Caso você tenha uma orientação religiosa, é possível que a tenha buscado para sentir-se em harmonia com sua vida, seu deus – ou seus deuses -, para buscar explicações para as mazelas do mundo, para sentir como palpável o que não é, para sentir-se menos solto e solitário nessa louca jornada que é a vida.
Mas entenda: não interessa qual a sua religião – se é que você tem uma. Também não interessa qual é a minha. Não interessa se você se diz espírita, católico, evangélico, protestante, ateu, muçulmano, budista, de outra religião ou sem uma.
E isso não interessa simplesmente porque seguir uma determinada religião não te faz melhor em nada. Apenas mostra que ao invés de ler Camões, você lê Guimarães Rosa, em uma analogia bastante simples.
O que interessa mesmo é o que você faz com sua crença, o que ela fundamenta, o que ela te incentiva ou não a fazer, que tipo de pensamentos e atitudes ela te inspira, que influência ela exerce sobre você a ponto de que você a reproduza na sociedade em que vive, no seu entorno, em sua família, na criação de seus filhos – que formarão uma nova sociedade no futuro.
Seja qual for sua religião, se você trata como inferior um outro ser humano, se você trata como escória quem é igual a você, então você não é digno.
Se você não reconhece o direito que todos têm de serem respeitados pelo simples fato de serem seres humanos, então você não merece qualquer respeito.
Estou escrevendo isso para falar sobre Marco Feliciano.
Embora no contexto atual ele dispense apresentações, vale dizer que é um deputado de 40 anos que assumiu no início de março deste ano a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Proteção de Minorias. Se ele é pastor da Assembleia de Deus Catedral do Avivamento, que é vinculada à Assembleia de Deus, que é uma igreja evangélica com cerca de 20 milhões de fiéis, isso não interessa. Nesse país, não interessa o deus para quem você diz amém: se você tem um cargo público é ao povo que você deve servir. Não ao seu deus. Para servir ao seu deus, vá para sua igreja.
E deixe-o lá ao ir defender o povo.
No Brasil é assim – ainda é.
Marco Feliciano tem se mostrado racista, homofóbico, machista e misógino (misógino: aquele que despreza o sexo feminino). Tudo isso em uma só pessoa. E não estou discutindo esse fato. Estou apenas apresentando dados reais. Já passamos da fase da discussão, partimos do ponto de que isso já foi mostrado. Pule para a próxima etapa, avance uma casa. Você consegue.
Marco Feliciano é contra o movimento feminista por achar que ele “pode tornar a sociedade majoritariamente homossexual“. Ele acha que as mulheres não devem ter os mesmos direitos dos homens, que a mulher não deve ser estimulada a trabalhar, que isso anula sua parcela como mãe, que todas as mulheres devem ser mães e que só se deve gozar dos prazeres de uma união aqueles que têm filhos. Ele acha que pessoas do mesmo sexo quando unidas destroem as famílias e formam uma sociedade que só têm homossexuais.
Marco Feliciano também acha que os negros são personas non gratas por terem sido alvo de uma maldição feita por Noé. Noé, aquele, o da arca. Feliciano declarou, em sua defesa no Supremo Tribunal Federal, após denúncia feita contra ele: “Citando a Bíblia (…), africanos descendem de Cão (ou Cam), filho de Noé. E, como cristãos, cremos em bênçãos e, portanto, não podemos ignorar as maldições“.
Assim, ele incentiva que aqueles que se dizem cristãos também amaldiçoem os negros e os tratem
como subservientes. Bem, eu não sei se você sabe qual é a real história da maldição de Noé sobre Canaã contada pela Bíblia – um dos muitos livros de religião que existem no mundo. Mas eu sei. Não porque eu a siga – não sigo. Mas porque se me disponho a escrever sobre algo, quero saber realmente do que se trata. Fui atrás de saber o que a Bíblia diz sobre essa tal “maldição”, e inclusive te convido a conhecê-la ao final desse texto, para que forme sua própria opinião. Vale a pena, garanto.*
Marco Feliciano condena a homossexualidade e manifesta sua homofobia quando diz que “O amor entre pessoas do mesmo sexo leva ao ódio, ao crime e à rejeição“.
