Eu nasci em uma família nuclear: mãe e pai que se casaram na década de 70 e tiveram filhas. Em minha família, era esse o modelo dominante: avós casados, tios casados, padrinhos casados, tudo nuclearzinho como manda uma suposta “tradição”. Ao meu redor, crianças eram criadas em famílias nucleares. De fato, quase não me recordo de ter convivido, até por volta dos 14 anos, com famílias com outras configurações.

E então, meus pais se separaram. E toda minha vida mudaria a partir de então. Sem qualquer dúvida, a separação deles – emocionalmente desastrosa para a criança que fui – foi meu primeiro divisor emocional de águas e a dor que senti naqueles meses/anos de transição foi das maiores, sem que tivesse qualquer tipo de amparo emocional ou psicológico porque, eles mesmos, meus pais, não o tinham. Naquele momento, para a criança que eu era e que me acompanharia a partir de então, minha família estava partida. Quebrada. Rachada.

Para aquela criança que fui, não havia, a partir de então, duas famílias possíveis, uma girando ao redor da mãe e uma girando ao redor do pai. Era uma família, apenas. Partida ao meio. Em meio a um microuniverso de famílias “inteiras”. Não era diversidade. Era desvio. Assim eu enxergava… Assim a sociedade e a indústria cultural me incentivavam a enxergar.

É claro que nada disso era verdade, claro que o fato de uma família ser composta por mãe e pai casados, vivendo com seus filhinhos, está muito longe de ser, apenas por isso, uma “família inteira” – estamos cansados de conhecer famílias nucleares marcadas por violências múltiplas, egoísmo, comodismo e ladeira abaixo. As famílias nucleares ao meu redor, por exemplo, eram em grande parte bastante hipócritas – todos se desrespeitavam e se negligenciavam mas se orgulhavam de ser “uma família inteira”. Mas aquele era o olhar daquela criança. E aquela criança cresceu assim, tentando de todas as maneiras “manter unida” uma família machucada e que precisava de ainda mais amor, embora ninguém soubesse como fazer. Mas por que era esse o meu olhar enquanto criança? Isso é um recorte muito pessoal meu ou havia algo de muito perverso na cultura da época – e também da atual – que incentivava que assim nos sentíssemos e assim olhássemos para diferentes constituições familiares? Por que tanta dor?

Achar que a família organizada em torno do eixo mamãe, papai, filhinhos é uma estrutura “tradicional”, ou seja, presente desde sempre na sociedade é um grande erro. Essa foi a estrutura que se tornou hegemônica em nossa sociedade ocidental, mas inúmeros estudos antropológicos mostram que diferentes arranjos familiares coexistiram em diferentes sociedades. Tornar a família nuclear patriarcal algo predominante foi um trabalho especialmente feito pela Igreja Católica em defesa do que considerava/considera como moral e bons costumes. A tradicional família heterossexual. A sagrada família. Uma forma de ditar regras sobre como devemos viver e, especialmente, com quem devemos transar – e onde devemos transar. Marido. Esposa. Sexo domiciliar. Filhos. Todos vestidos de branco. Uma mesa de café da manhã. Um pote de margarina sobre ela. Em resumo, a família nuclear patriarcal como a normatização e a hegemonia das formas de viver e se procriar. Mas a única? Nunca. Apenas a mais aceita, a legitimada, a incentivada.

É claro que nos últimos 50 anos, vivemos e convivemos com as mais diferentes configurações familiares. Mas achar que essa diversidade é bem vista e bem aceita é bastante ingênuo – e as dores individuais e coletivas de tantas mulheres estão aí para mostrar que não, que estamos ainda longe disso. Eu pensava que era um problema meu. Uma má resolução emocional que precisava ser urgentemente trabalhada em terapia – e foi pra lá que corri, com certeza, mas também à observação participante da minha própria realidade e das mulheres que comigo convivem. E percebi que não, que era um problema coletivo: mulheres sofrem de diferentes formas em função dos valores patriarcais da “família nuclear”. Sofrem ao tentar manter uniões infelizes. Sofrem ao romper essas uniões infelizes e serem julgadas por todos ao redor. Sofrem por ainda nutrir dentro de si as crenças com as quais cresceram. E no meio disso, as crianças. Crescendo.

Na década de 80, quando eu ainda era criança, as discussões sobre diversidade e diferentes configurações familiares eram muito incipientes. Assim como estava ganhando força a luta contra a violência contra a mulher e a criança – que acontece predominantemente no interior da família nuclear patriarcal, protegida por sua legitimidade. A padronização familiar ainda era a tônica, embora esforços no sentido contrário começassem a ganhar espaço. E nós, crianças, éramos incentivadas a comprar o conto de fadas da Família Margarina, vendido todos os dias pela indústria cultural. Novelas. Comerciais. Desenhos animados. Comemorações escolares. Uma família era isso, essa era a ideia vendida, essa era a ideia que grande parte das pessoas comprava.

