Atenção – Há abaixo conteúdo que talvez possa disparar gatilhos emocionais traumáticos.
Não lembro exatamente quando foi que conheci Ana Lúcia pessoalmente. Mas a imagem que tenho dela é de uma mulher decidida, forte, socialmente comprometida, que decidiu dedicar sua vida a uma causa que não é dela, mas de todas nós. Nós olhamos para essa mulher e vemos nela a imagem de uma brava e forte defensora de causas feministas, mãe, advogada, ativista. E porque as relações mediadas pelas redes sociais não nos permitem ir até o centro das pessoas, nós nos baseamos no que vemos. Criamos perfis fictícios das outras pessoas que também têm muito de nossa própria projeção e admiração (ou recalque). E não conseguimos de fato imaginar toda a complexidade que mora em cada uma de nós. Sequer podemos imaginar quais dores vivemos. Sobre quais delas estruturamos toda nossa casa. O que nos esforçamos cotidianamente para superar.
Essa semana, Ana me procurou pedindo uma ajuda. E foi um pedido muito especial e doloroso. Ana conseguiu escrever sobre o abuso sexual que sofreu na infância. E gostaria de torná-lo público como parte de seu processo de cura. Então me perguntou se poderia publicar aqui. Um pedido como esse ninguém que tem um mínimo de amor e empatia pela condição de outra mulher pode negar. E se posso ser o veículo por meio do qual a dor de uma mulher pode ser aliviada, serei. Na verdade, talvez eu não esteja aqui por outro motivo que não esse: por ver que é possível ajudar pessoas com meu próprio trabalho.
Ana, minha querida amiga, você não sai de casa há algumas semanas. Mas se depender de nós, deste coletivo que têm como objetivo apoiar outras mulheres, sairá amanhã. Te ofereço as minhas mãos pra te ajudar a se firmar.
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Meu nome é Ana Lúcia. Tenho 41 anos, sou advogada e ativista pelos direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Enveredei-me por esse caminho através dos nascimentos dignos e respeitosos dos meus filhos Sofia e Marcos, e da criação da minha enteada Marina.
Fui estuprada por um amigo aos 24 anos de idade. Minha vida era uma antes desse dia e passou a ser outra depois. Muito além do que sabemos que a vida nunca será como era há um segundo, já que mudamos o tempo todo, como dizia Lulu. O além foi no meu comportamento, nas minhas escolhas, na compreensão do mundo com as mulheres, com a violência naturalizada. E é uma violência doída, algo que eu sentia roubado de mim e que não conseguia recuperar, apesar de seguir a vida em frente.
Dia 15 de maio desse ano, dia do aniversário do meu filho, um momento em que eu me encontrava muito feliz porque as coisas caminhavam muito certo na minha vida, dirigindo na Marginal Tietê, eu passei mal. Parecia um ataque cardíaco, fui socorrida pelos bombeiros, fui ao médico, fiz todos os exames necessários e soube que tive uma crise de ansiedade. Curioso que nunca tinha sentido assim antes, e uma tremenda sensação de vulnerabilidade. Na semana seguinte viajei a trabalho para Três Lagoas, e com meu pai passei pela cidade onde vivi pouco mais de um ano, Andradina, e ali tive uma lembrança. No carro eu lembrei de um abuso sexual que sofri aos oito/nove anos de idade. A cena veio cristalina, como se estivesse acontecendo naquele momento, e foi horrível acessar essa memória.
Voltei para São Paulo muito mal, e daí já se vão três meses lidando com as crises de pânico e todas as consequências daquele dia em que fui abusada. Não era um adulto, mas também não era criança. Não se tratava de uma experimentação entre crianças da mesma idade. Se tratou de um abuso, ainda que talvez o abusador não tenha a menor ideia do que aquele ato causou na minha vida.
Achei incrível como essa lembrança ficou tanto tempo escondida na minha mente, talvez porque antes eu não tivesse condições de acessar sem doer muito mais. Porque dói. E o que dói é a descoberta das consequências daquele dia… Como algo muito mais sério que me roubaram definitivamente. O meu direito à descoberta da minha sexualidade de forma saudável, sem medo, sem ameaça, sem culpa. O direito que eu tinha a me descobrir e me compreender mulher no meu tempo. O direito que eu luto e trabalho para que meus filhos tenham.
E, nessa minha dor e ao acessar tudo o que vem disso, descobri tantas outras pessoas que viveram a mesma coisa que eu. E que levaram muito tempo para falar sobre o assunto. Algumas pessoas só falaram a primeira vez sobre isso agora, conversando comigo, quando partilhei a minha dor. No meu caso foram 32 anos guardando essa informação em mim. Foram 32 anos com um sentimento de inadequação que eu não sabia de onde vinha, foram 32 anos com dores em segredo. E eu te digo, não é o fim do mundo, mas não é fácil.