Se você concorda com ele, está expressando a sua homo
fobia também, aceite isso. Assuma-se. Não é preciso coragem para assumir-se homossexual. Coragem é preciso para assumir-se homofóbico. Se você diz que é homossexual, isso não diz nada sobre quem você é. Se você diz que é homofóbico, opa! aí sim! – diz muito sobre quem é você, o que pensa e o que defende…
José Leon Crochik diz, no livro “Preconceito, indivíduo e cultura” que “preconceito diz mais da pessoa que o exerce do que aquela sobre a qual é exercido”. Bingo.
Marco Feliciano também afirma que “O problema é que depois do casamento religioso [de pessoas do mesmo sexo], eles podem querer, como já brigam pela adoção de crianças. E nós sabemos, a própria psicologia diz, que a criança criada por dois homens ou criada por duas mulheres tem uma problemática sem tamanho“.
É por aí que eu quero ir, motivada por essa última frase de Feliciano, sobre o que torna as crianças “problemáticas”.
Quero discutir quais são as possíveis repercussões desses comportamentos na vida das crianças.
Quais as influências de uma sociedade preconceituosa, discriminatória, racista e homofóbica na vida das crianças? O que pode acontecer com uma criança que vive em um ambiente carregado de declarações desse porte, que incentivam a segregação, a discriminação, a não aceitação do outro como o outro é? Que tipo de sociedade futura estamos criando quando incentivamos em nossas crianças esse tipo de comportamento?
Vera Lúcia Neri da Silva, da Universidade Federal Fluminense, em um trabalho intitulado “As interações sociais e a formação da identidade da criança negra” afirma:
“No desenvolvimento cognitivo da criança negra, as ideias e imagens negativas imputadas às suas características corporais e à sua identidade cultural e histórica, tidas como atributos de desvalor, tornam-se (…) um imperativo para a sua aprendizagem das diferenças e das similaridades”.
Isso significa que aquilo que é atribuído de negativo a ela será incorporado à sua concepção de
diferença, à constituição de sua individualidade. Assim, uma criança negra que convive em um ambiente onde ela é considerada amaldiçoada, secundária, subserviente, tende a incorporar esses valores pejorativos à sua identidade. Isso é muito importante de se ter em mente quando uma coletividade aceita algo do nível das manifestações proferidas pelo Sr. Feliciano: está-se contribuindo para a formação de um ambiente rico em preconceito onde muitas crianças estão crescendo, influenciadas e mediadas por essas crenças infundadas impregnadas de sentimentos de desvalor.
A autora lembra ainda que, de acordo com Vygostky, “a linguagem enfocada em forma de palavra age decisivamente na estrutura do pensamento da criança, sendo um instrumento de comunicação e uma ferramenta psicológica básica para a construção de seus conhecimentos“.
Quando um funcionário público, do povo por definição (não de qualquer igreja, do povo), assume um cargo como a presidência da Comissão de Direitos Humanos e vai a público dizer o que disse esse senhor, associando africanos e seus descendentes a um personagem que recebe o nome de Cão e que está associado a uma maldição, há que se lembrar que a essa mensagem não estão expostos somente adultos. Muitas crianças, adolescentes e jovens em processo de construção de sua subjetividade também estão. Pessoas em formação que não somente estão expostas a essa mensagem baseada em fanatismo religioso como – o que é pior – estão expostas às repetidas defesas de tais palavras.
Mas você já se perguntou o que estará sentindo uma criança ou um jovem negro que está exposto a essa manifestação coletiva de desamor, de desvalor, de segregação e tentativa de imposição de menos valia? Não será, pois, hora de se perguntar?
Ainda deste trabalho, ressalto o seguinte trecho:
“Para Silva (1995), a criança negra – e também a branca – constrói seu autoconceito através de sua inserção no mundo, a partir dos julgamentos e comparações aos quais é submetida, tornando-se sensível ao tratamento benevolente ou hostil de outros sujeitos de seu meio social“.
Pense sempre que a produção histórica e a reprodução das práticas racistas também afeta as crianças, a maneira como elas se veem no mundo hoje e a forma como lidarão com ele no futuro. Não é possível, assim, aceitar manifestações de extremo preconceito sem esquecer que crianças e jovens estão sendo indelevelmente afetados. Isso é claramente uma ofensa brutal aos direitos humanos de maneira geral, mas, também, especificamente aos direitos das crianças e adolescentes – para os quais temos leis de proteção no Brasil.