É claro que essa normatização do conceito de família e sua aceitação (quase) generalizada fazia com que as famílias não mais nucleares não recebessem qualquer tipo de apoio, amparo e amor para que pudessem se refazer emocionalmente. Dor e julgamento em cima de dor e julgamento. Como uma boa sociedade moralista assim deseja: culpabilizar e julgar os que fogem à norma, à regra e que representam um chamado para que outros enxerguem outras possibilidades. E vivemos duros anos sob a alcunha de “família desfeita”. Pode parecer apenas uma expressão, “família desfeita”, uma equivocada expressão. Mas não é apenas isso. É um rótulo. Uma insígnia, uma expressão que se infiltrava em nosso emocional e nos devastava aos poucos. Nós, crianças vivendo em lares não mais nucleares, éramos membros de “famílias desfeitas”. E foi muito duro – e ainda é, para grande parte daquelas crianças da década de 80, hoje adultos vivendo em suas próprias famílias – crescer em meio a esse rótulo, buscando se desvencilhar, à luz de bastante problematização, da normatização familiar, para entender que não, não éramos “famílias desfeitas”. Éramos famílias. Apenas não vivíamos mais em um único núcleo. Rompemos com a normatização da família nuclear para viver em diferentes configurações.

E então eu cresci. E chegou a minha vez de reproduzir ou rejeitar o modelo padronizado de família que me havia sido vendido. E, embora eu posasse de muito modernex-mulher-cientista-descolada-morando-sozinha-desde-os-17-anos-conquistando-muitos-títulos, o que me perseguia como sombra opressora era: EU QUERIA VIVER AQUELA FAMÍLIA. Aquela família nuclear. Ponto para a indústria cultural e o moralismo cristão: trabalho publicitário muito bem feito. Eu nem achava que a família nuclear era o suprassumo da convivência familiar, tinha senso crítico suficiente para saber que não era garantia de nada. Mas queria. E talvez também tenha sido essa a armadilha que me prendeu a relacionamentos abusivos, ou não abusivos mas pobres de afeto genuíno, pautados em sei lá o quê.

Foi quando, então, com a confirmação de uma gravidez não planejada, me vi frente à possibilidade tão sonhada: é agora! “Vai começar a minha família”. Mas a vida real tá dando de ombros para suas projeções e más resoluções emocionais, ela vem nua e crua como tem que ser, e claro que tudo o que você idealiza tem imensas chances de ser um castelo de areia. E assim foi… A rotina me mostrou que não, não seria como eu (achava) que queria. E aí?! E agora?! Como rejeitar a possibilidade de ter uma família nuclear composta por mamãe-papai-filhinha, ainda que você estivesse infeliz, se por tanto tempo foi aquilo o que você secretamente desejou? E então, por pelo menos dois anos, permaneci algemada às tão conhecidas frases que o senso comum subliminarmente e com sucesso impregnou em mim:

“Você tem uma filha. Ela não merece viver a dor que você viveu de ter pais separados”.

“Você não tem o direito de desfazer uma união e privar sua filha de ter uma família ‘inteira’”.

“Vale a pena qualquer sacrifício para manter o que é importante para sua filha”.

“Anule-se, mas preserve a família dela”.

E ela ia crescendo em meio ao desamor… E isso não era aceitável para mim. E então chegou a minha hora. E eu também me separei… Separei-me e estava disposta a romper o, talvez, mais pernicioso ciclo de infelicidade da minha vida: eu não queria mais uma família nuclear. Eu queria, apenas, uma família feliz – seja lá como ela fosse. Mais do que tudo, eu queria viver uma forma mais feliz e, de fato, inteira, de família. Onde pessoas pudessem conviver com suas diferenças, com seus amores, com o direito que todos temos de reconstruirmos nossas vidas, de amarmos de diferentes maneiras. E, mais importante, queria que minha filha também pudesse vivenciar as diversidades das relações e não se sentisse algemada a um único modelo, como eu me senti na infância. Estava disposta a mostrar a ela, ao contrário do que me foi mostrado por uma sociedade alheia à dor das pessoas, que tudo era possível em termos de amor. E que ela seria muito feliz tendo uma mãe e um pai vivendo separados, que poderiam ou não amar outras pessoas e constituir novos núcleos, e que ela poderia viver bem em todos eles, simplesmente porque

A VIDA É ASSIM.

A vida nos mostra todos os dias diferentes formas de amar. Pessoas vivem nas mais diferentes configurações de família e há bastante amor nessa diversidade. E era isso o que eu verdadeiramente queria para ela: que ela fosse livre para perceber todo esse amor. Eu me separei quando ela tinha quase 4 anos de idade. E prometi a mim mesma que faria todo o possível para que ela percebesse que nós não éramos uma “família desfeita”. Nós éramos uma família cheia de núcleos, cheia de mães, cheia de filhos e filhas, que poderia ou não ter diferentes pais. Eu estava verdadeira e sinceramente disposta a romper com o modelo que comprei e a rejeitá-lo para sempre, em prol de ensinar minha filha a amar e respeitar todas as configurações familiares. E enfrentei dores profundas para conseguir isso – porque a sociedade é cruel com quem tenta ir em outra direção, sabe? É muito cruel. Como se não bastasse meu próprio processo interno de desconstrução e reconstrução de conceitos familiares, a sociedade sempre fazia um esforcinho pra me esfregar na cara quem é que ditava as regras.

