se tem uma coisa que ninguém quer é parecer antiquado ou retrógrado, ainda que essa seja a sua essência. Então, finge-se que.
Mas, porque a máscara coletiva pesa e, pesando, permite que vislumbres da realidade apareçam, é possível facilmente nos depararmos com atitudes, individuais ou coletivas, que transparecem claramente a base de fundo machista sobre a qual está (bem mal) alicerçada a nossa sociedade.
Mulheres trabalham em quase todas as frentes e conquistam os mais altos cargos. Mas ganham menos.
Mulheres, inteligentes, tem justamente a inteligência a seu favor nas relações afetivas. Mas é com lingerie vermelha num corpo escultural que ela é retratada pela mídia.
Mulheres passam em primeiro lugar nos vestibulares aos quais se submetem. Mas ouvem que “não se fazem mais processos seletivos como antigamente”.
Mulheres cientistas ganham prêmios e são homenageadas, mas ainda representam apenas 40% de todos os pesquisadores cadastrados na Plataforma Lattes.
Mulheres estão lutando para conciliar carreira bem sucedida com filhos criados junto a elas. Mas deixar o filho brincando sozinho alguns momentos enquanto tenta trabalhar e dar conta de duzentas coisas em pouquíssimo tempo, é visto como “preteriu o filho pela profissão”. Ou “preteriu a profissão pelo filho”.
Mulheres que trabalham em home office, além dos cuidados normais que “se espera que tenham com a casa” (veja bem…), ainda têm que ralar no físico e no emocional: dar conta de tudo que acontece ali no “tudojuntoemisturado”,  uma coisa para pessoas com superpoderes que eu, por exemplo, estou a umas trinta e sete encarnações de adquirir.
Mulheres que trabalham fora de casa fazem no mínimo três turnos.
Portanto, não consigo aceitar facilmente esse lance de que “a mulher venceu, está onde quis estar, lutou e conseguiu”. Não venceu. Não está onde quer estar. Não conseguiu.

Estamos em pleno andar da carruagem, em pleno desenrolar da história. Nossas corajosas companheiras que há 50 anos subiam num pedaço de madeira e gritavam “Peraê! Comigo não!” e que arregaçaram as mangas e mostraram os muques, apenas começaram uma longa história atualmente em (doloroso) curso. O duro caminho da conquista está em pleno curso, todos os dias, em todas as situações, em todas as medidas provisórias e leis, nas piadas, nas propagandas comerciais, nos estilos de carro, nas roupas, nas músicas, nos poemas, na televisão, nas revistas, nas rádios, nas universidades, nos artigos científicos, nos discursos (inclusive dos que se dizem a favor das mulheres mas não se constrangem por fazer piadinha tentando diminuir mulheres suas conhecidas), nas orações, nos jogos de sedução, na profissão, no maternar, no paternar, nas relações afetivas, nas relações familiares, na sala de parto, na foto de capa de seus amigos, na forma como eles falam da ex-namorada, nas reuniões dos escritórios, na morte.

Sabe aquele papo de que o mundo é outro, de que os conceitos mudaram, de que a revolução feminista mudou radicalmente a forma como as pessoas enxergam as mulheres? Mentira.
Estamos todos os dias na mesma luta de há 50 anos. E se alguém te disser que não pensa de maneira machista, que te respeita como mulher, que admira a sua luta e deseja sinceramente que, por meio dela, você conquiste ainda mais, esteja mais atenta às atitudes e às mensagens subliminares que às palavras. Porque palavras são produtos cerebrais, frutos do seu córtex frio e impessoal. Mas as atitudes, a linguagem corporal, ah…. Essas vêm dos recônditos de onde vive o instinto.
Palavras, como diria Shakespeare, “são como os patifes desde o momento em que as promessas as desonraram. Elas tornaram-se de tal maneira impostoras que me repugna servir-me delas para provar que tenho razão“.
O feminismo, essa tal “libertação dos padrões opressores fundamentados em regras de gênero”, essa busca pelo respeito à mulher em suas escolhas, em suas ações, em seus valores, em suas singularidades, em seu corpo, em seu tempo, não foi. Nem será.
Está sendo.
E não pense você que engana, homem, dizendo-se “a favor dele”. Está na sua cara, está no seu gesto, está nos seus modos e exigências. Ainda que não esteja em suas palavras.
E se você acha que o melhor movimento feminino ainda é o dos quadris, você não é machista. Você é só mais um babaca.
Desculpa, Millôr… não é nada pessoal.

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