As crises de pânico que eu vivo hoje refletem o lugar inseguro que eu vejo no mundo. Fiquei semanas sem sair da minha casa. E compreendo que sou uma pessoa privilegiada, tenho acesso a bons profissionais de saúde, terapeuta, família e amigos que se organizaram para cuidar de mim. Então, se é assim para mim que tenho recebido muito apoio porque estou falando disso??? Porque as pessoas não falam das consequências do abuso sexual infantil. Logo após as lembranças que tive, assisti um vídeo da ONG norueguesa Save The Children, você pode ver o vídeo aqui. Se você assistir ao vídeo, vai entender como me senti por anos.
Em 2008, a SaferNet Brasil, uma organização de combate à pornografia infantil na internet, recebeu 42.122 denúncias sobre abuso sexual infantil. Recentemente, a página Cientista Que Virou Mãe publicou um texto sobre o assunto (acesso aqui) e eu fui uma das colaboradoras desse texto. O abuso sexual infantil é muito comum, muita gente acha horrível, mas não compreende a naturalização do mesmo, e as consequências na vida da vítima.
Ano passado a Revista Vogue Kids publicou um editorial com fotos de meninas em roupas e poses sensuais. Meninas com a mesma idade que eu tinha quando fui abusada. Naturalizando a menina desde pequena como objeto sexual e de prazer. O Ministério Público do Trabalho moveu uma ação civil pública contra a Editora e eu espero que o Judiciário compreenda o malefício na vida de meninas e meninos que é a exposição do corpo com ares de sensualidade e sexualidade.
Eu eduquei a minha enteada que veio morar comigo antes dos 10 anos. Acompanhei o desenvolvimento dela de menina para mulher. A transformação e as descobertas sadias que ela teve acesso. Eu tenho uma filha de 9 anos, e um filho de 5 anos. Eu acompanho diariamente as descobertas que eles tem sobre o próprio corpo de forma sadia. Admiro e respeito as descobertas em seu tempo.
Eu sei o que perdi quando fui abusada naquele quarto. Eu sei o que eu perdi para sempre. Eu sei o que nunca mais vou recuperar e o trabalho que tenho para re-significar o feminino em mim. Eu fui acolhida pelo meu companheiro e meus filhos. Pela minha enteada que por dias dormiu comigo segurando a minha mão. Pela minha mãe, meu pai, e o meu irmão que todo dia vem me ver e perguntar se eu quero sair, e que se eu quiser, ele me segura pelas mãos. Pela Renata, Silvia e Márcia disponível nas madrugadas e em todas as horas. Pelas minhas amigas de trabalho que choraram a minha dor comigo Raquel, Valéria e Patrícia e que estão me dando o tempo necessário para me recompor. Pelas meninas do Advocacy que me cuidam e assumem o que eu não posso por hora. Pelas Mulheres Sábias da Ciranda, em especial aquela que está do outro lado do mundo, a Carol, me ensinando que não temos controle sobre a vida e que podemos viver o agora construindo um novo significado. Pela Adeli, pelo Marcos, pela Glaucia e pela Ligia, os profissionais que estão cuidando da minha saúde. Pela Cida, Silvia, Dilssa e Dalete que assumiram a minha casa para que eu me restabeleça. Pela Ana Paula e Ana Rita do NUDEM pelas mãos estendidas. Pela Fabiana Paes pela sororidade. Pelos amigos fundamentais da Teia que tem me ajudado e a meus filhos a terem uma vida mais normal nesses tempos difíceis para mim. Pelos meus compadres. Pela Jamila que rezou comigo.
E, se torno público hoje o que me aconteceu, é porque preciso falar disso e sair da água que me sufocou tanto tempo. A vergonha e a culpa não são minhas (também não acho que seja do meu abusador, que provavelmente sequer tenha a ideia do que aquilo causou em mim, já que ele é fruto e repetição de uma péssima educação do masculino onde ele também não aprendeu o que não poderia fazer).
Uma amiga querida, a Jules de Faria, me disse outro dia quando lhe falei que eu queria me esconder do mundo: É exatamente o contrário. A gente acha força quando se entende como vítima. Não é vitimismo. É uma forma de lutar contra.
Hoje eu falo para lutar contra. Porque consegui sair do sufocamento. Para que você que estiver lendo esse texto e passou pelo mesmo que eu compreenda que a culpa não foi sua, que foi algo que se perdeu para sempre, mas que há caminhos de se curar e re-siginificar. E falar é um bom começo.
Não saio de casa há duas semanas.
Mas sei que amanhã sairei.
Não como era antes. Mas fortalecida por acolher em mim uma dor que há em tantas pessoas. Porque o sufoco, agora, não existe mais.
Ana Lúcia Keunecke