O Censo Demográfico 2010 – Famílias e Domicílios afirmou que 16% das famílias vivem em configuração não tradicional, chamadas, pelo próprio IBGE, de “famílias reconstituídas”. Pois é, avançamos um pouco mas nem tanto. Reconstituídas?! Como assim? Que espécie de nome é esse? Pois bem. Fui em busca dos dados do Censo. Baixei dezenas de planilhas. Li dezenas de dados. E entendi onde está o furo – porque, sim, eu sabia que havia um furo, sabia que tínhamos muito mais que 16% de famílias vivendo em configuração não tradicional. O erro está em considerar como “família não tradicional” apenas as famílias formadas por novos casamentos, em que a mulher ou o homem já haviam tido famílias anteriores e, agora, compunham uma nova. Excluindo todas as famílias compotas apenas por mulheres e seus filhos. Como cheguei a essa conclusão? Simples, analisei o número de mulheres vivendo sem cônjuges e com filhos no Brasil: 6 milhões e 93 mil. Isso significa que são 6 milhões e 93 mil mulheres vivendo em famílias não nucleares, ou seja, sem a estrutura patriarcal. Até para o IBGE, uma mulher vivendo apenas com seus filhos não é considerado uma família, do contrário o valor seria muito superior a 16%. Avançamos… Mas nem tanto. Nós, mulheres vivendo com nossas crianças, não somos consideradas nem mesmo por nossos institutos de pesquisa como sendo famílias – sequer a péssima alcunha de “reconstituídas” recebemos.

Clara, minha filha, me ensina todos os dias como é lindo viver em uma família não nuclear. Esse talvez esteja sendo o maior aprendizado que ela tem me trazido. Todos os dias. Ela, que nem 7 anos tem ainda no momento que escrevo isso, pegou-me pela mão e, de braços dados com o contexto atual que defende o direito a todo tipo de diversidade, me mostrou que as formas de amar são tão infinitas que mal temos condições de imaginá-las. E que em quanto mais núcleos vivemos, mais podemos amar. Mais podemos conhecer as pessoas. Mais estamos abertos a diferentes realidades. Mais poderemos exercitar a tolerância. Clara, minha única filha, tem 4 irmãos. Um irmão que veio de uma mãe e de seu pai. Uma irmã que veio de outra mãe e de seu pai. Duas irmãs que vieram de outra mãe e de outro pai. Enquanto escrevo esse texto, ela compõe uma música para suas três irmãs. Quatro, na verdade, porque ela também considera a gata que vive na casa de seu pai como sua irmã. E neste último dia das mães, ganhei um presente muito especial: uma composição dela, tocada ao teclado, por ela mesma. Como ela aprendeu a tocar teclado? A companheira de seu pai a ensinou. E seu pai me enviou a mensagem gravada. E eu não poderia ter vivido a emoção que vivi ao recebê-la se não vivesse em uma família não nuclear.

Há poucos dias, fizemos uma fogueira à noite, na praia. E conversamos sobre nossas famílias. Perguntei a ela quantas famílias ela tinha. Muito naturalmente, ela disse:

“UMA. E minha família é incrível, porque tem muita gente, de tudo quanto é jeito, e sempre aumenta”

E, explicando as relações criadas entre todas as pessoas, ela muito naturalmente disse:

“As meninas, filhas da namorada do meu pai, também chamam meu pai de pai, porque ele também é pai delas, mesmo que elas tenham o pai delas”.

Então perguntei como ficava a questão de eu ser mãe dela e do pai dela ter uma nova companheira, se isso se aplicava também. E então ela tomou um grande susto e olhou séria pra mim:

– Não sei, mamãe. O que você acha? – Estava evidente o medo que ela tinha de me magoar. Perguntei:

– Você acha que ela também é sua mãe?

– Não sei, mamãe.

– Se o seu papai também pode ser o ‘pai de coração’, como você diz, das meninas, por que ela não pode ser também sua ‘mãe de coração’?

– Mas você acha que tudo bem?

– Eu acho, filha. Quero que você se sinta livre para escolher.

E então ela me abraçou bem forte. E respondeu:

– Eu vou achar bem legal. É legal ter muita gente e muito amor na família.

Sim. Viver em famílias não nucleares nos traz uma insubstituível possibilidade de exercitar o amor a diferentes pessoas, a tolerância, a diversidade. E talvez poucas coisas sejam tão ricas para o desenvolvimento das crianças. Isso se nós, adultos, conseguirmos, antes, curar nossas próprias feridas e permitir viver diferentes formas de amor…

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia, Doutora em Ciências e Doutora em Saúde Coletiva com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.

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