Um outro trabalho, dessa vez de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe, também aponta os terríveis efeitos do preconceito racial sobre as crianças. Os autores solicitaram que crianças de 5 a 8 anos de idade desenhassem duas crianças, uma branca e uma negra e, através dos desenhos, respondessem questões sobre suas preferências. Os resultados não só mostraram altos níveis de preconceito como evidenciaram que a criança negra é fortemente rejeitada. Sobre isso, os autores explicam que as crianças introjetam valores e normas sociais vigentes em seu contexto. Ou seja: elas assumem como seu o discurso coletivo do meio onde vivem. Daí, mais uma vez, a importância de analisarmos as manifestações de preconceito do ponto de vista da criança que é atingida diretamente por elas.
Isso me lembrou um vídeo que assisti já há certo tempo e que te convido a assistir agora. Assista novamente, caso já tenha assistido, de posse dessas informações. Entenda as consequências de um discurso de preconceito e discriminação sobre as crianças expostas a ele e a forma como elas introjetam os valores aos quais estão expostas.
Então eu pergunto: uma pessoa que submete outros seres humanos a esse tipo pensamento, que contribui diretamente para a construção de sua identidade, pode ter algum tipo de sentimento de equidade, igualdade e humanidade? Tem condição de presidir uma comissão que defende os direitos humanos? E aqueles que defendem sua permanência, ou que defendem seus argumentos, estão fazendo o que além de perpetuar isso?
Pelo menos uma vantagem as crianças criadas em relação de homoparentalidade já têm: não vivem com quem estimula o discurso de ódio.
las, com apostilas ridículas como a que está representada ao lado, assistindo novelas, vendo comerciais de tv. Ouvindo os comentários maledicentes de nosso pai, nossa mãe, nossos avós, direcionados a outros seres humanos – sim, enquanto você está gastando seu veneno tentando diminuir alguém, seu filho está ouvindo e formando os (pré) conceitos que delinearão sua vida, está ouvindo e aprendendo a replicar.
“E se o preconceito não é inato, a criança pode, de fato, perceber que o outro é diferente dela, sem que isso impeça o seu relacionamento com ele. Essa percepção, contudo, é dificultada, pois é sob a forma de ameaça que o preconceito é introjetado. Incorporamos as representações dos objetos, aos quais devemos reagir preconceituosamente, por meio de nossas relações com pessoas das quais dependemos, e as incorporamos por medo do que aconteceria, caso assim não o fizéssemos(…)Como o preconceito não é inato, nele está presente a interferência dos processos de socialização que, como foi dito, obrigam o sujeito a se modificar para se adaptar”. (José Leon Crochik, em “Preconceito, indivíduo e cultura”)
discriminação, ele não está falando de quem critica. Não. Ele não está falando da população negra, nem das mulheres, nem da população LGBT. Está falando sobre si próprio. Mostrando seu preconceito a quase todos os grupos sociais oprimidos, isso diz mais sobre sua própria necessidade de opressor do que das características de quem tenta oprimir. E buscando na religião bases infundadas para fortalecer seu discurso de ódio, ele mostra todo seu despreparo, pequenez e desumanidade.
Não interessa quem você cultua, quem você idolatra, a quem você direciona suas preces.
O que interessa mesmo é a forma como sua crença pode estar influenciando o mundo, atual e futuro. O que interessa mesmo é o que sua crença te inspira a fazer e dizer, que influência ela exerce sobre você a ponto de que você a reproduza em seus filhos.
Não interessa se você se diz espírita, católico, evangélico, protestante, ateu, muçulmano, budista, de outra religião ou sem uma. Se você ensina uma criança a tratar como inferior um outro ser humano, se você trata como escória quem é igual a você, então você não é digno.
Se você não está ensinando suas crianças a reconhecerem o direito que todos têm de serem respeitados pelo simples fato de serem seres humanos, então você também não merece qualquer respeito.
Principalmente o delas.
A forma de contar é que é diferente…